Processo número 0039139-33.2019
3ª. Vara do Juizado Especial de Fazenda Pública
Comarca da Capital
Vistos.
Sob dois fundamentos jurídicos, a autora, (…), qualificada a folha 1, afirma a ilegalidade do ato administrativo que lhe está a impor a restituição de valores que recebeu a título de determinada vantagem pecuniária. Assim é que alega que, em tendo recebido de boa-fé tais valores, não poderia ser obrigada a devolvê-los. E ainda, que a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, não cuidou instaurar procedimento, quando pretendeu a restituição dos valores, o que viola o devido processo legal.
Citada, a ré contestou, sustentando que é irrelevante ter ou não havido boa-fé no recebimento dos valores, senão que deve prevalecer o fato objetivo de que a autora os recebeu, e a eles não tinha direito. Admitiu o fato de não ter instaurado procedimento, mas obtemperou que para a hipótese não havia obrigatoriedade.
Nesse contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.
É parcialmente procedente o pedido, e com ressalva.
Muito embora não houvesse nenhuma regra legal autorizativa, firmou-se na jurisprudência brasileira o entendimento de que o servidor público não é de ser obrigado a ressarcir aos cofres públicos valores que recebeu indevidamente, se os recebeu “com boa-fé”. Mas além de não haver nenhuma regra legal em nosso Ordenamento jurídico que legitimasse tal entendimento jurisprudencial, tem-se ainda a considerar que esse entendimento olvida de um consolidado princípio geral e que, por tão consolidado, tornou-se regra em nosso Código Civil de 2002, que em seu artigo 884, estabelece que: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”. Regra geral do Código Civil que se aplica inclusive às relações que a Administração mantém com seus servidores públicos.
Segundo essa regra geral, veda-se o enriquecimento sem causa. A dizer: aquele que, sem justa causa, recebe indevidamente algum valor, deve ressarci-lo, corrigido monetariamente. Note-se que tal regra não se refere a nenhum elemento subjetivo no ato de receber, bastando que se considere não haver nenhuma causa que o legitimasse juridicamente, para obrigar a restituição. Assim, o entendimento jurisprudencial referido não pode mais prevalecer, porque desatende à referida regra geral.
Mas ainda que se pudesse considerar o elemento subjetivo (a boa-fé), no caso presente ela não se configura, de modo que a obrigação da autora de restituir o que indevidamente recebeu a título de vencimentos é de prevalecer.
Ocorre, entretanto, que a ré não cuidou observar o devido processo legal, porque não instaurou regular procedimento para que pudesse analisar a defesa que a autora teria o direito de apresentar.
A partir da Constituição de 1988, tornou-se claro que também à Administração, nos atos que pratica e que podem produzir efeitos contra a esfera jurídica dos particulares, inclusive dos servidores públicos, o devido processo legal tem inteira e obrigatória aplicação, o que significa dizer que a ré tinha sim a obrigação legal de instaurar procedimento para apuração das circunstâncias em que o pagamento da vantagem pecuniária ocorreu, e, nomeadamente, para conceder à autora o direito ao contraditório e à ampla defesa, direitos que estão enfeixados no princípio do devido processo legal. Como dessa obrigação não se desincumbiu a autora, é ilegal, sob o aspecto formal, o ato administrativo que está a produzir efeitos contra autora.
Assim, declara-se a ilegalidade formal (e apenas formal) do ato em questão, para obrigar à ré faça instaurar regular procedimento, notificando a autora para lhe permitir o direito ao contraditório e à ampla defesa, tal como determina o princípio do devido processo legal, proferindo ao cabo do procedimento decisão a respeito da matéria, podendo se beneficiar da coisa julgada material quanto ao decidido nesta sentença quanto ao pedido de restituição de valores (que se julga improcedente), se assim entender conveniente fazer. De rigor, esclarecer-se essa situação processual.
A autora optou por cumular pretensões neste processo, discutindo, pois, tanto acerca da validez substancial do ato, quanto de seu aspecto formal. Reconheceu-se-lhe o direito apenas quanto à invalidez formal do ato, o mesmo não sucedendo quanto ao ato sob seu aspecto material, pois que se decidiu que a ré possui o direito a receber em restituição os valores que pagou à autora a título de determinada vantagem pecuniária. Em se formando a coisa julgada material, terá ficado definitivamente decidido que a ré possui o direito a impor à autora a restituição de valores, desde que observe o devido processo legal, instaurando regular procedimento, ao cabo do qual poderá se aproveitar da coisa julgada material, para simplesmente aplicar o comando jurisdicional obtido nesta sentença, se assim entender conveniente fazer, dado que a parte que se beneficia da coisa julgada material pode dela abrir mão.
Ratifica-se a tutela provisória de urgência de natureza cautelar, que se mantém nesta Sentença.
POSTO ISSO, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido e com ressalva, para assim declarar a nulidade formal (e apenas formal) do ato administrativo que está a impor à autora a restituição de valores recebidos a título de determinada vantagem pecuniária, obrigando-se a ré a fazer instaurar regular procedimento, com a notificação da autora para apresentação de defesa, segundo o que exige o devido processo legal. Tutela provisória de urgência cautelar mantida. IMPROCEDENTE o pedido quanto a se desobrigar a autora à restituição de valores. Declaro extinto o processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Sucumbência recíproca. Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pela autora e pela ré de ato de litigância de má-fé, não se lhes pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 9 de setembro de 2020.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO