AÇÃO CÍVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA RECURSAL. NORMAS URBANÍSTICAS QUE FORMAM O SUBSTRATO DA AÇÃO. COMPETÊNCIA DAS CÂMARAS DE DIREITO PÚBLICO

Apelação nº 1009450-34.2013.8.26.0053
Apelante: Municipalidade de São Paulo
Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo
Voto nº 2

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROVÉRSIA QUANTO À DESTINAÇÃO DE ÁREA PÚBLICA ADQUIRIDA PELO MUNICÍPIO EM DECORRÊNCIA DE LOTEAMENTO APROVADO E REGISTRADO – PRETENSÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO A MANTER-SE A DESTINAÇÃO ORIGINAL DA ÁREA PÚBLICA, TAL COMO FORA FIXADA NO PROJETO DO LOTEAMENTO – CONTROVÉRSIA QUE DIZ RESPEITO À MATÉRIA EXCLUSIVAMENTE DE DIREITO PÚBLICO – NORMAS URBANÍSTICAS QUE FORMAM O SUBSTRATO DA AÇÃO, CARACTERIZANDO-SE A COMPETÊNCIA DAS CÂMARAS DE DIREITO PÚBLICO PARA O EXAME DA AÇÃO – INTELECÇÃO DA RESOLUÇÃO 623/2013 DO TJSP – RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO – CONFLITO DE COMPETÊNCIA SUSCITADO.

RELATÓRIO
Ajuizou o MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO ação civil pública contra a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO com o objetivo de que se declare a existência de relação jurídica que mantenha a destinação de áreas públicas de acordo com o projeto de loteamento originariamente aprovado e registrado, cominando-se à ré a obrigação de observar essa mesma destinação, sobretudo por se tratar de área de proteção ambiental, reconhecendo-se a ilegalidade no ato administrativo que, alterando a destinação original da área, caracterizar-se-ia, segundo o MINISTÉRIO PÚLBLICO, como uma espécie de desafetação de bem de uso comum do povo, ou com efeitos fático-jurídicos quejandos a ela, sendo irrelevante que a nova destinação da área possa atender, ainda que sob outro fundamento jurídico e finalidade, ao interesse público.
Obteve o MINISTÉRIO PÚBLICO nestes autos a concessão de tutela provisória de urgência de natureza cautelar, o que determinou a mantença da destinação original da área. Registre-se a interposição de agravo de instrumento pela MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, controvertendo acerca dessa tutela de urgência, recurso ao qual a colenda 6ª. Câmara de Direito Público negou provimento.
A r. sentença, ratificando a eficácia da tutela provisória de urgência, julgou procedente a pretensão, cominando à ré a obrigação de abster-se da prática de qualquer ato que caracterize ou possa caracterizar alienação, cessão, concessão ou permissão de uso, ou ainda que a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO possa modificar a situação física ou jurídica da área, tendo a r. sentença fixado prazo para o cumprimento dessa obrigação, mas sem estabelecer multa para a hipótese de recalcitrância.
Recurso de apelação interposto pela ré (recurso dotado pelo juízo de origem de efeito apenas devolutivo), que pretexta com a prevalência do princípio constitucional que impõe e garante a separação de atribuições entre os Poderes legitimamente constituídos, violado, segundo a apelante, pela r. sentença na medida em que esta indevidamente interfere em espaço discricionário da Administração Pública, ao atribuir uma destinação à área, não apenas por se sobrepor ao poder da Administração de decidir sobre a sua destinação, mas nomeadamente por desconsiderar que ainda se realizam (ou então se realizavam), no âmbito administrativo, estudos e avaliações técnicas que nortearão o destino a ser dado à área, não se caracterizando, segundo a apelante, omissão estatal que justifique ou legitime a tutela jurisdicional, aspecto que, segundo a apelante, é de ser levado em conta também no campo das condições da ação.
Nesse mesmo contexto, sublinha a apelante que é de rigor qualificar-se a matéria sob controvérsia nesta ação como de interesse local, e sujeita por isso ao regramento legal que cuida do uso do solo, de seu parcelamento e ocupação, fixando a Constituição de 1988 uma competência exclusiva de regulação dessa matéria aos municípios, cujo poder discricionário deve assim prevalecer, reduzindo-se o campo de atuação da tutela jurisdicional, de modo que, segundo argumenta a ré, deve prevalecer o que foi fixado pela lei municipal – SP de número 13.430/2002, que fixa a política urbana a adotar-se quanto à destinação das áreas públicas adquiridas por meio de loteamentos aprovados e registrados, explicitando esse diploma legal quais os princípios e regras que devem ser tomados devam ser implementados, o que teria sido rigorosamente observado na lei 15.893/2013, que traz disposições específicas acerca da operação urbana denominada “Água Branca”, estabelecendo diretrizes que, segundo a apelante, foram devidamente sopesadas no caso presente, sobretudo quanto à necessidade de estudos técnicos que buscam supeditar e legitimar uma decisão administrativa de cunho discricionário quanto à destinação da área, destacando a apelante, outrossim, que não se controverte nesta ação civil pública quanto ao destino da área dada pelo loteador, diversamente do que constou na r. sentença, senão que se trata de ação em que se analisa se a área pública, depois que reservada e transferida à titularidade da Administração, pode ter a sua destinação original modificada pela Administração, se assim o recomendar o interesse público, não se configurando nesse caso, adscreve a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, a figura jurídica da desafetação de área pública, por não haver qualquer alienação de bem público à esfera privada, senão que a definição a ser dada a uma área que é e continuará a ser pública, destinação que deve suceder de acordo com o interesse público, aferido no campo exclusivo do poder discricionário do município.
É com base, pois, nessa linha de argumentação que a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO busca seja declarada a extinção anormal da ação civil pública pela carência de ação (por ausência do interesse de agir e/ou da impossibilidade jurídica do pedido), ou que então se dê provimento a seu recurso, com a integral reforma da sentença, declarando-se, pois, improcedente a pretensão.
Apresentadas contrarrazões pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
Recurso de apelação distribuído originariamente a colenda 6ª. Câmara de Direito Público deste egrégio Tribunal, que, por maioria de votos, dele não conheceu sob o argumento de que, em se tratando de ação civil pública que versa sobre loteamento, a competência é das Câmaras de Direito Privado, segundo a intelecção que extrai da Resolução de número 623 do TJSP.
Registre-se a novel intervenção da ASSOCIAÇÃO AMIGOS DE VILA POMPEIA, que alegando interesse jurídico, noticia que a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, descumprindo a medida liminar, teria iniciado procedimento de licitação sob a modalidade de concorrência com o objetivo de conceder a um particular a área objeto desta ação civil pública.
FUNDAMENTAÇÃO.
Dada a relevância da matéria, nos termos do que autoriza o artigo 138 do CPC/2015, admito, como “amicus curiae”, a intervenção da ASSOCIAÇÃO AMIGOS DE VILA POMPEIA, que poderá secundar a posição jurídico-processual do MINISTÉRIO PÚBLICO.
Divergindo do entendimento adotado – por maioria de votos – pela 6ª. Câmara de Direito Público, suscito conflito negativo de competência ao colendo Órgão Especial deste Tribunal, de modo que o meu voto é no sentido de que não se conheça do recurso de apelação.
Com efeito, a Resolução 623/2013, ao dispor sobre a composição do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, fixando-lhe a competência entre seções e câmaras, estabelece que as ações relativas a loteamentos, e que digam respeito ao controle e cumprimento de atos administrativos praticados em procedimento de sua aprovação ou de entrega de obras de infraestrutura e regularização de parcelamento do uso urbano, que essa matéria, pois, é da competência das câmaras de Direito Privado. Sucede, contudo, que o objeto desta ação civil pública não se subsume à norma da referida Resolução, porque o MINISTÉRIO PÚBLICO não controverte quanto ao loteamento, sua aprovação ou obras de infraestrutura, senão que quanto à destinação que é de ser dada a uma área pública.
Conforme pontifica HELY LOPES MEIRELLES, o loteamento urbano “é a divisão voluntária do solo em unidades edificáveis (lotes), com a abertura de vias e logradouros públicos, na forma da legislação pertinente” (“Direito Municipal Brasileiro”). Trata-se, portanto, de um procedimento administrativo cujo objetivo principal é a urbanização, que se leva a cabo por uma iniciativa do proprietário da gleba, que, planejando a sua divisão, submete à aprovação do Poder Público o projeto, o qual deve abarcar a forma como se deve dar a divisão das glebas para o registro imobiliário dos lotes, fixando-se também quais as áreas que formarão as áreas públicas e espaços livres, áreas que, aprovado o projeto do loteamento e levado a registro, passam ao domínio exclusivo do Poder Público municipal, ou seja, passam a ser áreas públicas, como é o caso da área que é objeto desta ação civil pública.
Quando se trata de loteamento urbano, incidem sobre ele normas legais de duas ordens, como ressalta HELY LOPES MEIRELLES, sendo por isso imperioso observar que ao loteamento aplicam-se normas civis – as quais regulam as relações jurídicas mantidas entre o loteador e os adquirentes dos lotes –, enquanto são de outra natureza jurídica e finalidade as normas urbanísticas, estas incidindo sobre o loteamento no que diz respeito às condições de habitabilidade e conforto do loteamento, mas também quanto à regulação da destinação das áreas públicas e espaços livres, que, aprovado o projeto do loteamento, passam a ser da titularidade do Poder Público municipal.
Note-se, porque de relevo ao exame da competência, que as normas de natureza urbanística, incidindo sobre os loteamentos, abarcam tanto a regulação acerca das condições do loteamento em si, quanto também regulam a destinação das áreas públicas e dos espaços livres, sendo esse aspecto de importância fundamental para fixar a competência. Pois quando discute sobre as condições de habitabilidade de um loteamento, ainda que se trate da aplicação de normas urbanísticas, sobreleva o direito subjetivo do adquirente do lote, materializado no querer que essas condições sejam adequadas ao uso do lote que adquiriu. Havendo, pois, um direito subjetivo que é do adquirente do lote, ainda que as normas de fundo (do direito material), sejam de natureza urbanística, para fim de fixação de competência é possível que a legislação considere o titular (ou suposto) titular do direito subjetivo, no caso, do adquirente do lote, para fixar a competência a uma câmara de Direito Privado, como ocorre no Regimento Interno deste Tribunal, que fixa a competência das Câmaras de Direito Privado quando a causa versa sobre o loteamento em si ou sobre as condições de sua infraestrutura, sendo irrelevante que no polo passivo esteja um ente público, ou que possam ser aplicadas, como normas de fundo, as normas urbanísticas.
Situação bastante diversa quando a ação não versa sobre o loteamento ou as condições de sua infraestrutura, senão quanto à destinação da área pública, que se torna pública quando o projeto de loteamento urbano é aprovado e levado a registro, como acontece nesta ação civil pública, em que o MINISTÉRIO PÚBLICO em absoluto discute sobre como se deu a aprovação do loteamento ou a forma como está disposta a sua infraestrutura em termos de habitabilidade. O que o MINISTÉRIO PÚBLICO, assinale-se porque de acentuado relevo, é a destinação que a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO pretende dar à área que recebeu por força da aprovação e registro do loteamento.
Destarte, nesta ação civil pública discute-se, portanto, acerca de normas puramente urbanísticas e que dizem respeito ao poder discricionário do município quanto à destinação de uma área pública, para o fixar mais restritamente de acordo com o que pugna o MINISTÉRIO PÚBLICO, ou para reconhecer em favor da MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, que esse poder está a ser legitimamente exercido. Note-se que o MINISTÉRIO PÚBLICO está a demandar – e o faz corretamente apenas contra a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, e não poderia fazer de modo diverso, porque não a ação civil publica não versa sobre direito subjetivo do loteador ou do adquirente, que teriam, quanto muito, um interesse apenas jurídico, e não um direito subjetivo sobre o tema que envolve a destinação de áreas públicas.
Pois bem, ao definir a competência das câmaras de direito privado para conhecerem de ações relativas a loteamentos e de sua infraestrutura, a Resolução 623/2013 levou certamente em conta o regime jurídico das normas legais que incidem sobre os loteamentos e dos direitos subjetivos que decorrem dessas mesmas normas, as quais são de natureza civil quando regulam as relações entre o loteador e os adquirentes dos lotes, mas que são de natureza urbanística – e portanto de Direito Público – quando versam sobre a destinação de áreas públicas e espaços livres, que, aprovado e registrado um loteamento urbano, passam a ser áreas da propriedade exclusiva do município.
A comprovar que a referida Resolução terá bem considerado esse duplo regime jurídico-legal está a expressa referência na norma legal a aspectos que digam respeito à aprovação e entrega das obras de infraestrutura do loteamento, bem como ao que se prende à regularização do parcelamento urbano, a impor ao intérprete a conclusão de que a competência está fixada no Regimento Interno deste Tribunal de acordo tanto com o objeto e a finalidade das normas urbanísticas aplicadas a loteamento, quanto com os direitos subjetivos envolvidos na ação.
E como é duplo o regime jurídico-legal que incide sobre a matéria de loteamentos (normas civis e urbanísticas), há sempre a necessidade de se perscrutar sobre o tipo de relação jurídico-material que forma o objeto da ação: se é de natureza civil ou se é de natureza urbanística, sendo necessário quanto à esta definir se as normas urbanísticas estão inseridas no contexto das relações jurídicas mantidas entre loteador, adquirente do lote e o Poder Público municipal, em que há um componente público na relação, mas não no mesmo grau que existe quando se trata de uma relação jurídica que diz respeito apenas ao Poder Público (como no caso desta ação, em que se discute sobre a destinação a ser dada uma área pública), elemento extraído do direito material e que é de acentuada importância para determinar a competência.
Ensina HELY LOPES MEIRELLES, em sua fundamental obra “Estudos e Pareceres” (vol. II), que as leis urbanísticas, por serem de ordem pública, prevalecem sobre as cláusulas convencionais do loteamento, pois que estas são disposições particulares estabelecidas no interesse restrito do loteador e dos adquirentes dos lotes, enfatizando o ilustre juspublicista que as normas urbanistas são de ordem pública, enquanto as cláusulas convencionais do loteamento são normas “especiais particulares”. Assim, a intelecção que se deve extrair da norma da Resolução 623/2013 deve-se ajustar a percuciente distinção levada a cabo pelo mestre HELY, donde se deve concluir que a competência das câmaras de Direito Privado, em matéria de ação de loteamento, circunscreve-se àquelas ações em que a controvérsia diga respeito apenas às relações jurídico-privadas mantidas apenas entre loteador e adquirente de lote, ou ainda àquelas ações nas quais a discussão abrange o Poder Público municipal, mas concernente às condições de habitabilidade do loteamento, porque se está aí em face de uma demanda que versa sobre “normas especiais particulares” e sobre direitos subjetivos do loteador e do adquirente do lote, e não de uma ação sobre normas urbanísticas, sendo que nestas a relação jurídico-material é de ser caracterizada como de direito público, seja pelo direito material aplicado, seja ainda pela presença do direito subjetivo do município, invocado como tal na ação.
Perscrutando, pois, quanto à causa de pedir que forma esta ação civil pública, verifica-se que a argumentação do MINISTÉRIO PÚBLICO em nada versa sobre a relação jurídico-privada firmada entre loteador e adquirente de lote, como também não diz respeito às condições de habitabilidade e de infraestrutura do loteamento, senão que versa exclusivamente sobre a destinação a ser dada àquelas áreas que, aprovado e registrado o loteamento, passaram a ser da propriedade da MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, o que significa dizer que nesta ação civil pública controverte-se quanto à destinação dessas áreas públicas, e por isso a relação jurídico-material, sobre a qual incidem normas urbanísticas, é de natureza de direito público, o que de resto justifica que a ação tenha sido promovida apenas contra o Poder Público municipal, e não contra o loteador ou contra o adquirente do lote, que teriam, quando muito, apenas um interesse jurídico no objeto da ação, tanto quanto o têm vizinhos do loteamento – um interesse jurídico, mas não um direito subjetivo, aspecto que também possui peso na definição da competência.
A propósito, são de natureza exclusivamente de direito público as normas urbanísticas quando dizem respeito à proteção ambiental, sendo de relevo anotar que o fundamento fático-jurídico desta ação civil pública está na proteção ambiental que envolve a destinação como áreas verdes daquelas áreas que passaram a ser da propriedade da apelante, a robustecer que a ação civil pública tem como objeto matéria puramente de direito público.
Por derradeiro, e como a bem evidenciar que o objeto desta ação civil envolve a aplicação de normas exclusivamente do direito público, está o fato trazido pelo “amicus curiae” em sua peça de folhas 419/421, noticiando a existência de um procedimento de licitação sob a modalidade de concorrência instaurado pela ré e que tem por objeto a área pública em questão, o que, só por si, demonstra que, nesta ação, não se controverte absolutamente sobre loteamento, senão que sobre destinação de área pública.
POSTO ISSO, suscitando conflito negativo de competência, meu voto é no sentido de que não se conheça do recurso de apelação, encaminhando-se os autos ao colendo Órgão Especial deste egrégio Tribunal.

VALENTINO ANDRADE
RELATOR