O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E A DEMOCRACIA
Valentino Aparecido de Andrade
Ainda acerca do tema que envolve a possibilidade de se decretar o sigilo sobre a fundamentação dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, proposta sugerida pelo senhor Presidente da República, há quem, em defesa dessa tese, argumente que a sociedade não possui o direito de saber o que cada ministro pensa e valora em sua decisão, porque isso traria um efeito nocivo, que seria transportar de modo indevido a lógica da representação política para o âmbito da justiça. Haveria, pois, algo ontológica e funcionalmente diferente entre o campo da política e o da justiça, e que justificaria a existência de um discrímem no que diz respeito aos conceitos de “transparência” e de “publicidade”, que, aplicados ao mundo jurídico, teriam um conteúdo diverso do que possuem quando se trata da política, de maneira que a Constituição de 1988, malgrado seu artigo 93, inciso IX, não obrigaria os juízes em geral, e em especial os ministros do Supremo Tribunal Federal a revelarem à opinião pública o que pensam, como pensam, o que valoram e como valoram, porque esse tipo de “transparência” não exige que os juízes explicitem a fundamentação de suas decisões e votos perante as câmeras.
Para além de uma incorreta compreensão do que deve consistir hoje a atividade política, como se esta pudesse ainda legitimamente conviver com a ideia de que o político decide única e exclusivamente para agradar a opinião pública, e que a exigência quanto ao dever de explicar as razões pelas quais adota uma decisão é apenas um estratagema legal destinado a criar na opinião pública a ilusão de que suas expectativas estão a ser consideradas, para além, pois, de uma antiquada compreensão de como deve ser a política em uma sociedade cada vez mais complexa (e exigente) como a nossa, está o desejo, obviamente inconfessado, de restaurar no Brasil o positivismo jurídico, em cuja raiz está a ideia de que o conceito de legitimidade gera necessariamente a aceitação do conteúdo da decisão, qualquer que seja esse conteúdo, porque a opinião pública, em aceitando as premissas da decisão judicial, não teria o direito a conhecer das razões pelas quais uma decisão judicial é adotada, em especial aquela provinda dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Em lugar, pois, de se reconhecer que se trata de um positivismo jurídico disfarçado, e que se trata de um modelo obviamente incompatível com o princípio do devido processo legal “processual” e “substancial” que a Constituição de 1988 consagra e impõe, os defensores da tese de que se poderia decretar o sigilo sobre a fundamentação dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal argumentam que a publicidade que deve se exigir no caso das decisões judiciais (e em especial das mais importantes, como são muitas das proferidas pela Corte Suprema), essa publicidade é satisfeita apenas por meio da divulgação do resultado da decisão do colegiado, e não da valoração individualmente feita por cada um dos ministros, porque a transparência dessa valoração, ou seja, das ideias (e ideologia) de cada ministro poderia de algum modo incentivar um debate na opinião pública, algo que os defensores da ideia entendem como nocivo, porque seria trazer o mesmo nível de cobrança que a opinião pública pode (e deve) exercer sobre a atividade política, mas que não pode (e não deve) fazer em relação ao pensamento exposto pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos. Uma democracia curiosa, para dizer o mínimo, em que as pessoas não possuem o direito a saber como os ministros de sua mais alta corte de justiça pensam.
O famoso filósofo JOHN DEWEY havia percebido como a democracia é uma espécie de planta um pouco viçosa, porque ela vive o tempo todo sob o risco de que se criem espaços de controle privado sobre temas que são do interesse público. DEWEW temia, pois, que as instituições bancárias e as grandes empresas pudessem escapar ao controle do Estado, na medida em que estariam imunes ao controle da opinião pública. Teriam, pois, um poder imenso, exatamente porque incontrolável. O mesmo ocorrerá, pois, com o Poder Judiciário, quando se escusar os ministros do Supremo Tribunal Federal de explicitarem o que, em seus votos e decisões, valoraram, pensaram (ou como não valoraram ou pensaram), e a que ideologia pertencem.
Defender, pois, a tese de que o dever de fundamentação que a Constituição de 1988 erigiu como um direito fundamental coletivo não garante o direito de a opinião pública conhecer de como, individualmente, pensam os ministros do Supremo Tribunal Federal, é querer criar, dentro de nossa democracia, um espaço reservado, em que as decisões desse Tribunal não estarão submetidas a nenhum controle social.