LIMITE DE VALOR EM SETENTA MIL REAIS, FIXADO NA LEI 16.498/2017 – SP. DIREITO À ISENÇÃO RECONHECIDO POR VIOLAÇAO AO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA E BOA-FÉ. DISTINÇÃO ENTRE ESSE PRINCÍPIO E O DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS NO CAMPO DO DIREITO TRIBUTÁRIO
Processo número 1006210-61.2018
3ª. Vara do Juizado Especial de Fazenda Pública
Comarca da Capital
Vistos.
Insurge-se a autora (…), qualificada a folha 1, contra o ato administrativo que, emanado do Fisco do Estado de São Paulo e amparado na Lei Estadual – SP de número 16.498/2017 e na Portaria CAT 98/2017, negou-lhe a isenção do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículo Automotor para o exercício fiscal de 2018, relativamente ao veículo que a autora adquiriu em 2016, porque o valor do veículo supera setenta mil reais, que é o limite fixado na novel Lei, argumentando a autora que, concedida a isenção noutros exercícios fiscais, não se poderiam modificar suas condições, ou mesmo revogar a isenção antes concedida, porque aquele que adquirira veículo com isenção segundo a Lei então em vigor, possui o direito adquirido a beneficiar-se da isenção até que perdure sua propriedade sobre o veículo, sustentando a autora, nesse contexto, que a modificação da Lei quanto ao valor do veículo para fim de isenção não pode atingir aqueles que adquiriram o veículo sob as condições da Lei então em vigor.
Citada, a ré contestou, sustentando que a isenção tributária depende de previsão expressa em Lei, a qual fixará as condições e requisitos para que o contribuinte dela possa beneficiar-se, e essas condições e requisitos podem ser modificados por uma novel Lei, aplicada a exercícios fiscais posteriores à sua entrada em vigor, o que se fez respeitar na Lei 16.498/2017, aplicada apenas a partir do exercício fiscal de 2018.
Registre-se que a autora teve negada a tutela provisória de urgência, como também não obteve, em agravo de instrumento, o efeito ativo.
Nesse contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.
Quanto ao mérito da pretensão.
Em virtude da Lei Estadual – SP de número 16.498/2017, o Estado de São Paulo deixou de conceder isenção ao IPVA quanto a veículos adquiridos por deficientes, cujo valor (segundo uma tabela que adota) seja superior a setenta mil reais. A autora, em 2016, adquirira veículo e naquele exercício fiscal e no seguinte obtivera a isenção, que, contudo, não lhe foi concedida neste exercício fiscal de 2018. Coloca-se em análise nesta demanda, pois, a aplicação do princípio da irretroatividade das leis, mas não apenas dele, porque será necessário também analisar se a modificação operada na Lei que prevê a isenção do IPVA sobre veículo adquiridos por deficientes, não violou o princípio da proteção da confiança e da boa-fé, princípio esse que tanto quanto o da irretroatividade da lei, radica diretamente no valor da segurança jurídica.
Importante observar que, em junho de 2007, o Supremo Tribunal Federal pela primeira vez iniciara uma discussão quanto à fixação do conteúdo e alcance dos princípios da irretroatividade da lei, da segurança jurídica e da proteção da confiança e da boa-fé em matéria tributária, embora ao final daquele julgamento (que tratava de créditos de IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados) não tenha identificado diferença de conteúdo e alcance entre esses princípios, quando aplicados em matéria tributária. De qualquer modo, como observou MISABEL DERZI (“A Irretroatividade do Direito, a Proteção da Confiança, a Boa-fé e o RE no. 370.682-SC”, in “Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, p. 299/325, Dialética editora, 2007), houve um avanço no exame dessa importante matéria.
De fato, é necessário considerar que o princípio da irretroatividade das Leis, conquanto seja uma decorrência direta das normas constitucionais que protegem a segurança jurídica – que é um valor fundamental no Estado de Direito –, não se confunde com o princípio da confiança e da boa-fé, nomeadamente quando se está no campo do direito tributário, no qual as relações jurídicas são de comum continuadas no tempo, como ocorre, por exemplo, no regime do IPVA, cujo fato gerador renova-se periodicamente. Assim, poderá ocorrer que uma nova lei, disciplinando situações futuras, não viole o princípio da irretroatividade das leis, mas poderá ter violado o princípio da confiança e da boa-fé do contribuinte, quando se modifica uma determinada situação, em função da qual antes o contribuinte beneficiara-se, convencido em razão de aspectos concretos, que manteria ao longo do tempo o mesmo benefício.
É o que ocorreu com a autora, que, em 2016, ao adquirir veículo com a isenção que estava prevista na Lei 13.296/2008, não poderia lobrigar que, em exercício fiscal futuro, viesse a perder a isenção, apenas porque o valor de mercado de seu veículo supera o limite fixado como uma nova condição, que na Lei em vigor em 2016 não existia.
A confiança, como destaca MISABEL DERZI no artigo mencionado, é de ser extraída com base em aspectos concretos da realidade material existente ao tempo em que a situação material de natureza tributária surgiu. Daí que, em 2016, ao adquirir o veículo, quando a Lei não impunha nenhum valor à isenção do IPVA sobre veículo adquirido por deficiente, convencida foi a autora de que essa condição não se modificaria ao longo do tempo, formando-se, pois, uma confiança quanto à segurança jurídica de que a isenção se manteria nos exercícios fiscais seguintes, aliás tal como ocorreu no exercício de 2017, o que, contudo, não sucedeu.
Assim, se sob o enfoque do princípio da irretroatividade da lei não se identifica ilegalidade (e as razões que estearam a Decisão de folhas 32/33 circunscreveram-se a considerar apenas aquele princípio), o mesmo não se pode concluir quando se dá especial atenção, como é de rigor, ao princípio da confiança e da boa-fé em matéria tributária. Há, pois, que se conferir proteção jurídica à autora, dando-se prevalência ao princípio da confiança e da boa-fé, violado pela introdução, em uma nova Lei, de uma condição (valor do veículo) não existente quando da aquisição do veículo em 2016, o que conduz à procedência do pedido, declarando-se a existência de relação jurídica que faz reconhecer em favor da autora a isenção, nos mesmos moldes em que a obtivera nos exercícios fiscais de 2016 e 2017.
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado por (…), declarando a existência de relação jurídica que lhe garante usufruir, neste exercício fiscal de 2018, da isenção do IPVA, nos mesmos moldes de que se beneficiou em 2016/2017, desobrigando-a, pois de suportar os efeitos da novel Lei 16.498/2017, que, sem justa causa, viola o princípio da confiança e da boa-fé. Concedo, nesta Sentença, a tutela provisória de urgência de natureza antecipatória, desobrigando a autora de suportar o pagamento da exação. Caso já tenha feito esse pagamento, surgirá o direito à restituição, a ser implementado em execução de sentença, com incidência de correção monetária e juros de mora, na forma como se aplicam a tributos. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil.
Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pela ré de ato de litigância de má-fé, não se lhe pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 23 de março de 2018.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO