APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE SOB A MODALIDADE DE AUTOGESTÃO. CONTROVÉRSIA FÁTICO-JURÍDICA INSTALADA QUANTO À VALIDEZ DE CLÁUSULAS QUE PREVEEM COBERTURA A TRATAMENTOS MÉDICOS.
TRATAMENTO PRESCRITO PARA O CONTROLE DE EFEITO COLATERAL DE DOENÇA GRAVE (AUTORA DIAGNOSTICADA COM “CÂNCER DE MAMA” E COM INDICAÇÃO MÉDICA – COMO FORMA DE CONTROLE DOS EFEITOS COLATERAIS DE REFERIDA DOENÇA – PARA A PRESERVAÇÃO DE SUA FERTILIDADE, MEDIANTE TÉCNICA DE “CONGELAMENTO DE ÓVULOS”).
RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL QUE SE DISTINGUE EM FACE DE SEU OBJETO – A PROTEÇÃO À SAÚDE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 196 DA CF/1988 COMO MATERIAL HERMENÊUTICO.
GARANTIA AO PACIENTE DE ACESSO AO MELHOR TRATAMENTO MÉDICO POSSÍVEL. PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICO-CONTRATUAL DO USUÁRIO DO PLANO.
ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO EM CONCRETO, EM FACE DAS QUAIS SE DEVE PONDERAR ACERCA DA TAXATIVIDADE.
CONSIDERADAS AS PECULIARIDADES DO ESTADO CLÍNICO E DA GRAVIDADE DA DOENÇA. CARACTERIZAÇÃO, NESSE CONTEXTO, DOS REQUISITOS ESTABELECIDOS PELO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL (EREsp 1.886/929/SP e 1.889.704/SP), DEVENDO SE CONSIDERAR, EM RELAÇÃO A ESTE CASO EM CONCRETO, COMO NÃO TAXATIVO O ROL DA ANS.
DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE QUE, NO CASO EM QUESTÃO, É DE SER CONSIDERADO COMO PREVALECENTE, CONSIDERADA A GRAVIDADE DA DOENÇA, DA QUAL SE DEVE EXTRAIR UMA SITUAÇÃO DE URGÊNCIA.
SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. INVERSÃO DOS ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA, SEM A MAJORAÇÃO DOS HONORÁRIOS DE ADVOGADO.
RELATÓRIO
Na condição de dependente do plano de saúde rotulado “Bronze A” que mantém junto à operadora requerida, (…) ajuizou a presente demanda contra (…), em que alega que, quando do recebimento do diagnóstico de “neoplasia maligna de mama direita” (popularmente conhecida como “câncer de mama”) em maio de 2020, também lhe fora prescrito o tratamento de congelamento de óvulos (intitulado de “criopreservação de óvulos”), a ser realizado antes mesmo das sessões de quimioterapia, para fins de preservação da sua fertilidade considerando os efeitos do tratamento contra o câncer, e que, diante da urgência na iniciação deste procedimento e da recusa da operadora na época, acabou custeando às suas expensas o aludido procedimento realizado em julho de 2020 perante a clínica (…)”. Nesse contexto, aduzindo a extensão da cobertura assumida pela operadora que, segundo a autora, deve abranger todos os tratamentos direcionados tanto sobre o câncer quanto sobre os efeitos colaterais dele decorrentes, pretende a condenação da operadora ao reembolso da quantia de R$ 10.501,80 (dez mil, quinhentos e um reais e oitenta centavos) referente aos custos do procedimento em testilha.
A r. sentença, contudo, aplicando a técnica do julgamento antecipado e adotando como premissas nucleares a inaplicabilidade do regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor – por se tratar de um plano de saúde gerido por um modelo de autogestão – e a exclusão legal e contratual da “cobertura obrigatória do procedimento de inseminação artificial”, concluiu pela improcedência do pedido (fls. 207/213).
Interpondo recurso de apelação, alega a autora que a r. sentença incorreu em “error in judicando” ao deixar de considerar que o procedimento de “criopreservação de óvulos”, além de não se confundir com os procedimentos de inseminação artificial ou fertilização “in vitro”, fora realizado sob prescrição médica – por um especialista em quimioterapia e por um outro em oncologia – e em um contexto emergencial voltado à preservação da sua capacidade reprodutiva e do planejamento familiar, ambos protegidos pelo feixe de garantias constitucionais. Ademais, defende a incidência, no caso, do enunciado de súmula número 102 deste egrégio Tribunal de Justiça, segundo o qual “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”. Destarte, pugna pela reforma da r. sentença, assegurando-se o direito ao reembolso (fls. 216/224).
Recurso tempestivo, instruído de preparo (fls. 225/226) e contra-arrazoado (fls. 230/242).
Manifestação da autora-apelante de oposição à realização do julgamento colegiado na modalidade virtual (fls. 253).
FUNDAMENTAÇÃO.
Há que se integralmente provido o recurso de apelação interposto pela autora.
O contrato de plano de saúde em questão é de autogestão, ao qual se aplica um regime jurídico-legal próprio, havendo na jurisprudência o entendimento, hoje consolidado, de que a esse tipo de contrato específico não se deva aplicar o regime do Código de Defesa do Consumidor, e a r. sentença cuidou corretamente adotar esse entendimento, não aplicando esse Código.
Não obstante, conquanto não se deva aplicar à relação jurídico-material objeto da lide o Código de Defesa do Consumidor, porque se trata de um contrato de plano de saúde operado na modalidade de autogestão, contrato, pois, que possui características e peculiaridades que o distinguem em face de outras espécies de contratos de plano de saúde, ainda que não se aplique, pois, o regime jurídico de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, sobreleva considerar um aspecto que singulariza o contrato de plano de saúde em geral, inclusive aquele firmado sob a modalidade de autogestão. Esse aspecto radica no valor jurídico que constitui seu objeto: o valor jurídico de proteção à saúde.
Daí não decorre, como é imperioso à partida adscrever, se deva declarar a nulidade das cláusulas que preveem a cobertura quanto a tratamentos e procedimentos médicos, porque se deve observar que há regulação legal que confere adequado suporte jurídico a esse tipo de cláusula contratual, que resto é imanente ao contrato de plano de saúde, formando seu núcleo, não havendo, pois, abusividade nas cláusulas que, no contrato em questão, preveem o conteúdo e o alcance da cobertura em termos de tratamentos e procedimentos médicos, conquanto não se possa deixar de reconhecer o direito subjetivo da autora em buscar o melhor tratamento médico disponível, e que a cobertura contratual lhe propicie esse tratamento.
O que significa dizer que estamos diante de um conflito entre duas posições jurídicas válidas e legítimas, e ao controle desse tipo de conflito se deve aplicar o princípio constitucional da proporcionalidade.
A causa, portanto, diz respeito a um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde sob a modalidade de autogestão, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico.
Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão do custeio do tratamento prescrito à autora para a preservação de sua fertilidade como forma de controle a um dos efeitos colaterais de uma grave doença de que acometida (autora diagnostica com “câncer de mama”), dado que, segundo a ré, tal não está incluído em rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS).
Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.
Digno de nota que a Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos, procedimentos e técnicas, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos, materiais e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.
Impor à paciente que se submeta, sem mais, ao rol de procedimentos da agência reguladora, negando a cobertura contratual, quando o médico que preside o tratamento prescreve determinado tratamento como indispensável ao controle de uma doença grave, é colocar a esfera jurídica da paciente (usuária do plano de saúde) aquém de uma proteção mínima razoável.
A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante, pois, ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam as partes contratantes.
Destarte, havendo um procedimento ou medicamento que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que indicado por orientação médica, daí resulta que, desobrigar a ré de propiciar à autora o acesso a esse tratamento é colocar a esfera jurídica dessa paciente aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.
É certo que a ré quer se amparar em um ato normativo emanado da agência reguladora, para negar a cobertura contratual do procedimento médico prescrito à autora-apelante, necessário ao tratamento de um efeito colateral (o da infertilidade) de grave doença de que acometida.
A propósito, como destaca a documentação médica a folha 53, a autora é portadora de neoplasia maligna de mama direita, submeteu-se a tratamento por quimioterapia e os médicos que cuidam de seu tratamento recomendaram que, em face da gravidade da doença oncológica e da necessidade da preservação da capacidade reprodutiva da apelante, um paciente ainda jovem, que houvesse o procedimento de congelamento dos óvulos para a hipótese de uma gestação futura, de maneira que há aí uma circunstância que singulariza a situação clínica da autora quanto ao procedimento de congelamento dos óvulos, destinado à preservação urgente da capacidade reprodutiva da autora, aspecto que é de ser levado em conta quando se trata de analisar a questão da taxatividade de procedimentos médicos.
Sempre é importante lembrar de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais tratamentos médicos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado procedimento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções institucionais são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.
O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo geral, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como ora se enfatiza, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.
Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor da autora seja tratada de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.
De relevo observar que o egrégio Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria de votos, mas sem dotar de efeito vinculante a sua decisão, que a lista de procedimentos fixada pela agência reguladora é, em tese, taxativa, com o que aquele Tribunal de superposição quis enfatizar que se devam considerar as circunstâncias de cada caso em concreto, cabendo aos juízes e tribunais ponderar as posições jurídicas em conflito com base nessas circunstâncias e são elas que, efetivamente, permitem definir qual a posição jurídica que deve prevalecer, e qual aquela que deverá, no caso em concreto, ser sacrificada, em uma análise que deve levar em consideração sobretudo a gravidade da doença e a urgência no procedimento prescrito.
Importante ainda sublinhar que aqueles requisitos fixados pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça em embargos de divergência em recurso especial (EREsp 1.886/929/SP e 1.889/704/SP), estão aqui caracterizados e conduzem à conclusão de que, no caso em concreto, deve prevalecer a conclusão no sentido da não taxatividade do rol da ANS, considerando o que caracteriza, no caso da autora, como indispensável a preservação de sua capacidade reprodutiva em face da grave doença de que acometida, aspecto que não fora bem valorado na r. sentença, que é assim reformada, acolhendo-se, no todo, o pedido formulado na peça inicial.
Por meu voto, dá-se integral provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, cuja pretensão é declarada no todo como procedente, com a condenação da ré-apelada no custeio ou reembolso dos valores envolvidos no procedimento médico, tal como descrito na documentação que acompanha a peça inicial, observada a incidência da correção monetária e dos juros de mora, estes contados da citação, na forma como a autora os pleiteou na peça inicial.
Invertem-se os encargos de sucumbência, tal como haviam sido fixados na r. sentença. E como se trata de inversão de encargos de sucumbência, não se pode aplicar a regra do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR