SIGILO E AUTORIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.

O STF está a examinar se o Fisco e o Ministério Público podem receber informações de órgãos de controle de movimentação financeira dados que subsidiem investigações, sem que haja prévia autorização do Poder Judicíario. Em 2013, proferi decisão acerca desse mesmo tema, analisando o poder do Fisco de, com base na Lei Complementar nacional de número 105/2001, obter diretamente (sem autorização do Poder Judiciário, pois) dados de movimentação bancária para apuração de eventual sonegação fiscal. Dada a importância do tema, revela-se oportuno reproduzir aquela decisão, para que o leitor possa conhecer, com maior profundidade, do que está em causa no julgamento do STF.

Vistos.

  1. Seguindo uma tendência de países desenvolvidos, o Brasil fez dotar o Fisco do poder de ter acesso direto (sem a necessidade de autorização judicial, pois) a dados bancários de seus contribuintes, de modo que, conhecendo desses dados e os cotejando com as informações prestadas pelos contribuintes, possa apurar se houve ou não evasão fiscal. Para tanto, fez editar a Lei Complementar Federal de número 105/2001. Vale lembrar que até a entrada em vigor dessa Lei, o Fisco necessitava de autorização judicial para o acesso a dados bancários dos contribuintes, conforme lhe exigia o artigo 38 da Lei Federal de número 4.595/1964. Ampliado, assim, o poder de polícia do Fisco brasileiro em busca da eficiência, a mesma eficiência que é exigida do Poder Público em geral, conforme estatui o “caput” do artigo 37 da Constituição da República de 1988.
  1. De acordo com o artigo 5o., parágrafo 2o., da Lei Complementar 105, “As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”, podendo o Fisco, outrossim, segundo o parágrafo 4o. desse mesmo artigo, requisitar as informações que entender necessárias a partir da análise dos dados bancários dos contribuintes, realizando, se a hipótese justificar, uma fiscalização direta no estabelecimento do contribuinte. Dotado o Fisco brasileiro, portanto, de todos os mecanismos adequados a coleta de informações econômicas de seus contribuintes, poder que se justifica em face do evidente interesse público que envolve o campo da tributação, principal fonte de receita estatal.
  1. Ao Estado, por isso, o nosso Ordenamento Jurídico em vigor confere um direito fundamental à busca de uma arrecadação real, verdadeira e eficiente, de acordo com a capacidade econômica de seus contribuintes, pois conforme prevê o artigo 145, parágrafo 1o., da Constituição da República de 1988, “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. Destarte, possui o Fisco o direito fundamental de poder identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, tudo de modo que possa, com eficiência, obter as informações necessárias a analisar se o valor recolhido pelo contribuinte é condizente (a dizer, real) com a tributação que por Lei a ele é imposta.
  1. Mas, ampliado o poder de polícia do Fisco, consequentemente há uma restrição à liberdade do contribuinte, a cujos dados bancários o Fisco passou a ter acesso direto com a entrada em vigor da Lei Complementar 105, surgindo, assim, um conflito de direitos fundamentais: de um lado, o interesse do Fisco em ser o mais eficiente possível na atividade de arrecadação de tributos; de outro, o interesse do contribuinte em preservar sob sigilo os dados de sua vida econômica, quando consubstanciada em dados bancários.
  1. E em havendo colisão de tais direitos fundamentais, a sua solução passa necessariamente pela aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade, ponderando-se no caso em concreto entre os dois direitos na busca de um equilíbrio, o que é de rigor realizar-se neste processo, agora em cognição sumária, já que a autora, (…_), pugna pela concessão de medida liminar nesta demanda que promove contra a FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pela qual questiona a autuação que lhe foi aplicada pelo auto de número 3.130.047-9.
  1. Levando-se a cabo, em cognição sumária, a ponderação entre os interesses envolvidos, desde logo sobreleva considerar que em nosso Ordenamento Jurídico em vigor não há o primado absoluto do direito ao sigilo bancário, pois que em situações justificadas pode o Poder Público quebrar esse sigilo, se está presente o interesse público. A dizer: não basta que o contribuinte invoque o direito fundamental ao sigilo para que se lhe dê proteção; é necessário, com efeito, que se analise a situação concreta em que instalado o conflito com o Poder Público, ponderando-se as circunstâncias subjacentes, para determinar qual direito (do contribuinte ou do Estado) deva prevalecer.
  1. No caso em questão, pelo que é dado conhecer da documentação até aqui apresentada, verifica-se que o Fisco do Estado de São Paulo teve acesso direto aos dados bancários da autora (que lhe foram fornecidos pelas operadores de cartão de crédito/débito), e conhecendo desses dados, identificou que a autora recolheu a título de ICMS, em determinado período (janeiro de 2007 a dezembro de 2008), valores inferiores àqueles que indicam as mesmas operações bancárias, apurando o Fisco um débito de quantia superior a novecentos mil reais, que a autora teria, segundo o Fisco, deixado  de recolher a seus cofres, autuando-a por isso, não sem antes de a ela conceder o direito de defesa. Assim, examinando-se em cognição sumária esse contexto fático-jurídico, não se vislumbra tenha o Fisco do Estado de São Paulo praticado ilegalidade (pois que o acesso direito a dados bancários da autora lhe é garantido pela Lei Complementar 105), e nem agido com excesso, porquanto utilizou azado mecanismo, assim previsto em Lei, e para um fim justo, que é o de ter acesso aos dados do contribuinte, para apurar se ele recolheu ou não a tributação no valor devido. De modo que sob esse enfoque, não teria o Fisco do Estado de São Paulo, em tese, incorrido em qualquer ilegalidade ou desvio de poder, tendo, aliás, instaurado procedimento administrativo, obedecendo  o devido processo legal “processual”, em que a autora teve direito de defender-se e de produzir provas, tendo podido inclusive levar seu inconformismo ao Tribunal de Impostos e Taxas, na esfera recursal administrativa. Quanto à questão de a investigação ter se iniciado antes da instauração do procedimento administrativo, conforme alega a autora, não parece ter havido aí nenhuma situação de ilegalidade, porquanto a Lei Complementar 105 prevê que o Fisco tenha acesso aos dados bancários, analisando-os para determinar se há ou não indício de evasão fiscal, somente se justificando a instauração do procedimento administrativo se esses indícios revelam-se configurados. O acesso direto a dados bancários contribuinte é, portanto, uma medida preventiva assegurada ao Fisco no exercício de seu poder de polícia.
  1. Aplicando-se, assim, o princípio da proporcionalidade, ponderando-se com ele os interesses da autora na preservação de seu sigilo bancário, e os do Fisco do Estado de São Paulo na busca de uma arrecadação eficiente e real, não identifico, no caso presente, tenha o Fisco agido com excesso de poder, senão que sua atividade de investigação encontra-se justificada pelas circunstâncias subjacentes, em investigação que, a princípio, relevou-se produtiva, porquanto identificada, em tese, a prática pela autora de evasão fiscal. Quanto a alegação da autora de que os dados bancários, só por si, não indicariam a sonegação fiscal, tem-se que essa alegação não afasta a presunção de veracidade do ato administrativo consubstanciado na atuação fiscal, dependendo de produção de prova (contábil) que possa robustecer o que a autora alega em sua peça inicial, sem ainda o peso necessário a obliterar aquela presunção.
  1. Por não identificar, pois, verossimilhança ou sequer plausibilidade jurídica no que alega a autora, nego-lhe a tutela emergencial.
  1. Cite-se.
  1. Entendo necessário levar ao conhecimento do MINISTÉRIO PÚBLICO (à sua Promotoria de Justiça de Repressão à Sonegação  Fiscal) o conteúdo desta causa, para eventual intervenção na lide.

                                      Int.

                                      São Paulo, em 13 de junho de 2013.

                                      VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

                                               JUIZ DE DIREITO