PARA ALÉM DA LINGUAGEM DO DIREITO POSITIVO

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PARA ALÉM DA LINGUAGEM DO DIREITO POSITIVO

É comum encontrar-se na doutrina do Direito a afirmação de que a interpretação jurídica é feita com base em critérios já tornados tradicionais, como o literal, histórico-evolutivo, lógico-sistemático, de modo que basta ao juiz aplicar esses critérios sobre o texto de uma norma legal, para que lhe sejam revelados o seu conteúdo e a extensão daquilo que o legislador quis.

I
Tudo parece bem simples por uma razão também simples: é que a Ciência do Direito desde sempre esteve muito afastada das preocupações da Semiótica e da Semiologia, dado que o foco de atenção destas invariavelmente é a Literatura. Os textos jurídicos e as normas legais em especial, por não serem considerados como uma escrita literária, não despertam por isso o interesse daquelas ciências. Mas isso não significa que a problemática da linguagem do direito positivo não exista e não precise ser enfrentada.

ROLAND BARTHES, em seu famoso livro “O Grau Zero da Escrita”, propôs-se a estudar sob a perspectiva da Semiótica e da Semiologia se, de fato, existe uma realidade formal que seja independente do texto da escrita em geral. Utilizaremos aqui de algumas ideias que BARTHES desenvolveu nessa obra, aplicando-as na tentativa de descobrir se, no campo do direito positivo, existe, tanto quanto na Literatura, uma realidade formal que possua independência em face do texto da norma legal – e se assim ocorre, que efeitos devem ser considerados no campo da Hermenêutica Jurídica, em especial quando se trata de analisar como se dá a interpretação pelo juiz de uma norma legal.

Começaremos com uma preciosa observação de BARTHES, porque ela toca de perto um problema que o Direito positivo enfrentou bem cedo, desde que SAVIGNY enfatizou a relação cultural que existe entre Direito e a História, o que o conduziu a operar com a ideia de que existem os institutos jurídicos, nascidos e moldados pela evolução histórica, dando azo a que logo em seguida fosse criada o que conhecemos na Metodologia do Direito como a “Jurisprudência dos Conceitos”. BARTHES escreve:
“(…) a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente no meio das significações novas. A escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança, é essa liberdade recordante que não é liberdade senão no gesto da escolha, mas não mais na duração. Posso sem dúvida escolher hoje para mim esta ou aquela escrita, e nesse gesto afirmar a minha liberdade, pretender buscar um frescor ou uma tradição; já não a posso desenvolver numa duração sem me tornar pouco a pouco prisioneiro das palavras de outrem e até de minhas próprias palavras. Um remanescente obstinado, vindo de todas as escritas precedentes e do passado mesmo de minha própria escrita cobre a voz presente de minhas palavras. Todo vestígio escrito se precipita como um elemento químico inicialmente transparente, inocente e neutro, no qual a simples duração faz aparecer, pouco a pouco, todo um passado em suspensão, toda uma criptografia cada vez mais densa.”. (“O Grau Zero da Escrita”, p.16, Martins Fontes, 2000).

Códigos são revogados e deixam de existir com uma frequência cada vez maior, resultado, sem dúvida, da imposição de uma sociedade caracterizada pela pressa e pela precipitação. Monumentos legislativos desaparecem da noite para o dia, dando lugar a novos códigos, com seus princípios e regras, muitos dos quais em sentido diametralmente oposto aos da legislação anterior. Mas não é tudo que se modifica, naturalmente. O Código Civil de 2002 é um exemplo de como o legislador, usando do bom senso, aproveitou muito bem do excelente material legislativo que formava o Código de 1916, mantendo diversos conceitos, institutos e ideias daquele código.

Mas tanto as novas regras, quanto aquelas que constituem a novidade de um código impõem-se ao juiz com força obrigatória, exigindo-lhes um trabalho de interpretação. É aí que se coloca o problema provocado pela percuciente observação de BARTHES no sentido de que as palavras têm uma memória própria, que desafia o tempo.

Quando o juiz está a interpretar, por exemplo, o conceito de boa-fé, como está previsto no artigo 187 do Código Civil de 2002 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”), surge, sem que ele perceba, uma realidade formal da escrita, revelada por uma memória imanente e que envolve as palavras e termos antes usados por uma legislação já revogada, como no caso do Código Civil de 1916. Aliás, essa memória embutida nas palavras é tão mais acentuada e importante quanto mais indeterminado for o conceito jurídico a elas ligado, como se dá no caso do conceito jurídico de “boa-fé”.

