PLANO DE SAÚDE. TAXATIVIDADE DO ROL DA ANS – PONDERAÇÃO. PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICA DO AUTOR, CUJA ESFERA JURÍDICA ESTARIA SUBMETIDA A UMA SITUAÇÃO DE INJUSTA DESPROTEÇÃO, PREVALECESSE A TAXATIVIDADE

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
9ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE SOB A MODALIDADE DE AUTOGESTÃO. CONTROVÉRSIA FÁTICO-JURÍDICA INSTALADA QUANTO À VALIDEZ DA NEGATIVA DE COBERTURA EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE PREVISÃO DO TRATAMENTO NO ROL ESTIPULADO PELA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE – ANS.
SENTENÇA QUE, ENFRENTANDO A QUESTÃO À LUZ DA TESE DE TAXATIVIDADE DO ROL ESTIPULADO PELA ANS, JULGOU PROCEDENTE O PEDIDO, DECLARANDO A EXISTÊNCIA DA COBERTURA CONTRATUAL.
RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELA OPERADORA QUE REITERA A DEFESA DA LEGALIDADE NA NEGATIVA DA COBERTURA DO TRATAMENTO DE RADIOTERAPIA, SOBRETUDO NA INTENSIDADE QUE FORA PRESCRITA.
TRATAMENTO PRESCRITO PARA DOENÇA GRAVE A PACIENTE IDOSO E DELICADO QUADRO DE SAÚDE. RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL QUE SE DISTINGUE EM FACE DE SEU OBJETO – A PROTEÇÃO À SAÚDE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 196 DA CF/1988 COMO MATERIAL HERMENÊUTICO. GARANTIA AO PACIENTE DO ACESSO AO MELHOR TRATAMENTO MÉDICO POSSÍVEL, CONSIDERADAS AS PECULIARIDADES DO ESTADO CLÍNICO E DA CONDIÇÃO ESPECÍFICA DO PACIENTE E DE SEU NÚCLEO FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO, NESSE CONTEXTO, DOS REQUISITOS ESTABELECIDOS PELO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL (EREsp 1.886/929/SP e 1.889.704/SP), DEVENDO SE CONSIDERAR, EM RELAÇÃO A ESTE CASO EM CONCRETO, COMO NÃO TAXATIVO O ROL DA ANS.
PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICO-CONTRATUAL DA USUÁRIA DO PLANO DE SAÚDE.
ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO EM CONCRETO, EM FACE DAS QUAIS SE DEVE PONDERAR ACERCA DA TAXATIVIDADE, E NOMEADAMENTE SOBRE O TIPO DE TRATAMENTO MÉDICO QUE SE DEVE DISPENSAR.
CORRETA A SOLUÇÃO ADOTADA NA SENTENÇA, QUE DEVE SER MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA, COM MAJORAÇÃO DOS HONORÁRIOS DE ADVOGADO.

RELATÓRIO

Cuida-se de demanda de obrigação de fazer movida por (…) contra (…), pela qual objetiva uma tutela jurisdicional que lhes assegure, tanto em caráter provisório quanto em definitivo, o fornecimento do tratamento de radioterapia com modulação de intensidade do feixe, conforme prescrição médica.

Segundo narra, o autor é portador de câncer de próstata, associado a quadro de Doença de Huntington e bexiga neurogênica, entre outras patologias, tendo sido prescrita a realização de tratamento de radioterapia com modulação de intensidade do feixe – IMRT, o qual fora negado pela ré, sob o fundamento de que referido procedimento não figura na relação de cobertura básica estipulada pela Agência Nacional de Saúde – ANS.

A r. sentença, reconhecendo que “a negativa de cobertura com fundamento na ausência de previsão no rolda ANS é abusiva e não pode prosperar, pois havendo cobertura para determinada moléstia, não podem ser limitados ou excluídos os meios curativos”, julgou procedente o pedido (fls. 274/278).

Apelação interposta pela ré, (…), em que sustenta inexistir qualquer ilegalidade na recusa da cobertura do tratamento prescrito ao autor, seja pela ausência de previsão desse tipo de tratamento no rol taxativo estipulado pela ANS, seja porque a radioterapia convencional está plenamente coberta, sendo negada apenas a modulação da intensidade, de modo que compelir a operadora a fornecer um tratamento diferente equivaleria a transmudação do contrato de plano de saúde. Destarte, pugna pela reforma da r. sentença para que seja a demanda julgada improcedente (fls. 281/291).

Recurso tempestivo, instruído de preparo (fls. 292/293) e contra-arrazoado (fls. 297/304).

FUNDAMENTAÇÃO

O recurso não comporta provimento.

O contrato de plano de saúde em questão é de autogestão, ao qual se aplica um regime jurídico-legal próprio, havendo na jurisprudência o entendimento, hoje consolidado, de que a esse tipo de contrato específico não se deva aplicar o regime do Código de Defesa do Consumidor, e a r. sentença cuidou adotar esse entendimento, não aplicando esse Código, malgrado ressalve que estava a considerar e a aplicar dispositivos do Código Civil quanto aos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

Mas antes de ser um contrato ao qual se deva aplicar tais princípios previstos no Código Civil, impõe-se lhe considere o especial valor jurídico que forma seu núcleo – que o é valor jurídico da proteção à saúde – valor que tem proteção em matriz constitucional. É sob essa perspectiva que a demanda está aqui a ser analisada, portanto.

Há por se considerar que se instalou um conflito entre duas posições jurídicas: a do autor, que objetiva se lhe garanta o melhor tratamento médico possível; e o da ré-apelante, que argumenta no sentido de que o tratamento de radioterapia, nomeadamente na intensidade prescrita, estaria fora da cobertura contratual. Esse é, portanto, o conteúdo do conflito instalado na demanda e que foi algo reduzido na r. sentença.

O que significa dizer que estamos diante de um conflito entre duas posições jurídicas válidas e legítimas, e ao controle desse tipo de conflito se deve aplicar o princípio constitucional da proporcionalidade.

A causa, portanto, diz respeito a um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica da autora não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse a liberdade contratual em favor da ré-apelante, quando invoca a exclusão do tratamento de radioterapia, prescrito e fundamental ao tratamento do autor, dado que, segundo a ré-apelante, referido tratamento não está incluído em rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS).

Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.

Digno de nota que a Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos, procedimentos e técnicas, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos, materiais e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.

Impor à paciente que se submeta, sem mais, ao rol de procedimentos da agência reguladora, negando a cobertura contratual, quando o médico que preside o tratamento prescreve determinado tratamento como indispensável ao controle de uma doença grave, é colocar a esfera jurídica da paciente (usuária do plano de saúde) aquém de uma proteção mínima razoável.

A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A interpretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica, como se dá no caso presente, pois como consta da documentação médica, há a necessidade do tratamento da autora na modalidade “home care”, buscando um controle adequado quanto às sequelas decorrentes do AVC isquêmico sofrido pela autora (c.f. relatório de folhas 33/36).

Nesse contexto, é importante atentar para o delicadíssimo quadro de saúde do autor, justificando que se utilize aqui do superlativo em razão da idade do autor, hoje com setenta e oito anos de idade e que foi diagnosticado como portador de câncer de próstata, associado a quadro de Doença de Huntington e bexiga neurogênica, conforme documentação médica acostada nos autos.

O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 garante, pois, à paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas, e os serviços que se agregam ao tratamento para o tornar ainda mais adequado às condições clínicas do paciente. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam as partes contratantes.

Destarte, comprovada a necessidade do tratamento de radioterapia “com modulação de intensidade do feixe (código TUSS 41203054)”, desobrigar a ré-apelante de o propiciar ao autor é colocar a esfera jurídica desse paciente aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.

Importante ainda sublinhar que aqueles requisitos fixados pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça em embargos de divergência em recurso especial (EREsp 1.886/929/SP e 1.889/704/SP), estão aqui caracterizados e conduzem à conclusão de que, no caso em concreto, deve prevalecer a conclusão no sentido da não taxatividade do rol da ANS.

Destarte, aplicando o princípio da proporcionalidade e ponderando os interesses em conflito de acordo com as circunstâncias do caso em concreto, é de se reconhecer como prevalecente a posição jurídica do autor, de maneira que há de se reconhecer como correta a solução adotada na r. sentença.

Por meu voto, nega-se provimento a este recurso de apelação, para, assim, manter em seu integral conteúdo a r. sentença de folhas 274/278.

Por força da sucumbência, agora em grau de recurso, tal como determina o artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015, majoro os honorários de advogado para o patamar de 16% (quinze por cento) sobre a base de cálculo fixada em primeiro grau.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR