MECANISMO ILEGAL DE COAÇÃO INDIRETA. COBRANÇA DE MULTA COMO CONDIÇÃO PARA AUTORIZAÇÃO AO TRÁFEGO ESPECIAL PRODUTOS PERIGOSOS

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE. MEDIDA (A COBRANÇA DA MULTA) QUE SE REVELA INAPROPRIADA AO FIM A QUE SE DESTINA. ILEGALIDADE RECONHECIDA.

Vistos.

                                      Ao requerer a concessão de autorização especial exigida ao transporte de produtos perigosos, deparou-se a autora, (…), estabelecida nesta Capital, com o óbice da ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, apontoado no existir débito decorrente de multas de trânsito aplicadas sobre o veículo em relação ao qual tal autorização fora solicitada, argumentando a autora que ilegal o ato de recusa, porque materializa uma forma de coação indireta ao pagamento de encargos, não admitida em nosso Ordenamento Jurídico, pugnando, pois, por se declarar, sob esse fundamento jurídico, inválido o ato administrativo, reconhecendo-se-lhe o direito a obter a autorização especial, se nenhum outro óbice houver. Adotado o procedimento comum.

                                      A peça inicial está instruída com os documentos de folhas 11/24 e 28/32.

                                      Negada a concessão da tutela provisória de urgência (folha 34); não se registra a interposição de recurso.

                                     Citada, a ré confirmou que o óbice à concessão da autorização especial radica no existir débito decorrente de multa de trânsito aplicada sobre o veículo acerca do qual a autorização foi requerida, e que esse óbice, sobre tem previsão legal, é válido em nosso ordenamento jurídico em vigor (folhas 36/43).

         É o RELATÓRIO.

         FUNDAMENTO e DECIDO.

                                      A relação jurídico-material que forma o objeto desta demanda é unicamente de direito, a permitir se a julgue antecipadamente, registrando-se que não há matéria preliminar que penda de análise.

                                      Em nosso sistema, não é comum iniciar-se a análise de um tema jurídico pelo prisma constitucional, do qual muitas vezes se olvida. Isso reflete sem dúvida a diminuta importância que o nosso operador jurídico, nomeadamente o magistrado, confere ao Direito Constitucional, o que pode ser explicado pela abstração e natural fluidez dos princípios e regras constitucionais, que por essa característica reclamam do intérprete uma atividade hermenêutica mais acentuada, laboriosa e criativa, com a qual ele, em nosso sistema (“civil law”) não está acostumado, e da qual teme, ao contrário do que se dá no sistema da “common law”, como observa GERALDO ATALIBA em opúsculo de circulação restrita:

 

“O direito anglo-americano, diferentemente dos sistemas vigentes no continente europeu, não está fundado sobre códigos, nem se origina de atos legislativos. A fonte ideal desse direito é a mente dos juízes, ciosos guardiães do ‘common law’. Sua fonte visível são as sentenças judiciais. É por isso que o direito anglo-americano pode ser chamado ‘judge-mad-law’, mais do que ‘statu law’.

(…)”

“O juiz, no sistema latino, aplica a norma geral da lei ao caso concreto levado ante ele, compondo, segundo a justiça, conflitos submetidos a seu juízo; o juiz do common law se propõe a participar da elaboração nunca acabada da norma geral. Para ele, os precedentes, os atos legislativos e até a carta constiucional não são senão peças, já ordenadas, de um vasto e incompleto mosaico que representa o direito eterno, peças às quais o mesmo agregará sua modesta contribuição, no ato de ditar a sentença”. (“O Direito Administrativo no Sistema do ‘Common Law”, p. 16 e 21, publicado pelo Instituto de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1965).  

 

                                      Destarte, como os princípios e regras de matriz constitucional, por serem abstratos em grau máximo,  e por reclamarem uma maior liberdade hermenêutica, indispensável  à construção da vontade projetada a partir do comando normativo constitucional, com a qual o juiz brasileiro não está habituado, daí resulta que é comum realizar-se a análise de um caso jurídico iniciando-se diretamente pela legislação infraconstitucional e nela se circunscrevendo, com um injustificado desprezo pelo que dita o Texto Constitucional, o que um constitucionalismo pós-moderno não mais tolera.

                                      A demonstrar a importância do papel  hoje conferido ao juiz de co-produtor da norma jurídica, cujo sentido lhe é dado buscar nomeadamente a partir dos princípios constitucionais, passando depois para seu cotejo em face da legislação infraconstitucional.

                                      Mas, por vezes se olvida do verdadeiro sentido e alcance de um nuclear princípio amparado em nossa Constituição de 1988, como é o princípio do devido processo legal, em função do qual o juiz é autorizado a proteger, com eficiência, os direitos fundamentais e sua variegada expressão, como se deu, com pionerismo, na jurisprudência americana.

                                      E dentre os princípios que nossa Carta de 1988 consagra, sobressai, a como se fez referência, o do princípio do devido processo legal, no bojo do qual está outro importante princípio: o da proporcionalidade, também denominado de princípio da proibição do excesso, pelo qual o juiz pode controlar a atuação estatal, acoimando aquela que se revelar inadequada em face de determinado fim. Desse princípio nos fala o insuperável CANOTILHO, desimplicando seu objetivo a partir de alguns exemplos de aplicação prática:

 

“Através de standards jurisprudenciais como o da proporcionalidade, razoabilidade, proibição de excesso, é possível hoje recolocar a administração (e, de um modo geral, os poderes públicos) num plano menos sobranceiro e incontestado relativamente ao cidadão. Assim, quando se pedir a um juiz uma apreciação dos danos causados pela carga policial numa manifestação, o que se vista não é contestar a legitimidade da administração na defesa do interesse e ordem públicos mas sim o de averiguar da razoabilidade, proporcionalidade e necessidade da medida de polícia. Quando se solicita a um tribunal que aprecie a legitimidade da busca e apreensão de um jornal difusor de notícias desfavoráveis ao Governo, não se exige ao juiz que se arvore em ‘censor’ e ‘administrador negativo’ mas que, através da utilização de ‘standards’ de controlo, verifique se a administração se pauta por critérios de necessidade, proporcionalidade e razoabilidade. (…)”. (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 267, 4ª edição, editora Almedina).

 

                                      De modo que pelo princípio constitucional da proporcionalidade, adotado em nosso Texto Constitucional em vigor, ao juiz é dado o poder de verificar se a medida adotada pela  Administração Pública, embora não vedada expressamente pela Lei, revela-se apropriada à prossecução do fim, ou fins a ela subjacentes.

                                      Trata-se, em verdade, de aplicar-se ao Direito Público uma importante teoria nascida nos domínios do Direito Privado: a teoria civilista do ato abusivo, pela qual é possível controlar a validez da finalidade do ato praticado.  Embora com as peculiaridades próprias do Direito Público, essa é teoria que dá gênese ao princípio da proporcionalidade.

                                      Do que é autorizado concluir que do fato de a Lei não vedar expressamente uma determinada conduta da Administração Pública, não advém que ela necessariamente seja tida como válida. Há a necessidade de perscrutar-se da medida, ainda que praticada, supostamente, em nome do interesse público.

                                      Assim é que, à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, é possível verificar que o objetivo colimado pelo Fisco Municipal ao impedir a autorização especial sob color de que há multa de trânsito que recai sobre o veículo que autorizado a trafegar transportando produtos perigosos, tal objetivo é tão-só o de coagir a autora ao pagamento da multa de trânsito aplicada pela própria Prefeitura,  quando dispõe a ré de mecanismos que a Lei prevê para a satisfação de seu crédito. A caracterizar tal exigência como um típico mecanismo de coação indireta, que o nosso Ordenamento Jurídico veda.

                                      Consultado, pois, o princípio constitucional da proporcionalidade, não se pode tolerar que a ré utilize-se dessa inapropriada medida ao fim a que a destina, porque caracterizado um desvio de poder. Com efeito, a ré não pode lançar mão de uma medida de polícia administrativa, como é a de que se utilizou, por razões de outra ordem, no caso, vinculando-a a um ato administrativo condicionado, como é o da concessão de licença.

                                      POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido, declarando inválido, por caracterizar mecanismo ilegal de coação indireta,  o ato administrativo que condicionou a concessão da autorização especial para tráfego de produtos perigosos ao prévio pagamento de multa de trânsito aplicada pela Prefeitura de São Paulo, declarando-se, pois, a existência de relação jurídica que faz reconhecer à autora, (…), o direito subjetivo de obter essa autorização quanto ao veículo em questão, se os demais requisitos legais estiverem todos cumpridos. CONCEDO, outrossim, a tutela provisória de urgência antecipada, de modo que obrigo a ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, a conceder à autora, no prazo máximo de cinco dias, tal autorização, salvo se houver algum óbice, caso em que deverá informar ao Juízo qual seja. Declaro a a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil.

                                      Condeno a ré a reembolsar a autora do que ela despendeu com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária desde seu respectivo desembolso. Condeno-a também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, com correção monetária desde seu ajuizamento.

                                      Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença. Intimação com urgência em face da concessão da tutela provisória de evidência.

                                      Sentença que não é de ser submetida a reexame necessário, considerando a regra do artigo 496, parágrafo 3º., inciso II, do novo Código de Processo Civil.

                                      São Paulo, em 27 de julho de 2017.

                                      VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

                                               JUIZ DE DIREITO