Processo número 1052696-36.2020
3ª. Vara do Juizado Especial de Fazenda Pública
Comarca da Capital
Vistos.
A lei complementar de número 173/2020, em seu artigo 8º., inciso IX, veda que a União Federal, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios contem como tempo de serviço para diversos fins, no regime jurídico dos servidores públicos em geral, o período em que se configura uma situação de calamidade pública, em razão da pandemia pelo “Covid”, de modo que esse período não pode ser aproveitado em diversas vantagens pecuniárias, com destaque para o adicional por tempo de serviço, sexta-parte e licença-prêmio. O autor desta demanda, que é policial militar, controverte quanto à legalidade desse dispositivo legal, alegando, em resumo, que é da competência exclusiva do Estado-membro, nos termos da Constituição de 1988, regular acerca do regime jurídico do servidor público estadual, de modo que, em seu entender, a norma federal teria sobre-excedido seu limite de competência, revelando aí a sua ilegalidade.
Negou-se a tutela provisória de urgência, não havendo notícia da interposição de recurso.
Citada, a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, contestou, sustentando que, nos termos do artigo 24, inciso I, da Constituição de 1988, é da competência exclusiva da União Federal o legislar sobre direito financeiro, e por isso as normas gerais que a esse título a União editou aplicam-se a todos os entes públicos, de sorte que a lei complementar 173/2020, nomeadamente seu artigo 8º., inciso IX, aplica-se também ao Estado de São Paulo, que por isso deve obediência a essa norma legal, ainda que efeitos patrimoniais tenham alcançado a esfera jurídica de seus servidores públicos, porque há se considerar que a matéria disciplinada na lei – finanças públicas – é que deve ser considerada de modo prevalente, sobretudo diante da finalidade da norma, que é a de controlar as despesas públicas em geral, solapadas por efeitos decorrentes da pandemia, tendo a lei federal adotado medidas condizentes com o alcançar-se um controle diante de uma situação de calamidade pública.
Nesse contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.
Quanto ao mérito da pretensão.
Como contrapartida ao socorro financeiro que prestará aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal em decorrência da crise econômica causada pela pandemia, a União Federal impôs-lhes determinadas exigências e condições. É o que está previsto na lei complementar 173, de 27 de maio de 2020.
Uma das condições está prevista no artigo 8o., inciso IX, que obsta que esses entes públicos considerem o período compreendido entre março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 como tempo de serviço para aproveitamento em diversas vantagens pecuniárias, como no adicional por tempo de serviço, sexta-parte e na licença-prêmio. Eis o texto legal em questão, discutido nesta demdanda:
“Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:
(…)
IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.
(…)”.
Assim, durante esse período, as vantagens pecuniárias enumeradas na norma legal, embora por essa mesma norma não tenham sido suprimidos, terão a sua eficácia suspensa.
Daí a questão que se coloca: a Lei pode interromper o cômputo do tempo de serviço para esse fim, invocando a proteção às finanças públicas diante de uma situação de calamidade?
Segundo HELY LOPES MEIRELLES em sua conhecida obra “Direito Administrativo Brasileiro”, a lei pode instituir uma vantagem pecuniária sob a modalidade de um adicional por tempo de serviço, quando melhor quer remunerar o servidor público pelo exercício de sua função, como uma forma, pois, de recompensá-lo pelo tempo em que se mantém no exercício do cargo, segundo as condições que a lei preveja. No caso do adicional por tempo de serviço, da sexta-parte e da licença-prêmio, trata-se, assim, de vantagens pecuniárias que levam em conta o tempo, formando este – o tempo de serviço – o elemento nuclear desse tipo de vantagem pecuniária.
No exercício do poder discricionário que a Constituição da República de 1988 confere-lhe, pode a Administração, a seu critério, editando lei, suprimir “para o futuro” o adicional por tempo de serviço, como ressalva HELY na obra mencionada.
Trata-se de um poder discricionário conferido por norma constitucional aquele que diz respeito à supressão de uma vantagem pecuniária. Um poder discricionário que, como adverte RONALD DWORKIN em seu livro “Levando os Direitos a sério”, não significa reconhecer que a Administração esteja livre para decidir sem recorrer a padrões de bom senso e de equidade, ou ainda que esteja livre para decidir da forma como queira decidir. As normas constitucionais, as mesmas normas constitucionais que conferem o poder discricionário, também fixam determinados padrões, que podemos melhor chamar de “garantias” ou de “direitos subjetivos”, reconhecidos em favor dos servidores públicos, como é imperioso observar quando o poder discricionário age no campo das relações de trabalho entre a Administração e o servidor público.
Donde se deve concluir que, embora a Administração possa, exercendo um poder discricionário, extinguir uma vantagem pecuniária, deve necessariamente observar os padrões fixados pela Constituição de 1988, que são garantias em função das quais se deve reconhecer em favor do servidor público determinados direitos subjetivos.
Destarte, pode a Administração extinguir uma vantagem pecuniária, mas com efeitos projetados apenas para o futuro, de modo que respeite a esfera jurídica do servidor quanto a direitos subjetivos que, fundados no fator tempo, estejam a se formar, como se dá nos casos do adicional por tempo de serviço, sexta-parte e licença-prêmio.
“Para o futuro”, quer significar que a lei terá que respeitar o direito adquirido do servidor público que estiver a computar o tempo previsto na lei que preveja a concessão do adicional por tempo de serviço, de modo que esse tempo deverá ser considerado, computado e aproveitado para o adicional, a ser concedido e apostilado tão logo o tempo previsto em lei tenha sido completado.
Destarte, a Lei pode suprimir para o futuro o adicional por tempo de serviço, como também a sexta-parte ou a licença-prêmio, assim como qualquer vantagem pecuniária que tenha como núcleo o aspecto temporal, mas terá que respeitar o direito adquirido daquele servidor que estiver a computar o tempo de serviço, até que o tempo previsto na lei revogada tenha sido completado. Reside exatamente nesse aspecto o padrão derivado de norma constitucional que limita o poder discricionário da Administração no suprimir vantagens pecuniárias radicadas no fator tempo.
Acerca do direito adquirido, utilizemo-nos mais uma vez da lição de HELY, colhida agora em sua preciosa coleção “Estudos e Pareceres de Direito Público”. No segundo volume dessa obra, o insigne juspublicista detalha a gênese no direito brasileiro do instituto do direito adquirido, sublinhando que essa importante garantia “deita raízes na mais profunda tradição do direito luso-brasileiro”, e que entre nós ela se tornou uma garantia de matriz constitucional a partir da Constituição de 1934, e à exceção, por óbvias razões, da Constituição de 1937, integrou o texto de todas as nossas constituições, e está presente na de 1988, em seu artigo 5º., inciso XXXVI, com o seguinte texto: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, sendo de relevo destacar o que estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, em seu artigo 6º., parágrafo 2º., estatui:
“Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Recolhendo os ensinamentos dos grandes doutrinadores que escreveram a respeito, nacionais e estrangeiros, HELY destaca a lição deixada pelo jurista brasileiro, LIMONGI FRANÇA, que, esteado na lição do italiano, Carlo Francesco Gabba, sustenta que o direito adquirido é “a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto.”
Daí pontificar HELY acerca dos requisitos que, presentes, caracterizam o direito adquirido:
“a) consequência direta de uma lei ou de um fato idôneo, em virtude de lei do tempo em que o fato se realizou, sendo de notar que, evidentemente, a palavra lei envolve normas constitucionais;
“b) que essa consequência jurídica tenha passado a integrar o patrimônio do sujeito;
“c) que este não tenha feito valer (exercido) o seu direito, antes da vigência da lei nova”. (“Estudos e Pareceres de Direito Público , volume II, p. 273).
Assim sendo, como a lei prevê a concessão do adicional por tempo de serviço, da sexta-parte e da licença-prêmio, que deverão ser concedidos ao servidor público quando ele atingir um determinado tempo de serviço, constituindo a concessão dessas vantagens pecuniárias, portanto, a consequência direta da lei e do fato por ela previsto (qual seja, o de o servidor ter laborado por determinado tempo), conclui-se que o tempo de serviço laborado pelo servidor sob o regime jurídico iniciado a partir da vigência da lei que tenha previsto a concessão do adicional, passa esse tempo a integrar seu patrimônio jurídico-funcional, abarcando essa garantia o poder de completar o tempo previsto na lei em vigor ao tempo em que se iniciou a contagem do tempo, de modo que uma lei nova não pode interromper o cômputo desse tempo de serviço, ou mesmo para o desqualificar juridicamente (circunscrevendo seus efeitos à contagem apenas para fim de aposentação), dada a proteção ao direito adquirido.
Observe-se, porque de relevo, que o adicional por tempo de serviço é instituído para a contagem de um tempo futuro, tempo esse que é previsto no pressuposto de fato e de direito da norma legal que institui a vantagem pecuniária, de modo que o direito adquirido protege o direito subjetivo do servidor à contagem desse tempo, à sua qualificação jurídica conforme a lei em vigor ao tempo em que a vantagem foi instituída, e nomeadamente o direito de poder atingir o tempo previsto na lei, para que possa fazer valer o direito ao adicional, não podendo causar influxo a lei nova.
Daí a proteção que se deve reconhecer o direito adquirido do servidor público, sobretudo quando a norma que tenha previsto o adicional por tempo de serviço é de natureza constitucional, como se dá no caso do Estado de São Paulo, cuja Constituição prevê, em seu artigo 129, o direito ao adicional por tempo de serviço.
Consideremos, outrossim, a questão sob o enfoque da proporcionalidade, para nesse contexto observar que a Administração contaria com um poder excessivo, se pudesse interromper,
“sponte sua”, o fluxo do tempo ou o desqualificar juridicamente, obtendo com isso efeitos mais vantajosos que poderia obter acaso determinasse a supressão do adicional. (Mais adiante, retomamos a análise da demanda sob o enfoque do princípio da proporcionalidade.)
Desse modo, um benefício que o servidor obteria depois que laborasse cinco anos, somente lhe seria concedido aos sete ou oito anos de trabalho, com uma sensível modificação do aspecto temporal que forma o núcleo da vantagem pecuniária, segundo a lei em vigor, sendo imperioso lembrar que, segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, artigo 2o., uma lei nova que estabeleça disposições especiais (como no caso da mencionada lei complementar), não pode revogar, nem modificar a lei anterior, que continua a produzir seus efeitos em decorrência do direito adquirido.
Poder-se-ia obtemperar, utilizando-se de um vetusto princípio do Direito, de que se a Administração pode o mais, isto é, se pode extinguir o adicional por tempo de serviço, poderia o menos, ou seja, poderia apenas interromper o fluxo do tempo para que não possa ser aproveitado no adicional por tempo de serviço. Esse argumento, contudo, não pode subsistir por três razões:
• primeiro porque, mantendo a lei a previsão do adicional por tempo de serviço como um benefício funcional que o servidor fará jus tão logo complete o tempo previsto em lei, em não havendo nenhuma modificação na forma como o servidor está a laborar, não há justa razão para que esse tempo deixe, artificialmente, de ser aproveitado;
• segundo porque a interrupção desse prazo equivale, na prática, à supressão da vantagem pecuniária, sem, entretanto, haver previsão expressão da lei quanto à essa supressão;
• terceiro porque a interrupção, ainda que pudesse a Administração a impor, deve respeitar o direito adquirido do servidor, até que ele complete o tempo previsto originalmente na lei, considerando, pois, o tempo que esteja já integrado a seu patrimônio jurídico-funcional no momento em que entra em vigor a nova lei, de modo que a interrupção da contagem do tempo de serviço, tanto quanto a supressão, somente podem produzir efeitos para o futuro.
Analisemos agora o argumento da ré no sentido de que, em se tratando de uma norma geral de direito financeira, e editada nomeadamente para regular uma situação excepcional, como é o caso da situação de pandemia, se essa norma legal poderia produzir efeitos sobre o regime jurídico do servidor público de Estado-membro, que, nos termos da Constituição de 1988, é matéria da competência exclusiva do Estado-membro.
Registre-se que o Congresso Nacional reconheceu e decretou como de calamidade pública o período que foi considerado como tal na lei complementar 173/2020, de modo que o artigo 65, “caput”, da lei complementar nacional, de número 101/2000, tem aplicação, e por isso, em tese, a lei poderia determinar aquelas providências previstas nos incisos I e II do artigo 65 da lei complementar 101/2000, além daquelas outras fixadas na novel lei 173/2020.
Destarte, sob o aspecto exclusivamente formal, não se pode questionar a validez da lei complementar 173/2020, dado que, em existindo como existe uma situação de calamidade pública, como reconhecida e decretada pelo Congresso Nacional, poderia a União, legislando sobre direito financeiro, estabelecer medidas que busquem atingir determinada finalidade, como, no caso, a de controlar os gastos públicos.
Mas quando a analisamos o artigo 8º., inciso IX, da lei complementar 173/2020 sob o enfoque do princípio constitucional da proporcionalidade, ou seja, quando examinamos a sua legalidade substancial, aqueles aspectos considerados na primeira parte desta sentença tornam-se sobremaneira importantes, e a eles retornamos.
Conforme foi enfatizado, não se nega à Administração possuir o poder discricionário para determinar, a seu critério, a supressão de uma determinada vantagem pecuniária. Nada obstava, pois, que sob color de proteger as finanças públicas, pudesse a lei extinguir vantagens pecuniárias. Mas o poder discricionário da Administração, e do legislador, não é ilimitado, porque deve observar certos padrões que as normas constitucionais tenham previsto. Esses padrões formam garantias, e estas o direito subjetivo, que pode ser tornar adquirido conforme as circunstâncias e peculiaridades da relação jurídico-material, como sucede em especial no caso das vantagens pecuniárias formadas nomeadamente sob o fator tempo.
Há que se reconhecer, é certo, que a Administração poderia e pode invocar a existência de uma situação excepcional, como é o do momento em que atravessamos, dados os momentosos efeitos gerados pela pandemia. Essa alegação funda-se, pois, no que a doutrina denomina de “teoria das circunstâncias excepcionais ou dos podres de crise”, alicerçada em um velho aforisma do Direito Administrativo, segundo o qual “salus populi supraema lex est”, ou como dizemos em nosso vernáculo, “a salvação do povo seja a lei suprema”. Foi exatamente essa teoria que trouxe para o campo do Direito Administrativo o princípio da proporcionalidade, surgido nos domínios do Direito Penal e construído engenhosamente pela jurisprudência alemã.
Como registra SÉRVULO CORREIA: “A ideia fulcral da teoria das circunstâncias excepcionais é a de que o fim dos poderes da Administração sobreleva em importância o respectivo teor. Esse fim é o do asseguramento da ordem pública e do funcionamento dos serviços públicos. Logo, quando se crie uma situação anormal e exorbitante que impossibilite de atingir aqueles objetivos agindo em conformidade com a lei, cessam os vínculos habituais na estrita medida do que for necessário para a satisfação do interesse público. Os efeitos mais frequentes da ocorrência dos pressupostos de excepcionalidade são o alargamento das competências, a dispensa de formalidades e a possibilidade de praticar atos cujos conteúdo contrarie as normas habitualmente aplicáveis”. (“Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Adminstrativos”, p. 64-65, Almedina editora).
Quando transposto para o campo do direito público, mais propriamente ao campo do Direito Administrativo, o princípio da proporcionalidade permitiu que o Poder Judiciário pudesse controlar a validade substancial de atos praticados pela Administração, sobretudo quando esta invocava a teoria das circunstâncias excepcionais. Devemos muito às doutrinas alemã e francesa importantes contributos para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do instituto do princípio da proporcionalidade.
Hoje, a melhor doutrina consolidou o entendimento de que, na hipótese em que a Administração invoque a teoria das circunstâncias excepcionais para legitimar ato que afeta a esfera jurídica do particular, nesse caso o juiz deve aplicar o princípio da proporcionalidade, sobretudo para ponderar sobre a correspondência entre as medidas estatais e as exigências impostas por outras normas legais. Essa ponderação ocorre em cada caso em concreto, e o juiz deve, pois, considerar as circunstâncias que envolvem o conflito entre o direito do particular e a medida estatal adotada em nome de uma situação de excepcionalidade.
É essa a técnica – a da ponderação – a que se leva aqui a cabo, em uma análise que deve ocorrer em face de um conflito de direitos, instalado a partir do momento em que a ré, cumprindo uma norma legal, interrompeu o cômputo do tempo de serviço laborado pelo autor, obstando o aproveitamento desse tempo de serviço para determinadas vantagens pecuniárias, causando, por óbvio, um sacrifício ao autor.
Ponderando-se os interesses em conflito, é de relevo considerar a natureza do direito subjetivo que se reconhece ao autor, um direito adquirido de matriz constitucional, quanto a manter o cômputo do tempo de serviço laborado para fim de aproveitamento em vantagens pecuniárias, quando esse tempo já estava a correr antes da entrada em vigor do artigo 8º., inciso IX, da novel lei complementar. Dada a natureza e importância desse direito adquirido, em virtude da proteção constitucional que o cerca, seu sacrifício somente poderia justificar-se em face de uma justificada e concreta razão, e não com base em uma alegação de ordem genérica, como a que foi adotada pela referida norma legal. E quanto mais importante o direito envolvido no conflito, mais sólidas devem ser as razões que justifiquem o sacrifício.
A norma do artigo 8º., inciso IX, da lei complementar 173/2020, circunscreve-se a vedar que os entes públicos continuem a computar o tempo de serviço do servidor para aproveitamento na formação de diversas vantagens pecuniárias, mas não apresenta nenhuma justificativa concreta que pudesse legitimar a imposição desse momentoso sacrifício ao servidor público, valendo-se apenas de razões genéricas, fundadas na existência de uma situação de calamidade. Isso não é suficiente, por óbvio, para legitimar o sacrifício, sobretudo quando se deve reconhecer que há em favor do servidor público um direito subjetivo que se configura como direito adquirido em relação ao período de tempo que já estava a fluir quando entra em vigor o artigo 8º, inciso IX.
A norma legal tratou a questão genericamente, sequer ressalvando a possibilidade de a receita pública não decair tão acentuadamente como se poderia lobrigar ao tempo em que a lei 173 foi criada. Também não adotou nenhum parâmetro de relação entre percentual de despesas em face da pandemia. O que denota que o legislador, açodadamente e sem critério técnico, foi, disparando todos os lados e eliminando inopinadamente direitos subjetivos, como se os pudesse legitimamente desconsiderar, sem ter como base um estudo econômico e atuarial profundo, e sobretudo, e como se pudesse desconsiderar que alguns desses direitos têm proteção constitucional por força do direito adquirido, tudo a impor a conclusão de que a esfera jurídica do autor está sendo sacrificada além de um justo e razoável limite, e por isso se reconhece razão no que argumenta, para se lhe reconhecer prevaleça o seu direito a continuar a computar o tempo de serviço para aproveitamento no adicional por tempo de serviço, na sexta-parte e na licença-prêmio, como estava a fluir antes da entrada em vigor do artigo 8º., inciso IX, da lei complementar 173/2020, cominando-se a ré que apostile a mantença desse fluir do tempo, até que o autor complete o tempo legalmente previsto para cada uma das referidas vantagens pecuniárias.
Quanto à tutela provisória de urgência, continua a não existir, neste momento, uma situação de risco concreto e atual que possa tornar ineficaz o direito subjetivo ora reconhecido em favor do autor, se mantida esta sentença. Em sendo mantida esta sentença, bastará, pois, que a ré apostile o que lhe foi determinado e o direito subjetivo tornar-se-á efetivo, com efeitos retroativos. Daí porque, ausente o “periculum in mora”, a tutela provisória de urgência é negada.
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido, declarando a existência de relação jurídico-funcional que, fundada no direito adquirido reconhecido em favor do autor de manter a fluir o tempo de serviço que fluía antes da entrada em vigor do artigo 8º., inciso IX, da lei complementar 173/2020, para que o autor beneficie-se desse tempo de serviço para fim de adicional por tempo de serviço, sexta-parte e licenciamento, cominando-se à ré a obrigação de apostilar a mantença desse fluir de tempo, obrigação que se tornará efetiva apenas com o trânsito em julgado, pois que negada a concessão da tutela provisória de urgência. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil.
Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pela ré de ato de litigância de má-fé, não se lhe pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 12 de novembro de 2020.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO