“LOTEAMENTO. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. MORADOR QUE NÃO QUER PERMANECER ASSOCIADO. DIREITO SUBJETIVO RECONHECIDO. DIREITO FUNDAMENTAL PREVISTO NA CF/1988. OBRIGATORIEDADE, CONTUDO, DE PERMANECER OBRIGADO A ENCARGOS COBRADOS PELA ASSOCIAÇÃO QUANDO DIZEM RESPEITO A SERVIÇOS IMPLEMENTADOS EM FAVOR DE TODOS OS MORADORES DO LOTEAMENTO

Recurso de Apelação 1001556-15.2019

DECLARAÇÃO DE VOTO – EM JULGAMENTO ESTENDIDO

Circunscrevo-me a analisar a questão jurídica sobre a qual se formou a divergência, dado que, quanto às demais questões tratadas no processo e no recurso de apelação, acompanho o voto do ilustre Desembargador Relator.

A divergência radica quanto à possibilidade jurídico-legal de, em nosso ordenamento jurídico em vigor, não se permanecer associado quando se trata de associação criada por moradores em loteamento urbano ou rural. Para o ilustre Desembargador Relator, conforme exposto e fundamentado em seu r. Voto, esteado na tese jurídica consubstanciada pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no tema 492, há que se reconhecer o direito subjetivo de matriz constitucional em não se querer permanecer associado a esse tipo de associação, de maneira que como o réu manifestara, em junho de 2017, a vontade de não mais permanecer associado, não poderia ser obrigado a pagar os encargos cobrados pela associação.

Desse Voto, divergiu o Excelentíssimo Desembargador sob o fundamento de que se há considerar a existência de condições que particularizam a associação dos moradores em loteamento, e essas condições peculiares obstam que o morador, uma vez associado, queira desligar-se da associação. Segundo seu pensar, exposto no Voto divergente, há que se considerar prevalecente o princípio da boa-fé objetiva, que restaria desatendido caso se reconhecesse o direito de o proprietário desligar-se da associação apenas com a finalidade de não pagar os encargos, mas, ao mesmo tempo, beneficiando-se dos serviços prestados pela associação dos moradores a todos os proprietários do loteamento, associados ou não, aspecto que deve, no seu entender, ser levado em conta quando se trata de analisar a regra constitucional acerca do direito de associar-se ou de permanecer associado (artigo 5º., inciso XX, CF/1988), porquanto, segundo sublinha, a causa de pedir da demanda exige uma intelecção que deve ultrapassar o simples direito de se associar ou não, “pois cede passo essa restrição a outro preceito constitucional da mesma natureza, contido no inciso XXIII, do mesmo dispositivo da Carta, que trata da função social da propriedade”.

Acompanho o Voto divergente, mas, respeitosamente, utilizar-me-ei de uma fundamentação jurídica algo diversa daquela que alicerça esse Voto, por entender que não há conflito entre princípios constitucionais, no caso presente, entre o princípio que, fundado na liberdade, garante o direito de associar-se e o de não permanecer associado, e o princípio previsto no inciso XXIII do artigo 5º., que determina se considere como prevalecente a função social da propriedade.

Deixo assinalado que compreendo os princípios constitucionais seguindo a consagrada posição de ROBERT ALEXY, que, em sua famosa obra “Teoría de los Derechos Fundamentales”, pontifica que os princípios devem ser considerados como mandamentos de otimização, no sentido de que devam ser considerados como normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentre as possibilidades jurídicas e reais existentes.

Considero não existir, nas circunstâncias do caso em concreto, conflito entre os referidos princípios constitucionais porque, examinando a relação jurídico-material em função da qual a causa de pedir da demanda está estruturada, não identifico esteja em questão se há ou não o direito de o réu ser obrigado a permanecer associado à autora, porque o fundamento jurídico-legal com base no qual a autora formula a sua pretensão diz respeito a encargos que foram despendidos com a manutenção de serviços e melhoramentos realizados no loteamento e que beneficiaram o réu enquanto proprietário, como a autora cuidou sublinhar ao fazer um histórico de sua fundação (ocorrida em novembro de 1981), de sua finalidade e objetivos, como, por exemplo, a de organização dos serviços essenciais ou uteis dos
loteamentos, a realização de obras de infraestrutura e lazer, serviços de ronda motorizada, zeladoria das áreas comuns, entre outros serviços destinados ao loteamento e com benefício aos proprietários, de modo que a causa de pedir que esteia seu pedido relaciona-se diretamente com esses serviços de manutenção que executa no loteamento, e que beneficiaram a todos os proprietários, associados ou não, inclusive o réu.

Portanto, a relação jurídico-material que dá estrutura à demanda em nada diz respeito ao direito de o réu permanecer ou não associado, senão que ao vínculo jurídico que, como proprietário, possui (ou não possui) com os serviços que deram causa aos encargos mencionados na peça inicial.

Que o réu possui o direito subjetivo de não permanecer associado, parece-me evidente que o possui, porque norma constitucional lhe garante esse direito, e não haveria como restringir esse direito fundado na liberdade, nem mesmo a situação jurídica de estar a inadimplir com os encargos da associação a que pertence. Há restrições à liberdade de associação (por exemplo, se a associação é criada para fins ilícitos), mas não há restrições ao querer não permanecer associado, bastando a manifestação de vontade para que esse direito prevaleça, sem qualquer restrição. Trata-se, de resto, de um direito de natureza potestativa (como o chamaria CHIOVENDA), pois que basta a manifestação de vontade do titular do direito para que esse direito exista e produza seus efeitos.

Mas, como cuido enfatizar, a demanda, considerada a relação jurídico-material com base na qual a causa de pedir está fundada, não versa sobre o direito constitucional de permanecer associado, senão que a demanda tem como suporte a relação jurídico-material que diz respeito a serviços prestados pela associação em prol do loteamento e dos quais o réu como proprietário beneficiou-se, e que por eles deve arcar, portanto.

Não se trata de um conflito entre princípios constitucionais porque a demanda não controverte sobre uma forma de extrair de seu conteúdo e alcance algo que deva ser realizado em maior ou menor medida, seja quanto ao direito constitucional da liberdade de associação, seja quanto à função social da propriedade, sobretudo se considerarmos a precisa distinção que JOSÉ AFONSO DA SILVA faz em sua obra “Comentário Contextual à Constituição”, entre o sentido que se deve dar à expressão jurídica “função social da propriedade”, que diz respeito diretamente à propriedade, e o sentido a ser dado aos sistemas de limitação da propriedade, estes relativos à pessoa do proprietário.

A associação de moradores em loteamento apresenta, é certo, particularidades, mas cada associação as apresenta em maior ou menor grau, e esse aspecto não pode atuar como elemento de discrímem quando em questão o direito constitucional de permanecer associado, direito subjetivo que, sublinho, não suporta restrição.

O que de fato particulariza a associação de moradores em loteamento não está nela, mas no que fundamenta a causa de pedir da ação que promove; ou seja, é a relação jurídico-material em questão na demanda que deve ser atentamente considerada. Pois que se a causa de pedir da demanda funda-se em encargos que foram criados e se destinam à manutenção da própria associação, então o morador, uma vez tendo manifestado a vontade de não permanecer associado, não está mais a partir dessa declaração de vontade obrigado a suportar tais encargos. Mas se os encargos dizem respeito, como no caso presente, a serviços dos quais se beneficiou como morador do loteamento, tanto quanto sucede a qualquer outro morador, nesse caso é irrelevante esteja o réu associado ou não, porque a sua condição na demanda, ditada pela relação jurídico-material e pela causa de pedir, não é a de associado, mas a de proprietário que se beneficiou dos serviços, e que por eles deve pagar conforme a sua quota-parte. Enfatiza LIEBMAN que as condições da ação são elementos extraídos diretamente da relação jurídico-material, e particularmente com a legitimação para a causa isso se mostra mais nítido, e como é exemplo esta ação, em que o réu não está a ser demandado porque é associado, senão porque é proprietário e beneficiado pelos serviços remunerados pelos encargos que a autora lhe está legitimamente a exigir. Essa a causa de pedir, essa é a relação jurídico-material sobre a qual a demanda está estrutura.

Por tais razões, e com todo o respeito que merecem as posições em contrário, meu voto, na questão em que está circunscrita a divergência, é no sentido de se desprover o recurso de apelação, porque entender que o réu, beneficiado pelos serviços que remuneram os encargos cobrados pela autora, por eles deve responder nos termos do pedido.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
3º. JUIZ