RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA UTILIZADA COMO ESTRATAGEMA PARA SUPRIMIR DOS ADQUIRENTES DO IMÓVEL O DIREITO A QUE PUDESSEM PLEITEAR PELA RESCISÃO. CLÁUSULA NULA

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Com todo o respeito que é deveras merecido ao voto do eminente Desembargador Relator, de seu conteúdo divirjo, acompanhando a divergência instalada a partir do voto do Desembargador (…), de maneira que entendo deva ser desprovido o recurso de apelação interposto pelas rés, mantida a r. sentença, cuidando, contudo, acrescentar alguns aspectos que considero relevantes.
Sobreleva considerar, com efeito, que o egrégio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso especial 1.891.498 que deu azo à fixação da tese jurídica no tema 1.095, não afastou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas demandas em que se controverte quanto à decretação da resolução de contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária, senão que considerou que esse regime – o do Código de Defesa do Consumidor – deve ser analisado em conjunto com as regras da lei federal 9.514/1997, seja quando não estiver presente na demanda qualquer dos três requisitos fixados nessa lei federal (registro do contrato no cartório de imóveis; inadimplemento do devedor, e ainda a sua constituição em mora), seja também na situação em que, a despeito desses requisitos estarem configurados, algum especial aspecto na demanda obrigar a que se analise se o regime de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor não foi indevidamente obliterado por um dos contratantes, o que significa dizer que, a despeito de se tratar de um contrato regido por uma lei específica, daí não decorre que se possa e se deva desconsiderar o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor, não se podendo jamais olvidar de que a Constituição de 1988 erigiu a proteção ao consumidor a um valor jurídico de significativa importância, ao impor ao Estado promova a defesa do consumidor (artigo 5º., inciso XXXII), criando aí um dever fundamental ao Estado e, em contrapartida, um direito subjetivo de matriz constitucional em favor do consumidor, situação jurídica em que estão os autores, ainda que tenham celebrado um contrato regulado por legislação específica, legislação que deve se harmonizar com o que estatui o Código de Defesa do Consumidor.

Como bem observado pelo ilustre Desembargador que fez instalar a divergência, a cláusula de alienação fiduciária foi embutida no contrato com o único e evidente objetivo de criar em desfavor dos adquirentes uma situação contratual marcadamente desvantajosa, qual seja, a de se lhes obstar pudessem pedir a rescisão do contrato. Sabiam as rés-apelantes que, dotando o contrato de compromisso de compra e venda de bem imóvel de uma cláusula de alienação fiduciária, teriam os adquirentes menores chances de, pela via judicial, obterem o direito à rescisão, porque, de fato, construiu-se ao longo do tempo uma jurisprudência que abonava esse entendimento, o qual, contudo, não pode subsistir quando se trata o cotejar com o regime de proteção do Código de Defesa do Consumidor, em especial com o que esse Código estabelece em seu artigo 51, quando estatui certos parâmetros de interpretação a cláusulas contratuais.
A cláusula de alienação fiduciária, inserida no contrato em questão, sobre não corresponder à essência desse instituto, engendrado com a finalidade de conceder um crédito ao consumidor para a aquisição de um bem, não havendo na relação contratual em questão nenhuma característica que se ajuste à essa essência, como frisou o Voto que fez instalar a divergência, acabou por acarretar um evidente desequilíbrio no contrato, colocando os adquirentes em uma desvantagem desproporcional, ou “exagerada”, como consta do enunciado do artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor.
Desproporcionalidade que radica no fato de a cláusula ter sido inserida apenas com a finalidade de suprimir dos adquirentes um direito subjetivo que as apelantes sabiam lhes seria reconhecido, não houvesse a cláusula de alienação fiduciária: o direito a pleitearem a rescisão do contrato.
A cláusula de alienação fiduciária não corresponde, portanto, às características do negócio firmado, figurada pelas rés-apelantes apenas com aquele evidente e injusto objetivo, devendo ser qualificado como um estratagema que deve ser examinado à luz do que prevê o Código de Defesa do Consumidor.
Trata-se, portanto, de uma cláusula nula, não porque estruturada no contrato por meio de uma simulação, porque evidentemente não era intenção dos adquirentes emitirem uma declaração de vontade que pudesse produzir um efeito diverso daquele produzido pela cláusula. Negócio simulado, como afirma SILVIO RODRIGUES, “é aquele que oferece uma aparência diversa do efetivo querer das partes”. Não é isso, com efeito, o que se constata dos autos, seja porque os autores não participaram dessa “suposta” simulação, seja principalmente porque não se trata mesmo de uma simulação como tal estruturada no Código Civil, porque a declaração de vontade firmada pelas apelantes não tem uma aparência diversa de seu querer, senão que há uma plena coincidência aí, na medida em que as apelantes queriam suprimir dos adquirentes o direito a que pugnassem pela decretação da rescisão do contrato, e para isso fizeram inserir a cláusula de alienação fiduciária.
Poder-se-ia dizer que a inserção dessa cláusula foi “simulada”, se pudéssemos utilizar aqui do sentido que os dicionários em geral conferem à palavra “simulação”, que, nesse contexto, tem o sentido de fingir, fabular, figurar, remedar, o que se encaixa na conduta das rés-apelantes no terem feito fabulado, figurado, fingido uma realidade material que seria consentânea com o regime jurídico-legal da alienação fiduciária.
Conforme foi dito, o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor prevê uma série de dispositivos que criam parâmetros de interpretação sobre cláusulas contratuais, quando a relação contratual puder se configurar como de consumo. Vale lembrar que o egrégio Superior Tribunal de Justiça, conquanto tenha reconhecido a aplicação de uma lei específica, não afastou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o que conduz à conclusão de que não descaracterizou a relação jurídico-contratual como de consumo. E é por isso que se deve aplicar esses parâmetros de interpretação ao código em questão, nomeadamente quanto à cláusula pela qual se adotou o regime da alienação fiduciária.
Tratando-se, pois, de uma cláusula engendrada e aplicada como um estratagema destinado a colocar intencionalmente a esfera jurídica dos adquirentes do imóvel em uma posição contratual marcadamente em desequilíbrio, suprimindo-lhes um especial e significativo direito subjetivo (o de que pudessem pleitear a rescisão do contrato), essa cláusula, analisada sob a perspectiva do artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, é absolutamente nula, por ter criado, ficticiamente, um regime contratual que colocou os autores-apelados em uma situação de desvantagem, gerando um desequilíbrio entre as posições contratuais, e isso foi obtido por meio de uma clara e evidente ofensa à boa-fé e à equidade.
Destarte, acompanhando a divergência, entendo deva ser mantida a r. sentença, apenas com a observação que se deve declarar a nulidade absoluta da cláusula da alienação fiduciária, por aplicação do artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, chegando-se, em essência, às mesmas conclusões a que a r. sentença e o ilustre Voto do Desembargador (…) chegaram.
É como voto, respeitosamente.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
5º Juiz