Pois bem, é essa realidade formal da escrita legal que está por merecer da Semiologia e da Semiótica uma atenção e um estudo profundo, cujo material possa ser aproveitado pelos operadores do Direito, para que possam compreender o que de misterioso envolve a Hermenêutica jurídica, que não pode mais se limitar a uma operação ditada por uma lógica-formal de há muito superada.

A forma é um valor, como sublinha BARTHES, e é por isso que os operadores do Direito devem considerar que, para além da linguagem do direito positivo, há uma realidade formal, que é a escrita, sobretudo a da lei.

II
Tomemos um exemplo tirado de nossa realidade: a “Lei da Segurança Nacional” (lei federal 7.170, de 14 de dezembro de 1983). Utilizemo-nos dessa lei para compreendermos como a escrita materializada em uma lei possui, como diz BARTHES, uma linguagem que nunca é inocente, dado que as palavras têm uma memória que se prolonga misteriosamente em meio a significações novas, e como isso impacta o juiz no momento em que está a interpretar a norma legal.

Voltemos a BARTHES, no ponto em que ele busca desimplicar uma determinada escrita: a escrita política, que ele caracteriza como uma “escrita axiológica”, em que o poder ou a sombra do poder sempre acaba por instituir um valor, com uma finalidade específica, dado que “o trajeto que separa comumente o fato do valor fica suprimido no espaço mesmo da palavra, dado ao mesmo tempo como descrição e julgamento”.
Desenvolvendo essa ideia, BARTHES aduz que a escrita política “funciona como uma consciência tranquila que tem como missão fazer coincidir fraudulentamente a origem do fato e a sua manifestação mais longínqua, dando à justificação do ato a caução de sua realidade. Esse fato de escrita é aliás próprio a todos os regimes autoritários: é o que se poderia chamar de escrita policial: conhece-se, por exemplo, o conteúdo eternamente repressivo da palavra ‘Ordem”.

É exatamente com base nessa palavra “ordem” que analisaremos a linguagem que está para além do conteúdo da “Lei de Segurança Nacional”. A propósito, no título dado a essa lei já nos aparece a palavra “ordem”, trazendo com ela todo um conteúdo axiológico que o governo militar queria impor como tal – como valor e sobretudo como um valor jurídico-, embora intencionalmente colocado no texto da lei como se deve ali estar como um mero fato, ou como a descrição de uma dada realidade.

Esse fenômeno ocorre todas as vezes em que a palavra “ordem” aparece no texto da referida lei, como em seus artigos 17, 22, I, 23, I.

A escrita dessa lei é de ser caracterizada como uma evidente “escrita axiológica”, em que a dicção legal foi empregada de modo intencional pelo governo militar como um álibi, ou seja, como uma justificação, como a explicar à nação brasileira que, em 1983, era ainda necessário, como diz o artigo 1º. da lei, proteger “a integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”, e também “a pessoa dos chefes dos poderes da União” – como se esses órgãos e instrumentos de poder estivessem em uma situação de perigo diante de forças revolucionárias, comunistas ou marxistas. Com efeito, instalado no poder desde 1964, o governo militar, por meio de uma escrita marcadamente política, materializada em leis como a da “Segurança Nacional”, impunha aos juízes e tribunais uma determinada forma como valor (a escrita legal e com finalidade política).

Mas como é uma linguagem axiológica, a linguagem política, materializada em uma lei, por expressar um poder, revela-se, como observa BARTHES, como um dos tipos mais puros da escrita.

Essa pureza da escrita, contudo, traz um importante problema na intepretação que o juiz deve realizar, porque se é verdade, como demonstra BARTHES, que a linguagem nunca é inocente e que as palavras têm uma memória que se projeta por um tempo indefinido, no caso de normais legais isso também sucede, o que significa dizer que as significações que surgem com conceitos como “ordem”, “estado de direito”, “livre exercício dos poderes da União”, “processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política social”, trazem consigo, como algo que lhes é imanente, uma memória de significados e de signos, impondo-se como tal ao juiz, para lhe reduzir perigosamente a margem de liberdade na atividade de interpretação da lei.

Os juristas afirmam que o juiz, ao interpretar uma lei, deve utilizar, como critério hermenêutico, o histórico-evolutivo, com o que defendem que o juiz deva buscar extrair de uma vetusta norma um sentido que quadre com a realidade existente no momento em que a interpretação da norma estiver a ocorrer. A propósito, é também com essa finalidade que a “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” por seu artigo 5º, afirma que, “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Mas, infelizmente, a Semiologia e a Semiótica, e, particularmente, BARTHES revelam-nos que a credulidade do operador do Direito não resiste a um pequeno assopro, que vem quando se perscruta o que está para além da linguagem do direito positivo.