Processo número 1001286-31.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
O autor, (…), qualificado a folha 1, promovendo esta ação contra (…), alega que a ré não realizou o reembolso do que o autor despendeu com determinado exame sob a alegação de que o contrato estava inativo, o que não correspondia à realidade, dado que o contrato permanecia vigente, válido e eficaz, conforme decidido noutra ação, o que a ré teria desconsiderado ao negar-lhe o reembolso, objetivando o autor, nesse contexto, que se imponha à ré a obrigação de suportar esse reembolso, conforme preveem as cláusulas do contrato. Adotado o procedimento comum.
Citada, a ré contestou, sustentando que o reembolso ao autor foi negado não por ter sido considerado inativo o contrato, senão que pelo fato de se tratar de um contrato não adaptado à Lei dos Planos de Saúde, de modo que não havia cobertura contratual para o tipo de exame utilizado pelo autor, o que justificava a negativa de cobertura ao exame.
Réplica apresentada.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO e DECIDO.
A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.
Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.
O contrato firmado entre as partes, cujo objeto é a prestação de serviços que se configuram como um plano de saúde, prevê quais exames estão sob cobertura contratual, sendo de se destacar que como se trata de um contrato não adaptado às normas da Lei dos Planos de Saúde, tem-se que, quanto à cobertura contratual, devem prevalecer, em tese, as regras contratuais, as quais excluem determinados exames, mas sem excluir a possibilidade de, por meio de interpretação das normas contratuais, ampliar-se essa cobertura.
Conforme cuidou esclarecer a ré, a negativa à cobertura contratual para o exame realizado pelo autor não se deveu a ter sido considerado inativo ou cancelado o contrato celebrado pelo autor, senão que ao fato de se tratar de um contrato não adaptado àquelas regras que surgiram com a Lei dos Planos de Saúde. Assim, não subsiste o argumento que o autor invocou, no sentido de que a ré teria olvidado de uma decisão judicial proferido noutra ação, na qual se controverte quanto à forma de reajuste dos prêmios mensais.
Destarte, tratando-se de um contrato não adaptado, devem prevalecer, a rigor, as cláusulas contratuais, salvo se se demonstra que, a negativa ao reembolso teria colocado a esfera jurídica do autor sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, situação que, então, malgrado não se tratar de um contrato adaptado às disposições da lei federal 9.656/1998, poder-se-ia justificar a ampliação da cobertura contratual. Situação que se configura no caso presente.
A análise que é aqui se leva a cabo radica em considerar sobretudo que o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, deve ser utilizado como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem a autor e a ré.
A Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos, tratamentos terapêuticos e exames, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos e exames médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos, novéis procedimentos e exames mais apurados no tratamento de seus pacientes.
É o que se dá com o exame a que se submeteu o autor, uma angiotomografia, que é um exame que, por meio de imagens, tem por finalidade estudar os vasos sanguíneos do paciente, sem o fazer submetido a procedimentos invasivos. Utiliza-se, pois, de um tomógrafo, com o emprego da união de duas técnicas, a da tomografia e da angiografia. Trata-se, importante assinalar, de um exame que se tornou possível em razão de uma evolução das técnicas médicas.
A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes, ou quando menos invasivos, caso do exame a que se submeteu o autor.
A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam o autor e a ré.
Destarte, havendo um novo exame, mais detalhado e menos invasivo, comprovada sua eficácia, tanto assim que se trata hoje de um exame que se tornou comum, daí resulta que, desobrigar a ré de propiciar o autor o acesso a esse exame é colocar a sua esfera jurídica aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar ao o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima. É irrelevante, portanto, que se trate de um contrato firmado antes da entrada em vigor da lei federal 9.656/1998 e que não tenha sido aditado para adaptação às disposições dessa lei federal, porque o que sobreleva considerar é o objeto do contrato e a interpretação de suas cláusulas na perspectiva das normas de direitos fundamentais, atuando estas como imperativos de tutela que supeditam um importante material hermenêutico a ser considerado e aplicado na relação contratual em questão.
Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor do autor seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual, o que significa reconhecer-lhe o direito a submeter-se ao exame prescrito, ampliando-se a cobertura contratual para abarcar o integral custeio desse tipo de exame.
Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido, condenando a ré a reembolsar o autor pela importância despendida com o exame em questão, que é da ordem de R$3.303,63 (três mil, trezentos e três reais e sessenta e três centavos), com atualização monetária a partir do efetivo desembolso pelo autor, computada a correção monetária por meio dos índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, e incidentes também juros de mora a contar da citação e calculados segundo o artigo 406 do Código Civil. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Condeno a ré a reembolsar o autor do que este suportou com a taxa judiciária e demais encargos do processo, condenando a ré também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 7 de junho de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO