OS POBRES DE PEDIR JUSTIÇA. O FENÔMENO JURÍDICO NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

OS POBRES DE PEDIR JUSTIÇA. O FENÔMENO JURÍDICO NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.

“Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade (…). Infelizmente, exige-se pouco de nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista…” (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, “Autobiografia para uma Revista”, in “Confissões de Minas”).

Carlos Drummond de Andrade percorreu um longo caminho desde a sua estreia com o livro “Alguma Poesia” na década de 1920, em que seu olhar e sua preocupação estavam no descrever a realidade local, a de sua mineira Itabira do Mato Dentro, refletida em “Cidadezinha qualquer”: “Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Devagar … as janelas olham. /Eta vida besta, meu Deus”. Logo depois, já no terceiro livro, escrito na década de 1940, “Sentimento do Mundo”, seu olhar ampliou-se além do infinito, chegando ao ser humano, como se vê do poema “Mundo grande”: “Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso gosto tanto de me contar.”.

Rememoremos, pois, um de seus poemas, daqueles menos conhecidos do grande público, na tentativa de demonstrar que dentre as [re]leituras que se pode fazer de sua vastíssima obra, é possível constatar que o fenômeno jurídico não lhe passou despercebido – porque, de resto, não lhe era indiferente uma preocupação filosófica que, com constante esforço, ele buscava assentar na realidade social, o que o tornava um exímio revelador do cotidiano, na ingente luta que travava com as palavras (“Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Enquanto lutamos/ mal rompe a manhã.(…”) —[1] e ao mesmo tempo, um poeta-filósofo (ou um filósofo-poeta), apropriando-se, com a maturidade conquistada, de uma linguagem metafísica, mas surpreendentemente não-hermética, e por isso dotada de uma força em si operativa.

Quiçá Drummond levasse a sério uma observação de MARX, para quem os filósofos apenas interpretavam o mundo de maneiras diferentes, mas não conseguiam transformá-lo,[2] o que o conduziu a um método dialético singular, em que sua expressão poética, vazada em traço inconfundível, funcionava, ou tentava funcionar como um simbionte entre a realidade social e a mudança que nela objetivava atuar.

Essa é, aliás, uma das mais significativas características do trabalho poético do autor de “A Máquina do Mundo”, revelada na ideia que lhe vai subjacente, segundo a qual a poesia é sempre um fato problemático para o qual se deve buscar alguma solução. A propósito, pode-se localizar aí uma possível explicação para o contínuo trânsito que se observa entre dois polos em que a sua lírica estrutura-se: entre a concretude da realidade social, captada de forma arbitrária (e por isso multiforme), e o pensamento reflexivo – elementos que, soldados, revelam seu idiossincrático modo de construir o poema e a forma como experimenta a realidade, seja simplesmente para denunciá-la, como por ror vezes afigura-se sua intenção, seja para tentar, ainda que ingenuamente, alterá-la.[3]

Como se a realidade surgisse aos olhos do poeta como um daguerreótipo, cuja consistência, contudo, aparentemente desapareceria no momento em que buscasse transpô-la para o ilusório, como forma de transformá-la em consciência. É o que observa Affonso Romano de Sant’ana em trabalho acadêmico dedicado a Drummond: “O poeta, como autêntico gauche ao utilizar da língua comum, na verdade está propondo uma substituição da realidade, na medida em que altera ele mesmo a própria linguagem”.[4]

Acostumado, assim, a imprimir à sua poesia uma linguagem abstrata e impessoal, fruto inelutável da tentativa de erigir o pensamento como problema central, Drummond acabou permeando seu estilo de um “claro sentido enigmático” (“As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão. (…)”,[5] colocando o leitor invariavelmente diante de uma linguagem deveras simbólica e suspicaz e, pois, diante de uma dificuldade inicial de intelecção (“tinha uma pedra no meio do caminho”), para deslinde da qual se lhe exige sempre uma prévia e plena compreensão do que significa a palavra no texto e contexto de sua expressão poética:

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar. (“A Palavra”).

De resto, exatamente dessa constante transposição do real para o ilusório, é que exsurge a acentuada dificuldade de se distinguir, na poesia drummoniana, o que é genuinamente literário. Com efeito, como sua linguagem denota, com inusitada frequência mesmo nos poetas modernistas, referentes externos (o que na obra literária não é comum nem a caracteriza), a correspondência que ele, sem remissão, entabula com a realidade social acaba por impor uma contínua aproximação com a Filosofia, a ponto que sua linguagem fatalmente contamina-se com esse matiz metafísico.[6]

O que não quer significar, e de fato não significa uma reflexão idêntica àquela que a Filosofia leva a cabo, pois com razão observa Davi Arrigucci Junior que a reflexão na lírica drummondiana não se reveste do puro pensamento manipulado pela Filosofia, embora “com ela tantas vezes sonha unir-se”.[7] Não se pode olvidar, demais, que é plenamente possível conjugar lirismo e metafísica.[8]

Em todo caso, fazendo poesia, DRUMMOND produziu também filosofia.

É possível, e efetivamente isso sucede, que não se encontre nas primeiras obras de Drummond, nomeadamente em “Alguma Poesia” (1930) e em “Brejo das Almas” (1934), essa forma metafísica de construção poética, nem nelas se possa descobrir uma visão dialética e inquiridora da realidade social (ainda que meramente contemplativa), pelo menos com o vigor que aparecem no estádio da maturidade, principiado com o livro “Sentimento do Mundo” (1940), quando, então, há pelo poeta a descoberta do “Eu”, sobre o que reflete,[9] e a consciência do que significam em sua expressão poética o tempo e o espaço. Conforme explica AFONSO ROMANO DE SANT’ANA na obra mencionada:

“A consciência do tempo estava praticamente ausente dos primeiros livros, porque aí o ego, maior que o mundo, não se permite relacionar nem criar raízes, pois se bastava a si mesmo. O sentido temporal que falta àquele mundo chão é o sentido temporal que falta ao personagem-autor, pois o tempo não existe fora da consciência do tempo. (…)”.[10]

Se, como dizia PESSOA, há apenas três realidades sociais: o indivíduo, a nação e a humanidade,[11] seguia DRUMMOND esse caminho no desenvolvimento de sua reflexão poética.

Assim, no bojo dessa conexão entre a poesia e a Filosofia, e já na fase em que o poeta adquirira maior envergadura na forma reflexiva com a qual conduzia sua lírica, produziu Drummond um poema intitulado “Declaração em Juízo”, inserido em um livro, “As Impurezas do Branco” (1973), que não é central no conjunto de sua obra, mas cuja importância é cara àqueles que atuam no Direito e com o Direito.

Examinada a tessitura desse poema, depreende-se um sistema requintado de circunvolução em face de um personagem “sobrevivente”: “Peço desculpa de ser / o sobrevivente”.

Ao leitor o poeta propõe um novo enigma, para solução do qual é imperioso remontar ao último poema “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin”, que compõe o livro “A Rosa do Povo”, em que o poeta, quase trinta anos antes (em 1945), falava dos “abandonados da justiça”, daqueles a quem o Direito não presta a devida atenção: são os “pobres de pedir”, como diria o escritor português, RAUL BRANDÃO. São os que pedem justiça, mas não a obtêm.

A chave para a solução do enigma proposto em “Declaração em Juízo” radica na compreensão de que DRUMMOND, fazendo poesia, estava também e principalmente a fazer crítica – crítica aqui do Direito como estrutura que regula a sociedade.

Alicerçada em uma linguagem plurissignificativa que é própria do texto literário, a obra do poeta itabirano, como todas as grandes obras literárias, comporta elásticas interpretações, como forma de lhas dar eternidade. A respeito, observa VÍTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA: “Por tudo isto, as grandes obras literárias de todos os tempos têm suscitado e continuam a suscitar tão diversas interpretações, oferecendo ao leitor a sua inexausta riqueza e guardando sempre um indevassado segredo. (…)”.[12] E como afirma ROLAND BARTHES, uma obra é eterna não porque impõe um sentido único a homens diferentes, mas porque sugere sentidos diferentes a um homem único, que fala sempre a mesma língua simbólica ao longo de um tempo múltiplo.[13]

(…)
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem
no céu livre por vezes um desenho
são puras, largas, autênticas, indevassáveis”. (“Consideração do Poema”).

Esse é, pois, o mote para este breve ensaio, em que se busca empreender uma inusitada releitura do poema “Declaração em Juízo”, ainda não experimentada na fortuna crítica do poeta itabirano, para demonstrar, ou tentar demonstrar que o fenômeno jurídico foi nesse poema elevado a uma tema poético, não evidentemente como conceito ou puro pensamento especulativo, como o faz a Filosofia, mas como um problema sobre o qual é necessário pensar-se, ainda que para ao final considerar-se que há um limite negativo à cognição. Evidentemente que isso quer significar uma possível leitura, porque cada leitor de DRUMMOND é afinal um seu intérprete.

Voltemos ao poema “Declaração em Juízo”:

Reparem: não tenho culpa.
Não fiz nada para ser
Sobrevivente.
Não roguei aos altos poderes
Que me conservassem tanto tempo.
Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente
Se me deixei ficar,
Foi sem segunda intenção.
(…)
Sobrevivente incomoda
Mais que fantasma. Sei: a mim mesmo
Incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me.
Devolvo-me, provoco-me.
Não adianta ameaçar-me. Volto sempre

DRUMMOND, recordando-se de suas leituras de KAFKA (“Diante da Lei”), revela ao leitor quem é, de fato, o sobrevivente, o que ele espera e o que ele não pode esperar diante de uma indiferença:

“Desconfio nada pode ser feito
A meu favor ou contra.
Nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
De um grupo muito antigo
De que não há memória nas calçadas
E nos vídeos.
(…)
É esperar apenas, está bem?
Que passe o tempo de sobrevivência
E tudo se resolva sem escândalo
Ante a justiça indiferente.
Acabo de notar, e sem surpresa:
Não me ouvem no sentido de entender,
Nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
e nenhuma coisa, e branca”.

São os pobres de pedir justiça, os sobreviventes que formam o tema central desse poema, ou crônica, pois como anotou ANTÔNIO CÂNDIDO, na poesia de DRUMMOND há ficção e crônica; na sua crônica, poesia e ficção; na sua ficção, crônica e poesia, “tudo formando o que para ele decerto são tentativas, mas para nós são realizações completas e exemplares. (…)”.[14] Avançaríamos de modo significativo quando, junto a razões jurídicas como a proteção à economia e às empresas, considerássemos de igual modo a preocupação com os sobreviventes – os pobres de pedir justiça.
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[1] José.
[2] Marx – Engels, Obras Escolhidas, v. 1, p. 3.
[3] Como dizia SARTRE: “A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; só esse espelho crítico lhe oferece a própria imagem”. (“As Palavras”, p. 157).
[4] Apud AFONSO ROMANO DE SANT’ANA, “Drummond: o gauche no tempo”, p. 59.
[5] Poema “Memória”, publicado em “Claro Enigma”.
[6] Como percebeu o filósofo e professor BENTO PRADO JUNIOR, in “A Vasta Periferia”, artigo publicado no Caderno “Mais”, do jornal “Folha de São Paulo”, edição de 27 de outubro de 2002.
[7] Coração Partido, p. 143.
[8] “(…) da mesma forma que não existe conflito entre lirismo e a figura do poeta como dramatis personae, é possível conjugar também lirismo e metafísica. O fato de que a poesia tenha um conteúdo emocional, como o disse Herbert Read, não a indispõe contra o pensamento. Na autêntica poesia metafísica, não há dualismo entre emoção e pensamento, pois aí poesia é concebida como ‘apreensão emocional do pensamento”. (AFFONSO ROMANO DE SANT’ANA, in “Drummond: o gauche no tempo”, p. 215).
[9] “Concentrado sobre si mesmo, sobre seu próprio coração, Drummond, sempre meditativo, se esforça por dizer o difícil, repto da grande poesia, que depende da fidelidade à busca e a si mesmo”. (DAVI ARRIGUCCI JUNIOR, in “Coração Partido”, p. 41).
[10] AFONSO ROMANO DE SANT’ANA, in “Drummond: o gauche no tempo”, p. 83 e 103.
[11] “Explicação de um Livro: [Mensagem]”.
[12] Teoria da Literatura, p. 35.
[13] Crítica e Verdade, p. 51.
[14] ANTÔNIO CÂNDIDO, in “Drummond Prosador”.