Processo número 1000881-92.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
A autora, (…), absolutamente incapaz, representada sua genitora, qualificadas a folha 1, invocando a validez e eficácia de um contrato de plano de saúde celebrado com a ré, (…), sustentando nesse contexto que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o melhor tratamento médico adequado a seu quadro clínico, observados os avanços da Ciência Médica, o que a ré, contudo, desconsidera, quando lhe nega o reembolso das sessões de psicologia quando superam o número de quarenta por ano, buscando a autora, nesse contexto, fático-jurídico, que se declare existir a cobertura contratual sem limitação ao número de sessões de psicologia, quantas sejam as necessárias ao tratamento a que a autora submete-se. Adota-se o rito comum.
Concedida a tutela provisória de urgência de natureza cautelar, cuja eficácia subsiste.
Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência das cláusulas que expressamente excluem a cobertura médica, obtemperando de primeiro que não se caracteriza como de urgência o tratamento em questão, de modo que a tutela provisória de urgência não pode ser concedida. Quanto ao mérito da pretensão, sustenta inexistir cobertura para terapias por métodos específicos, o que é de se aplicar ao caso presente, devendo se observar o número-limite de sessões de psicologia, fixado no contrato.
Réplica apresentada.
Pela procedência do pedido, assim se posicionou o MINISTÉRIO PÚBLICO, como está em seu r. parecer.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO e DECIDO.
A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.
Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.
Quanto ao mérito da pretensão.
Instala-se um conflito de interesses, na medida em que a autora busca obter, com base em contrato, o reembolso integral de tantas quantas forem as sessões de psicologia necessárias a seu tratamento, limitando o contrato o reembolso de apenas quarenta sessões. Controverte-se neta demanda acerca da existência de uma relação jurídico-contratual que limite ou não possa limitar o custeio ou reembolso integral das sessões que superem aquele número previsto no contrato.
Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca cláusula contratual que limita o número de sessões para o tratamento psicológico a que a autora submete-se. Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem a autora e a ré.
A grave patologia de que acometida a autora, diagnosticada com “Transtorno do Espectro Autista”, tem sido objeto de estudos científicos que permitiram com que nos últimos anos houvesse um considerável avanço no tratamento dos pacientes, surgindo em especial uma terapia que tem propiciado um tratamento comportamental mais eficiente. Refiro-me à terapia “ABA – Applied Behavior Analysis”, criada e desenvolvida por pesquisadores nos Estados Unidos e que consiste basicamente no reforço de comportamentos positivos do paciente. Essa terapia conta com importantes estudos científicos que aferiram e comprovam a sua eficácia terapêutica.
A Ciência Médica, assim também a Psicologia não são, obviamente, ciências estáticas, senão que mui dinâmicas, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina e da Psicologia, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam a autora e a ré.
Destarte, tratando-se de uma terapia cuja eficácia terapêutica está devidamente comprovada, daí resulta que, limitar o número de sessões para a aplicação dessa terapia comportamental, quando a prescrição indica a necessidade de um número superior àquele previsto em cláusula contratual, é colocar a esfera jurídica da autora aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar à autora o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.
Quer a ré, outrossim, amparar-se em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual. Mas essa posição não subsiste. Duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.
O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais medicamentos e tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente, e o mesmo se há considerar para a limitação de número de sessões de uma terapia cuja eficácia terapêutica têm-se como demonstrada. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado remédio ou medicamento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções instituições são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.
O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo gerar, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como se enfatiza nesta sentença, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.
Enfatize-se que, com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.
Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.
De forma que, ponderando os interesses em conflito, decido deva prevalecer a posição jurídica da autora, cuja esfera estaria sob uma injustificada desproteção contratual lhe pudesse ser negado o custeio ou o reembolso integral de tantas quantas forem necessárias as sessões para a aplicação da referida terapia (“ABA”), desde que realizadas em clínica da rede credenciada da ré.
POSTO ISSO, ponderando os interesses em conflito, entendo que a liberdade contratual, na medida em que a ré a invoca, colocaria, se prevalecente essa medida, a posição jurídica da autora aquém de uma proteção mínima, e por isso, interpretando as normas contratuais, e as aplicando diante dos argumentos que foram mencionados, decido deva prevalecer a posição jurídica da autora, de modo que lhe reconheço o direito subjetivo a contar com a cobertura contratual para abarcar o custeio ou reembolso integral de tantas quantas forem necessárias as sessões de psicologia para aplicação da terapia “ABA”, não prevalecendo, portanto, o limite do número de sessões tal como previsto no contrato, desde que essas sessões ocorram em clínica da rede credenciada da ré, JULGANDO PROCEDENTE o pedido, transmudando em tutela provisória de urgência de natureza antecipada aquela que, sob a feição cautelar, fora concedida no início deste processo. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Condeno a ré a reembolsar a autora do que esta despendeu com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condeno a ré também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença; o MINISTÉRIO PÚBLICO, pessoalmente.
São Paulo, em 28 de setembro de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO