O ABORTO E AS RELAÇÕES DE PODER

O ABORTO E AS RELAÇÕES DE PODER

Há uma forte tendência a que a Suprema Corte Americana venha nos próximos dias a modificar substancialmente a decisão sobre aborto, construída e sedimentada há muitos anos naquele país. Os especialistas em direito norte-americano dizem que é muito provável que aquele Tribunal, hoje formado por juízes de perfil conservador, retire o aborto do rol dos direitos subjetivos garantidos pela Constituição, o que permitirá que cada Estado norte-americano legisle a respeito, para permitir ou vedar o aborto.

É bastante frequente que mesmo entre os operadores do Direito pense-se que o Direito positivo está e deva mesmo estar indissociavelmente ligado à verdade. Devemos ao filósofo francês, MICHEL FOUCAULT a compreensão de que o Direito positivo (e mesmo o Direito como teoria) produz um conceito de verdade que lhe é próprio, e é por isso que, no campo das relações jurídicas (nas quais o poder está presente todo o tempo), a verdade, o discurso e o saber não devem ser postos em relação com o ser, com o objeto ou a realidade das coisas, senão que com as técnicas de poder, como FOUCAULT enfatiza em “A Vontade de Saber”, exemplificando com a questão da sexualidade. Diz ele: “A verdade sobre o sexo, como identificação da nossa verdade com a da nossa sexualidade, encontra-se ligada às grandes estratégias de poder que, desde o século XVIII, produzem a sexualidade e nos dão a nossa identidade sexual”.

A verdade, quando produzida pelo Direito, está submetida, portanto, a estratégias de poder (o poder, como afirma FOUCAULT, é da ordem da relação). E se essa relação muda, com ela mudam as estratégias de poder, o que se encaixa perfeitamente na questão do aborto.

De um direito garantido pela Constituição, o aborto terá a sua proteção jurídico-legal sensivelmente rebaixada nos Estados Unidos, o que comprova a percuciente observação de FOUCAULT no sentido de que a verdade que o Direito produz está sempre submetida a interesses políticos e a estratégias de poder. Juízes conservadores produzem a sua verdade, mas não é menos verdadeiro que também juízes com perfil liberal também a produzem, havendo aqui e ali estratégias de poder.

MAQUIAVEL, em “O Príncipe”, excluiu a Moral do campo da Política, exatamente por reconhecer que a verdade é um produto da estratégia de poder e de uma ideologia. Não teríamos que fazer o mesmo no caso do Direito positivo?