PLANO DE SAÚDE. CLÁUSULA QUE FIXA INTERSTÍCIO MÍNIMO ENTRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DE RESCINDIR E A RESCISÃO, COM A OBRIGAÇÃO DE O CONTRATANTE MANTER O PAGAMENTO DOS PRÊMIOS NESSE PERÍODO. IRRADIAÇÃO DE EFEITOS PROJETADOS POR DIREITOS FUNDAMENTAIS NA INTERPRETAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE ASPECTOS DA RELAÇÃO JURÍDICO-CONTRATUAL. CLÁUSULA DECLARADA NULA

O caso: é algo frequente que as operadoras de plano de saúde façam inserir nos contratos que firmam cláusula segundo a qual, em havendo rescisão solicitada pelo contratante, que nesse caso deva transcorrer determinado espaço de tempo, uma espécie de interstício entre a manifestação de vontade de rescindir e a rescisão efetivamente implementada. No caso examinado, a cláusula previa um prazo mínimo de sessenta dias. Durante esse prazo, prevê o contrato que o contratante permaneça vinculado ao contrato, obrigado assim a pagar os prêmios que se vencerem até que a rescisão efetivamente ocorra. A discussão é quanto à validez dessa cláusula contratual. A matéria foi analisada sob uma perspectiva que ainda não é usual no Brasil e que diz respeito a irradiação de efeitos projetados por direitos fundamentais sobre relação contratual privada. A seguir, o texto da sentença.

Vistos.

A pessoas jurídica, (…) promove contra (…) esta ação, com o objetivo de que se declare a nulidade, de pleno direito, de cláusula contratual, porque se a deve, segundo a autora, caracterizar-se como abusiva, na medida em que, sem previsão legal e justa razão, impõe um prazo de sessenta dias como condição para a extinção do contrato e ainda mediante a obrigação de pagamento do prêmio, cujo valor a autora quer lhe seja reconhecido o direito de receber em restituição. Adota-se o rito comum.

Segundo a peça inicial, em dezembro de 2018, a autora firmou com a ré um contrato de plano de saúde empresarial, abrangendo os serviços de atendimento médico hospitalar e de obstetrícia, ajustando-se o valor da parcela inicial em R$3.735,23, sendo que, em pouco mais de um ano, esse valor sofreu reajuste, de modo que a parcela mensal passou a corresponder a R$4.676,24, um reajuste da ordem de aproximadamente 25%, o que conduziu a autora a optar por um contrato mais vantajoso, vindo a requerer, em junho de 2020, a extinção do vínculo contratual com a ré, a qual, no entanto, pretextou que o contrato previa um “aviso prévio” de sessenta dias, de modo que a autora teria que arcar com o pagamento de mais duas parcelas mensais, após o que se daria por extinto o contrato.

Nesse contexto, argumenta a autora que já havia decorrido o prazo de fidelidade ao contrato por doze meses, de forma que não se lhe afigura justo fosse obrigada a aguardar ainda por sessenta dias após externar a vontade de rescindir o contrato, para que obtivesse a sua extinção, tendo levado ao conhecimento da agência reguladora o exame da matéria, mas sem obter uma posição clara a espeito. Daí aduzir a autora que, conquanto se cuide de uma relação contratual de natureza privada, há que se considerar que se cuida sobretudo de uma relação jurídico submetida ao específico regime jurídico-legal do Código de Defesa do Consumidor, em função do qual se deve interpretar a cláusula contratual invocada pela ré, a qual, segundo a autora, não prevê senão que a exigência de uma comunicação escrita, que foi feita, e que se aguardasse por sessenta dias, não se tendo previsto no contrato, contudo, que houvesse a mantença do vínculo contratual que justificasse a cobrança das duas parcelas mensais, omissão que a ré cuidou colmatar em contratos mais recentes.

Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência da cláusula contratual em questão, porque expressa e com a qual a autora acedeu, a qual prevê que, em tendo sido requerido o cancelamento do contrato, como sucedeu no caso da autora, a extinção do vínculo somente pode ocorrer em um prazo mínimo de sessenta dias, e mediante o pagamento dos prêmios, dado que o contrato mantém-se válido, vigente e eficaz por esse tempo, o que justifica a cobrança. Obtempera, de resto, que não se aplicar o Código de Defesa do Consumidor, dada a condição jurídica da autora de empresa.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A relação jurídico-material que forma o objeto desta lide é exclusivamente de direito, o que autoriza se proceda ao julgamento antecipado da lide. De resto, as partes assim o requereram.

Registre-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

O contrato firmado entre as partes, cujo objeto é a prestação de serviços que se configuram como um plano de saúde, prevê a hipótese de a contratante, no caso a autora, pugnar a qualquer tempo e sem a necessidade de declarar o motivo, pela rescisão do contrato, mas estabelecendo determinados efeitos se a rescisão é solicitada antes do prazo de fidelidade (de doze meses, contados da assinatura do contrato), ou quando esse prazo já esteja superado. No caso da autora, a rescisão foi solicitada ao tempo em que já tinha cumprido o período de fidelidade. Para essa hipótese, o contrato prevê como condição a que a extinção opere efeitos que se aguarde por um prazo mínimo de sessenta dias, e mais, que pelo período que transcorrer até a efetiva rescisão, sejam pagos os prêmios relativos ao período.

Argumenta que essa cláusula caracteriza-se como abusiva, seja porque deva ser interpretada à luz do Código de Defesa do Consumidor, o qual exige que as cláusulas contratuais sejam claras e objetivas, seja porque não há justa razão em impor uma espécie de interstício entre a manifestação de vontade de rescindir e a rescisão efetivamente estabelecida, e que por isso tal cláusula, nula, não poderia produzir quaisquer efeitos, desobrigando-a de suportar o pagamento dos prêmios relativos ao período posterior à sua manifestação de vontade de rescindir o contrato.

Riposta a ré que o contrato em questão não pode ser submetido ao regime jurídico-legal do Código de Defesa do Consumidor, porque autora, enquanto pessoa jurídica de direito privado, não pode ser enquadrada a um consumidor, nem erigida à condição jurídica de hipossuficiente, para que pudesse se beneficiar de regras mais favoráveis à sua posição na lide.

Esse é o primeiro aspecto a ser analisado, porque sua solução determina a produção de certos efeitos jurídicos, como se cuidará demonstrar a seu tempo.

De acordo com o artigo 2º. da lei federal 8.078/1990, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto como destinatária final. Exatamente a condição em que a autora está no contrato, porque como tal, como pessoa jurídica, contratou os serviços da ré, ainda que destinando a fruição desses serviços a seus empregados. A ressalva que o legislador cuidou inserir no texto da norma em questão, de que se configure o contratante como destinatário final é de se compreendido no sentido de que o contratante está a contratar em seu próprio nome, não como um mero intermediário fático ou jurídico. Assim, a relação contratual firmada entre as partes configura-se como uma relação de consumo, aspecto que é de relevo considerar.

Com efeito, em sendo de consumo a relação jurídico-material objeto desta lide, e sendo o Código de Defesa do Consumidor um instrumento de que se utilizou o Estado para impor determinadas limitações à iniciativa privada, ou seja, à liberdade contratual, daí decorre que sobre esse tipo de relação jurídico-material projetam-se efeitos que decorrem dos direitos fundamentais que a nossa Constituição de 1988 prevê, direitos fundamentais que devem ser utilizados como conteúdo para a interpretação e aplicação de normas contratuais.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, o que conduziu a que no campo do direito privado pudesse ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

Na caso em questão, perscruta-se se a cláusula contratual que impõe um período mínimo de sessenta dias como condição a que se conceda a rescisão do contrato, se essa cláusula deve prevalecer, ou se seria o caso de, considerando o conteúdo de direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, aplicados como imperativos de tutela, e analisando nesse contexto se o mecanismo de controle que é a proibição do excesso, o que significa examinar se é justa ou não a referida cláusula contratual, ou se ela sobre-excede um grau razoável de proteção da estrutura do contrato, revelando-se então como uma norma desproporcional.

De importância destacar que a cláusula contratual em questão não explicita nenhuma razão ou motivo que justifique o interstício mínimo de sessenta dias entre a comunicação do contratante e a rescisão, de modo que não se pode saber, com precisão, a que precisa finalidade a ré queria alcançar com essa condição. Poder-se-ia supor que isso fosse necessário a manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ou a necessidade de algum tempo para o ajuste nos registros da ré. Pode-se supor isso e tudo o mais, mas o que sobreleva considerar é que a ré não cuidou tornar expresso na cláusula contratual a finalidade do prazo de sessenta dias.

De todo o modo, ainda que providências desses jaez pudessem justificar o interstício, o tempo previsto de sessenta dias revelar-se-ia, só por isso, excessivo, nomeadamente se considerarmos que a cláusula em questão enfatiza que se trataria de um prazo mínimo, e que durante o período a autora teria que arcar com o pagamento dos prêmios, quando ela própria declarara a vontade de não mais se utilizar dos serviços contratados, quando firmou a comunicação e a fez recebida formalmente pela ré.

O que caracteriza, portanto, um excesso injustificadamente concedido à ré na relação contratual – e uma relação contratual que, por se configurar como uma relação de consumo, apresenta, como seu elemento conatural, uma especial proteção decorrente de direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, aqui aplicados como imperativos de tutela, segundo a consistente teoria do jurista CLAUS-WILHELM CANARIS.

Assim, aplicando-se a proibição do excesso, declara-se nula a cláusula contratual no que impõe como prazo mínimo de sessenta dias como condição para a rescisão do contrato, como nula também na parte em que impõe o pagamento dos prêmios no período transcorrido até a rescisão. Nula tal cláusula, nesses aspectos, ela não pode produzir quaisquer efeitos contra a esfera jurídica da autora, portanto, o que significa dizer que ela está desobrigada de pagar os prêmios, e ainda que a rescisão ocorreu no momento em que a manifestação de vontade da autora foi recebida formalmente pela ré.

Condena-se a ré, pois, a restituir à autora o valor do prêmio efetivamente pago (folha 3), aplicando-se sobre esse valor os índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, e juros de mora de acordo com o Código Civil e incidentes desde a citação.

POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido, declarando nula a cláusula contratual em questão, seja no que diz respeito ao prazo mínimo de sessenta dias como interstício, seja quanto à obrigação de pagamento dos prêmios no período em que se aguardava pela rescisão, cláusula que, nula, não pode produzir contra a esfera jurídica da autora nenhum efeito, reconhecendo-se, em consequência, o direito de receber, em restituição, o que pagou a título de prêmio nesse período, restituição que observará a incidência de correção monetária e juros de mora, tal como determinado. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno a ré no pagamento da taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária desde o respectivo desembolso, e honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, devidamente corrigido.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 24 de fevereiro de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO