PLANO DE SAÚDE COLETIVO. REAJUSTES. CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO. NULIDADE DA SENTENÇA

PLANO DE SAÚDE COLETIVO. REAJUSTES. SINISTRALIDADE E VARIAÇÃO DE CUSTOS MÉDICOS. REGIME JURÍDICO PRÓPRIO E DIFERENTE DOS PLANOS INDIVIDUAL OU FAMILIAR. LIBERDADE JURÍDICA CONFERIDA ÀS OPERADORAS NA FIXAÇÃO DOS CRITÉRIOS DA BASE ATUARIAL QUE NÃO É ABSOLUTA. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA COM A PRODUÇÃO DE PROVA DOCUMENTAL E PERICIAL ATUARIAL PARA O DESIMPLICAR DA CONTROVÉRSIA FÁTICA INSTALADA. CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO. VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL “PROCESSUAL” E “SUBSTANCIAL”. SENTENÇA DECLARADA NULA. RECURSO PROVIDO.

RELATÓRIO
Afirmando-os ilegais e abusivos, questiona o autor, (…), na demanda proposta em face de (…), os reajustes aplicados, desde 2006, sobre o plano de saúde coletivo por adesão, sustentando o autor que os reajustes aplicados envolvem índices muitos superiores àqueles praticados pela Agência Nacional de Saúde – ANS, no âmbito dos planos individuais e familiares, e que a ausência de justificativas atuariais para a quantificação do reajuste com base no critério da sinistralidade viola a proteção ao direito do consumidor, de acordo com o que forma essa proteção jurídica no Código de Defesa do Consumidor, sobretudo quanto ao direito à informação que é de ser reconhecido a todo consumidor, de modo que objetiva o autor, nesse contexto, a aplicação ao contrato em questão dos mesmos índices estipulados pela ANS para os contratos de plano de saúde individual, declarando-se a invalidez das cláusulas contratuais que preveem os reajustes, reconhecendo-se-lhe o direito à restituição dos valores pagos em função de reajustes que, segundo o autor, envolveram índices aleatórios e desproporcionais.
Face a r. sentença de folhas 711/715, que julgou improcedente a demanda, o autor, interpondo recurso de apelação, alega, preliminarmente, que o não acolhimento do seu requerimento de diligência consubstanciada na determinação para que as rés forneçam os documentos que embasaram a auditoria independente, tais como a composição dos reajustes técnicos, notas fiscais e contábeis, entre outros, além de prejudicar idoneidade das conclusões registradas pela empresa de auditoria, caracteriza cerceamento do exercício do direito de defesa, pugnando pela anulação da r. sentença. Quanto ao mérito da pretensão, sustenta que os índices são aleatórios e desproporcionais na medida em que a fixação desses índices é realizada a talante das operadoras do plano de saúde, sem que os consumidores ou associações que protejam seus interesses atuem nesse procedimento, a evidenciar, segundo o autor-apelante, que, sobre a violação ao dever de informação, os reajustes devem ser invalidados por envolverem índices aleatórios ou desproporcionais.
Recurso tempestivo, instruído com preparo (fls. 742/743 e 771) e contra-arrazoado (fls. 746/770).
As partes opõem-se ao julgamento virtual.
FUNDAMENTAÇÃO
Importante sublinhar desde logo que o autor-apelante questiona não apenas a validez formal das cláusulas que preveem o reajuste por critério da sinistralidade, senão que também questiona essa validez sob o aspecto de sua legalidade “substancial”, pois que afirma que os índices aplicados são aleatórios e desproporcionais.
E também é necessário destacar que a demanda versa sobre um contrato coletivo por adesão, e que esse contrato está submetido a um regime jurídico-legal próprio, que se justifica em razão de se tratar de um contrato de plano de saúde que abarca um conjunto de vários beneficiários, o que significa dizer que essas características da contratação devem ser especialmente consideradas, dado que a controvérsia radica na validez de reajuste que foi aplicado com base no critério da sinistralidade.
Nesse contexto, e em virtude do regime jurídico-legal próprio a esse tipo de contrato, deve-se ter em conta que a agência reguladora, exercendo seu poder legal de regulamentação, cuida observar que se devem estabelecer e considerar as características próprias dos contratos coletivos empresariais de saúde, que as distinguem dos contratos individuais, fundado no que a jurisprudência firmou o entendimento de que se deve considerar o regime próprio a cada tipo de contrato de plano de saúde, nomeadamente quanto aos reajustes a serem aplicados, sendo importante considerar que, se em face de contratos individuais a liberdade da operadora do plano de saúde é reduzida, o mesmo não sucede quando se está diante de um contrato coletivo empresarial.
Essa distinção de regime jurídico-legal justifica-se porque, de fato, o contrato coletivo empresarial, por abarcar um universo de beneficiários, traz consigo certos aspectos que afetam substancialmente o tipo de contratação com a operadora do plano de saúde, aspectos que, por suas peculiaridades, reclamam um cuidado maior na perspectiva do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que é um valor jurídico que, nesse tipo de contrato, ganha uma singular importância.
Destarte, não se pode olvidar das peculiaridades características que são imanentes ao contrato coletivo empresarial de saúde e que se projetam sobre a forma como os reajustes devam ser aplicados, aferidos com base em critérios que não coincidem ou não se equiparam, nem se podem equiparar ao que ocorre nos contratos individuais. O objeto de um tipo de contrato e doutro é acentuadamente diferente se considerarmos a questão do equilíbrio econômico-financeiro.
Nos contratos coletivos empresariais, com efeito, costuma-se prever um reajuste anual com base no critério da sinistralidade, que vem a ser uma forma de quantificar a variação de custos enfrentada pelas operadoras do plano de saúde. Aqui surge uma primeira e importante distinção em face do que sucede com os contratos individuais. Pois que enquanto nestes a agência reguladora fixa o índice do reajuste anual, no caso dos contratos coletivos empresariais a operadora possui a liberdade para fixar o percentual do reajuste, desde que se observem certos parâmetros, que foram erigidos pela jurisprudência e que, em essência, obstam que se apliquem a título de reajuste anual (por sinistralidade) percentuais abusivos, conquanto a jurisprudência não tenha fixado, nem o poderia fixar o que concretamente se deva entender por um reajuste abusivo, deixando, por boa cautela, a análise desse tipo de matéria às circunstâncias específicas que envolvem cada demanda. Este último aspecto guarda um importantíssimo componente fático, com influxo sobre o que foi decidido na r. sentença.
A questão do equilíbrio econômico-financeiro constitui, portanto, um valor jurídico importante nos contratos empresariais coletivos, o que justifica a margem de liberdade que a agência reguladora reconhece em favor das operadoras de plano de saúde. O que, contudo, não significa que se trate de uma liberdade absoluta, e que não se deva sujeitar a critérios que são impostos por normas constitucionais, porque se deve considerar que o especial bem da vida – o direito à saúde – que é objeto do contrato de plano de saúde, antes de ser protegido pelo Código de Defesa do Consumidor, mereceu e merece constante proteção jurídica que lhe é dada pela Constituição da República de 1988, que, em seu artigo 196, protegendo o direito à saúde, erigindo-o, pois, a um direito fundamental, determina que o conteúdo e o alcance desse direito fundamental projete efeitos como material hermenêutico no campo das relações contratuais, impondo uma análise que busca estabelecer um equilíbrio entre as partes contratantes, de maneira que nenhuma delas fique com a sua esfera contratual aquém de uma proteção mínima.
No caso em questão, como se cuidou ressaltar, a argumentação do autor-apelante radica em essência em questionar acerca da razoabilidade e proporcionalidade dos índices aplicados pela ré para a quantificação dos reajustes aplicados com base no critério da sinistralidade. Assim, se é de se reconhecer em favor da parte ré a liberdade para fixar esses índices, porque se trata de um contrato coletivo, também é imperioso observar que essa liberdade não é absoluta, devendo se sujeitar a critérios como os da razoabilidade e, especialmente, o da proporcionalidade, porque a interpretação das cláusulas contratuais passa necessariamente pela interpretação da norma constitucional do artigo 196. Com efeito, devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, o que conduziu a que no campo do direito privado pudesse ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
Há, portanto, um importante conteúdo fático sob controvérsia e que diz respeito à definição acerca da razoabilidade e da proporcionalidade dos índices aplicados ao contrato que vincula autor e ré, e dessa controvérsia fática olvidou o juízo de origem, quando, de modo açodado, decidiu julgar antecipadamente a lide, desconsiderando simplesmente o que o autor cuidara requerer as folhas 709/710, e nomeadamente desconsiderando que existe uma controvérsia fática ao desimplicar da qual é indispensável a produção de perícia, que buscará apurar o que forma no caso em concreto o equilíbrio econômico-financeiro, não apenas do contrato, mas da própria mantença do negócio da operadora de saúde, o que torna indispensável uma correta e consistente análise desses cálculos atuariais.
Pois que nesse tipo específico de contrato, e nomeadamente por se tratar de um contrato coletivo empresarial, com aspectos tão variados e que devem ser encarados sobretudo em sua feição econômica, figurar um percentual como abusivo ou desarrazoado, sem conhecer dos cálculos atuariais, é lançar-se, aí sim, no campo da aleatoriedade. Daí a ineludível necessidade de uma perícia que deva analisar os diversos aspectos que foram tomados em consideração nos cálculos atuariais realizados para que a operadora do plano chegasse ao percentual que aplicou ao reajuste.
Sobreleva também considerar a importância no campo fático de um documento que o autor requereu e que certamente será de grande valia ao perito. Trata-se da “nota técnica”, que é um conjunto de informações econômico-financeiras que tem impacto direto no preço que é cobrado do usuário de um plano de saúde.
A r. sentença incidiu, portanto, em nulidade por ter injustificadamente obstado que o autor pudesse produzir prova documental de relevo, caracterizando-se aí o cerceamento de defesa, como também incidiu em nulidade ao julgar antecipadamente a lide quando essa solução não é evidentemente consentânea com a controvérsia fática instalada nos autos, para a qual se deve produzir a prova pericial, com análise pelo perito da nota técnica e de outros elementos de informação que entender adequados. A r. sentença é nula porque desatendeu ao princípio do devido processo legal “processual” e “substancial”.
Por fim, é de rigor observar que r. sentença qualificou como de consumo a relação jurídico-material objeto da lide, o que obrigava o juízo de origem a considerar a aplicação de certos predicados processuais que vêm do Código de Defesa do Consumidor, e dentre esses predicados está o que diz respeito ao ônus da prova e a possibilidade sua inversão. A tempo oportuno, depois que a prova pericial estiver concluída, madura a causa a que receba julgamento, o juízo de origem cuidará de analisar essa importante questão que envolve o ônus da prova e sua aplicação ao caso em concreto.
POSTO ISSO, pelo meu voto dou provimento ao recurso para declarar nula a r. sentença, porquanto caracterizada a violação ao princípio do devido processo legal “processual” e “substancial”, de modo que é de rigor que se faça determinar a produção de prova pericial, acolhendo-se ainda o requerimento formulado pelo autor quanto a determinados documentos que a ré deverá apresentar e que se revelam de importância na realização da perícia.
Condeno a ré apenas em honorários de advogado, estes fixados com base no critério de equidade em R$1.000,00 (um mil reais).
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR