OFUSCAMENTO DO DIREITO CONSTITUCIONAL

OFUSCAMENTO DO DIREITO CONSTITUCIONAL
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

Quem acompanha de perto a nossa jurisprudência em matéria de direito privado terá percebido quão raro é a menção a normas constitucionais, como se elas não existissem ou não devessem ser aplicadas. Isso ocorre particularmente em julgados no quais se discute o direito do consumidor, cuja disposições parecem ser autossuficientes.

Criado em 1990, o Código de Defesa do Consumidor transformou de fato a nossa legislação de direito privado, incorporando regras de responsabilidade objetiva (artigo 54) e adotando a técnica da inversão do ônus da prova, antecipando o que o Código de Processo Civil de 2015 viria a prever. Esse Código modificou na essência as relações de consumo, permitindo que o juiz as veja de modo distinto do que se dá com as relações jurídico-privadas em geral – e é positivo que isso suceda.

Mas o Código de Defesa do Consumidor trouxe também um importante problema: ele ofuscou o direito constitucional, quase que não mencionado ou invocado quando se identifica como de consumo o objeto da lide. É como se bastasse dizer o juiz ou tribunal que se trata de uma relação de consumo para, sem mais, afastar-se a necessidade de se socorrer das normas constitucionais.

Confira-se, a título de exemplo, a jurisprudência sobre contratos de plano de saúde, individuais ou coletivos. Na imensa maioria dos julgados nessa matéria, a aplicação das normas circunscreve-se ao Código de Defesa do Consumidor. Olvida-se, pois, que as normas que preveem direitos subjetivos de matriz constitucional, como a do artigo 196, projetam efeitos sobre as relações jurídico-privadas, inclusive as relações de consumo, conferindo uma proteção jurídico-legal mais completa às relações privadas.

O conhecido jurista alemão, CLAUS-WILLIAM CANARIS, em um congresso de professores do Direito Civil realizado na década de 1970 na Alemanha, já havia identificado esse grave problema: a desconsideração pela doutrina e jurisprudência do Direito Civil da aplicação das normas constitucionais, as quais assim não eram consideradas como importante material hermenêutico. Esse fenômeno está ainda suceder em nossa jurisprudência e isso merece nossa especial consideração.

Deve-se ponderar, com efeito, acerca das circunstâncias do caso em concreto, para que se possa decidir se a esfera jurídica do consumidor não está aquém de uma proteção jurídico-legal razoável. Esse é um tipo de análise que é feito quando se aplicam as normas constitucionais às relações privadas, sobretudo nas relações de consumo.

Não se pode deixar de reconhecer que o Código de Defesa do Consumidor é um monumento legislativo, seja por sua importância, seja pela originalidade, tendo se tornado de fato um paradigma de legislação para outros países. Mas também não se pode olvidar que a Constituição de 1988, em norma de direito fundamental, obriga o Estado a promover a defesa do consumidor, e que outras normas de direito fundamental, atuando como material hermenêutico, devem ser pensadas e aplicadas quando se está a analisar as relações jurídico-privadas em que está configurada uma relação jurídica de consumo.