A Lei do Distrato e o Código de Defesa do Consumidor

A LEI DO DISTRATO E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Valentino Aparecido de Andrade

Como cuidamos adscrever em um texto anterior, há no Brasil um fenômeno que lhe é próprio: com o passar do tempo, códigos e leis são modificados a ponto de transmudarem a sua essência, e esse fenômeno está a ocorrer com acentuada intensidade em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

Consideremos, pois, o que prevê passou a prever o artigo 32-A da lei federal 6.766/1979, com a nova redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018. Cuida-se do dispositivo legal que regula a forma e valores que devem ser restituídos na hipótese de rescisão de contrato de compromisso de compra e venda, contrato em que subjaz uma relação jurídica de consumo.

Prevê o artigo 32-A da lei federal 6.766/1979, com a redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018:
“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II – o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III – os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV – os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V – a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
§ 1º O pagamento da restituição ocorrerá em até 12 (doze) parcelas mensais, com início após o seguinte prazo de carência:
I – em loteamentos com obras em andamento: no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias após o prazo previsto em contrato para conclusão das obras;
II – em loteamentos com obras concluídas: no prazo máximo de 12 (doze) meses após a formalização da rescisão contratual.
§ 2º Somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado, nos termos do art. 32 desta Lei.
§ 3º O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”.
Trata-se, pois, de uma lei que provoca importante modificação no regime do proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, enfraquecendo esse regime de proteção.
Com efeito, o conteúdo e o alcance da regra do artigo 32-A da lei federal 6.766/1979 criaram um injustificado regime de discrímem em favor das incorporadoras e administradoras de bens imóveis, colocando os adquirentes em uma posição contratual desvantajosa além de um limite razoável, a ponto de se poder afirmar que essa norma, criada pela lei federal 13.768/2018, teve por objetivo obnubilar na prática as vantagens que os consumidores haviam, com muita luta, obtido quando conseguiram que fosse aprovado o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal que, como observado, vem enfrentando, dia-a-dia, um hercúleo desafio quando a manter a integralidade de seu texto, tal como fora ideado e colocado em vigor a partir de 1990.
Recentemente, surgiu a lei que se tornou conhecida como “A Lei do Superendividamento” (lei federal 14.181/2021), que, a pretexto de querer proteger o consumidor, em verdade o desprotege, submetendo-o a medidas que são de interesse exclusivo do credor, como se dá com o plano de pagamento embutido no “processo de repactuação de dívidas”.
E o mesmo se dá com a “Lei do Distrato”, como assim se tornou conhecida a lei federal 13.786/2018, que fez acrescer à lei do parcelamento do solo urbano o artigo 32-A, suprimindo garantias que de há muito tinham sido reconhecidas em favor dos adquirentes de bens imóveis objeto de contratos de compromisso de compra e venda, nomeadamente quantos valores que lhes devem ser restituídos na hipóteses de rescisão do contrato.
Trata-se, pois, do mesmo fenômeno que fez surgir a “Lei do Endividamento”, que é apenas o solapar o alicerce do Código de Defesa do Consumidor, o que comprova quão acertada estava MARX em sua percuciente observação quanto à relação que existe e que deve ser percebida pelos operadores do Direito entre a infraestrutura e a superestrutura, e como aquela (a infraestrutura), de natureza essencialmente econômica, busca a todo momento afetar a superestrutura jurídica, materializada no direito positivo, como ocorre com leis econômicas, produzidas por quem defende um Estado absolutamente liberal.
Leis que reproduzam a base econômica, impactando a superestrutura naquilo que se mostre necessário para que prevaleça a base econômica, e não os direitos subjetivos que, incorporados ao direito positivo, integram a superestrutura jurídica de um país. Recordemos do que escreveu LOUIS ALTHUSSER a respeito:
“Qualquer pessoa pode compreender facilmente que esta representação de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois ‘andares’ da superestrutura, é uma metáfora, muito precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica. Como todas as metáforas, esta sugere, convida a ver alguma coisa. O quê? Pois bem, precisamente isto: que os andares superiores não poderiam ‘manter-se’ (no ar) sozinhos se não assentassem de fato na sua base.
“A metáfora do edifício tem portanto como objetivo representar a ‘determinação em última instância’ pelo econômico. Esta metáfora espacial tem por efeito afetar a base de um índice de eficácia conhecido nos célebres termos: determinação em última instância do que se passa nos ‘andares’ (da superestrutura) pelo que se passa na base econômica”. (“Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”, tradução por Joaquim José de Moura Ramos, p. 26-27, Editorial Presença – Portugal – Livraria Martins Fontes – Brasil).
O que justifica a tática empregada recentemente em alguns diplomas legais no Brasil, tática que consiste em solapar as garantias reconhecidas aos consumidores em normas legais que compõem a superestrutura jurídica, mas não por meio da revogação dessas normas legais, o que se revelaria bastante difícil de se alcançar, senão que pela criação de normas que esvaziam de sentido e de função as normas de proteção a direitos, como se dá em especial com a “Lei do Distrato”, que, a pretexto de regular a atividade econômica dos empreendimentos imobiliários, aniquilou em verdade o direito dos adquirentes, previstos no Código de Defesa do Consumidor, colocando esses adquirentes em uma posição desproporcional, ou seja, aquém de um mínimo razoável de proteção jurídica.
E com isso se confirma que o nosso Código de Defesa do Consumidor, andando o tempo, tem se sido cada vez menos um código, por se lhe suprimir a sistematização com que contava em sua redação final, como também não se pode afirmar que consiga hoje proteger eficazmente o consumidor quando esteja a litigar contra grupos econômicos organizados. Como dizia RABELAIS: “Pois as leis são como as teias de aranha: pois, as simples mosquinhas e as pequenas borboletas se prendem nelas; pois, as grandes varejeiras malfazejas as rompem e passam através”.