UBER E A LIVRE CONCORRÊNCIA COM OS TÁXIS

Processo número 1042738-65.2016

Juízo de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública

Comarca da Capital

Vistos.

Os autores, (…), qualificados as folhas 3/6, exercem a atividade de motoristas/taxistas e estão nesta demanda que ajuízam contra a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO e a empresa denominada UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LIMITADA, estabelecida nesta Capital, a questionar tanto a forma quanto o conteúdo do Decreto de número 56.981/2016, da Prefeitura de São Paulo, argumentando que, ao regulamentar a atividade de transporte individual remunerado de passageiros, a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO não considerara aspectos de importância à matéria, deixando de impor àqueles que realizam essa atividade as mesmas exigências que faz submeter os taxistas, criando uma situação de desigualdade que favorece a concorrência desleal, além de arrostar dispositivos da Lei federal de número 12.468/2011, que em seu artigo 2º. fixa expressamente que o transporte individual remunerado de passageiros somente possa ser realizado por taxistas, a conduzirem veículos que estejam dotados com “taxímetro”, não dando lugar a que outro tipo de serviço de transporte individual de passageiros possa existir ou ser criado pelo município, pugnando os autores, nesse contexto, por se lhes conceder a tutela provisória de urgência, fazendo imediatamente suspender toda a eficácia do referido Decreto municipal, e que, em consequência, seja a ré, UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LIMITADA, obstada de continuar a oferecer seus serviços de transporte individual remunerado de passageiros.

Os autores, exercendo a atividade de taxistas no município de São Paulo, estão a suportar os efeitos da implantação de um novo serviço de transporte individual remunerado de passageiros, efeitos que não são apenas financeiros, mas também jurídicos, já que estão a invocar a proteção decorrente de direitos fundamentais que estão previstos em norma constitucional, como são os direitos que buscam proteger a igualdade de condições no exercício de atividades profissionais e os que garantem o livre exercício de qualquer atividade profissional, desde que atendidas as qualificações profissionais que a Lei preveja. Possuem os autores, na condição jurídica que invocam, legitimidade para a propositura desta ação, porque não possuem apenas um interesse jurídico na discussão judicial do tema, mas um direito subjetivo de ação, porque bem demonstram os prejuízos que estão a suportar com a aplicação do Decreto municipal de número 56.981/2016, cujos efeitos concretos permite se conclua que não estão os autores a discutir sobre lei em tese.

A existência de outras ações nas quais se discute acerca do tipo de transporte que a ré, UBER, vem realizando no município de São Paulo, não configura óbice a que desta ação se conheça, porque há que se considerar o que forma a causa de pedir desta ação, que, à partida, não parece ser idêntica àquela que forma o objeto das outras ações.

Examina-se, pois, em cognição sumária, o que sustentam os autores.

O surgimento de aplicações tecnológicas permitiu que se criassem plataformas de novos serviços para antigas ou novas atividades, com importantes reflexos em vários segmentos, como, por exemplo, em livrarias, hotéis, e também nos transportes de passageiros e de cargas. Não há dúvida que essas plataformas tecnológicas caracterizam-se por serem um novo serviço que surge disputando espaço em um mercado que já existe, e como todo empreendimento, buscam prevalecer no mercado em que atuam – e como atuam como plataformas tecnológicas, os novos serviços surgem gerando menos custos, o que lhes permitem um preço melhor e uma clientela que logo conquistam, no que a qualidade dos serviços que realizam também é fato primordial. Por óbvio, aqueles que atuavam no mercado sofrem os efeitos da concorrência com os serviços que surgem com as novas plataformas tecnológicas, em um regime de concorrência que é de ser incentivado pelo Estado, como se dá em nosso País, cuja constituição assegura a livre concorrência (artigo 170, inciso IV).

Mas ao se tratar da livre concorrência, é necessário proceder-se a uma importante distinção entre atividades que são reguladas apenas pelo mercado, daquelas atividades que são reguladas pelo Estado, ao qual cabe, pois, disciplinar e regular a forma como esses serviços devam ser realizados, buscando implantar um regime que observe a igualdade de condições entre todos aqueles que queiram realizar o serviço, bem assim quando o realizam. Tratando-se, pois, de uma atividade sob regulação estatal, a livre concorrência deve ser prestigiada, mas ao Estado impõe-se o dever de regular a forma como ela deva ocorrer, exigindo-se-lhe faça observar sempre um regime de igualdade de condições como um aspecto prevalecente, o que é exigência direta do princípio da igualdade real de condições.

Destarte, diversamente do que se dá em atividades não reguladas pelo Estado, naquelas atividades reguladas a livre concorrência deve coexistir com o regime da igualdade de condições, o que equivale a dizer que são dois princípios que devem andar juntos. Assim, tratando-se de um mesmo tipo de serviço que tenha autorizado, o Poder Público não pode estabelecer condições diversas de tratamento, seja quanto a exigências para essa autorização, seja também para o exercício em si das atividades, porque sobre considerar a questão da livre concorrência, deve o Estado observar rigorosamente o princípio da igualdade, não exigindo de um o que não exige de outro, quando as condições forem as mesmas.

Esse aspecto – de que as condições sejam as mesmas – é aquele de maior relevo quando se analisam as novas plataformas tecnológicas, quando aplicadas a serviços regulados pelo Estado. Como são novas plataformas, exercendo serviços que, executados sob uma nova forma, podem ser caracterizados como um novo serviço, a regulação legal que existe normalmente não se pode aplicar, por falta de parâmetros de regulação, criando-se uma situação desafiadora tanto ao Legislador, que deve, tanto quanto possível, aproximar a Lei da realidade subjacente, regulando os serviços que surgem com as novas plataformas tecnológicas, sobretudo quando se cuidem de serviços que são delegados pelo Poder Público, quanto ao Poder Judiciário, quando lhe é submetido o exame de questões que surgem quando essa nova regulação legal ainda não existe, mas que devem ainda assim ser enfrentadas, porque ao garantir a Constituição da República de 1988 o direito de ação e o Código de Processo Civil o de impedir a denegação de justiça (artigo 140), deve o Poder Judiciário, mesmo ausente Lei, julgar a matéria, quando há direitos individuais a serem afetados.

É nesse contexto, pois, que se deve examinar a pretensão dos autores, que a como se fez referência, sustentam que o Decreto de número 56.981/2016, ao regular o serviço de transporte individual remunerado de passageiros por outra forma que não o táxi, estaria a violar a Lei federal de número 12.468/2011, e que teria criado um regime desigual de condições àqueles que exercem a atividade, diversamente do que o mesmo Poder Público impõe aos taxistas, quando, por exemplo, exigem o uso de taxímetro, a frequência a cursos, vistoria dos veículos.

A princípio, pelo que é dado analisar em cognição sumária, parece ocorrer que o serviço de transporte de passageiros que o referido Decreto regulamentou é diverso daquele que o táxi realiza, e por serem diferentes tais serviços, o Poder Público poderia regulamentá-los de forma diversa, para, por exemplo, dispensar o uso de taxímetro, ou de não exigir de um (o curso ou a vistoria do veículo) o que não exige doutro, embora se possa questionar se essa dispensa não estaria a colocar em risco a eficiência do serviço.

Mas ainda que se cuidem de serviços diversos, não há como não considerar o serviço do táxi e o realizado pela ré, UBER, sob plataforma tecnológica, como serviços de uma mesma natureza, porque ao transportarem o passageiro individual mediante remuneração, operam em um mesmo segmento de atividade, e atuam assim em concorrência. Concorrência que no caso de serviços regulados pelo Poder Público deve ser livre, mas que deve também ser justa, no sentido de que não faça o Poder Público por criar regras que favoreçam uma determinada empresa, como ocorre, por exemplo, quando não impõe limites ao número de veículos que podem ser cadastrados e utilizados no serviço.

Ainda que se possa considerar diferente do serviço do táxi o serviço que a ré UBER realiza, o fato de a Prefeitura de São Paulo ter editado o Decreto de número 56.981/2016 mostra e comprova que a ré tem esse serviço como um serviço que é de ser autorizado pelo Poder Público, tanto quanto o do táxi, e sendo assim os princípios da livre concorrência e da igualdade de condições devem coexistir e serem rigorosamente observados. A dizer: se a MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO considerou que o serviço da ré UBER é um serviço que é objeto de regulação, tanto quanto o do táxi, não poderia tolerar ou incentivar que a concorrência se dê em condições de desigualdade, como fez quando deixou de impor um limite no número de veículos, deixando sem qualquer regulação essa matéria, o que além de criar um regime de desigualdade com os taxistas (que operam em um determinado limite de veículos, fixado esse limite em Lei), não encontra nenhum justo motivo que pudesse legitimar essa opção, sobretudo se sindicada sob o “standard” da razoabilidade, a ser consultada sempre quando em causa o princípio da igualdade real de condições, por se tratar de um princípio que a nossa Constituição da República de 1988 expressamente protege.

De tudo o que se expôs, pode-se concluir que, examinando em cognição sumária o que sustentam os autores, há que se reconhecer plausibilidade jurídica quando argumentam que o Decreto 56.981/2016 criou e incentivou um regime injusto de desigualdade de condições, ao não impor qualquer limite de veículos a serem utilizados no serviço de transporte individual de passageiros por plataforma tecnológica mantido e gerido pela ré, UBER, seja por deixar de exercer aí uma forma de controle que seria de se exigir em face de um serviço delegado sob autorização do Poder Público, seja por permitir que haja um número muito maior de veículos utilizados nesse serviço em relação aos táxis, cujo limite é fixado por Lei, cabendo enfatizar-se, quando se trata do princípio da igualdade real e material, que “as vantagens estabelecidas por lei, para serem constitucionalmente admissíveis, dependem, não só da existência de um fundamento material razoável para a correspondente discriminação positiva mas também da verificação de que o grau de diferenciação ou a medida da diferença têm uma suficiente justificação”, conforme destacam os ilustres constitucionalistas portugueses, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (“Constituição Portuguesa Anotada”, p. 233, tomo I, Coimbra editora).

POSTO ISSO, presentes os requisitos legais, assim a par e passo com a plausibilidade jurídica uma situação de risco concreto e atual a que estão os autores ora submetidos, uma situação de risco concreto e atual que exige controle jurisdicional, CONCEDO, em parte, a tutela provisória de urgência cautelar, para obrigar a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, a regulamentar, no prazo máximo de trinta dias, o número de veículos que sejam autorizados a exercer a atividade de transporte individual remunerado de passageiros por meio de plataforma tecnológica, limite que a ré, UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LIMITADA, deverá observar, sob as penas que essa regulamentação fixar. Recalcitrante, a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, suportará multa diária fixada em R$500.000,00 (quinhentos mil reais), patamar que se revela azado às circunstâncias da lide. Com urgência, sejam as rés intimadas a cumprirem imediatamente esta Decisão, sob as penas da Lei.

Citem-se as requeridas. Utilizar-se-á esta Decisão como mandado.

Gratuidade concedida a todos os autores; anote-se.

E considerando a possibilidade de haver interesse público subjacente à demanda, entendo conveniente fazer levar ao MINISTÉRIO PÚBLICO o conhecimento da lide, para eventual intervenção.

Int.

São Paulo, em 27 de setembro de 2016.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

JUIZ DE DIREITO

1 thoughts on “UBER E A LIVRE CONCORRÊNCIA COM OS TÁXIS

  1. Matheus Martins says:

    De fato: argumentação muito bem encaixada e extremamente lógica. Resultado de muito estudo, dedicação e persistência – qualidades inerentes a todos os amantes e estudiosos do Direito. Qualidades essas que o Dr. Valentino tem e demonstra com brilhantismo nesse texto.

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