LIBERDADE DE IMPRENSA E O JORNALISMO SENSACIONALISTA

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL POR SUPOSTO DANO MORAL. AUTOR QUE AFIRMA TER TIDO A SUA IMAGEM INDEVIDAMENTE EXIBIDA EM REPORTAGEM VEICULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO, EM CONTEXTO DE INJUSTA ASSOCIAÇÃO À PRÁTICA DE CRIME. SENTENÇA QUE JULGOU IMPROCEDENTE O PEDIDO. APELO DO AUTOR.
LIBERDADE DE IMPRENSA X PROTEÇÃO À IMAGEM E À DIGNIDADE, VALORES CONSTITUCIONALMENTE ERIGIDOS AO STATUS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. CONFLITO ENTRE DUAS POSIÇÕES JURÍDICAS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE E DE SUAS FORMAS DE CONTROLE.
CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES DO JORNALISMO EXERCIDO PELAS RÉS QUE DEVEM SER LEVADAS EM CONSIDERAÇÃO NA DEFINIÇÃO DOS LIMITES EM QUE O DIREITO À INFORMAÇÃO FOI EXERCIDO NO CASO EM CONCRETO. ESPÉCIE DE JORNALISMO QUE SE DEVE QUALIFICAR COMO “SENSACIONALISTA”, TAL COMO A CIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO SOCIAL O DENOMINA E O CARACTERIZA, EM QUE A LINGUAGEM EMPREGADA É PROPOSITALMENTE EXAGERADA COM O EVIDENTE OBJETIVO DE CAPTAR UMA MAIOR AUDIÊNCIA DOS TELESPECTADORES OU LEITORES, COM FOCO EM DETERMINADOS ASPECTOS DA NOTÍCIA. LINGUAGEM QUE, NESSE TIPO DE JORNALISMO, É EMOTIVA E NÃO TEM COMO FOCO O INFORMAR, O REFLETIR, SENÃO QUE EXCLUSIVAMENTE O AUMENTO DE LUCRO POR MEIO DE UMA MAIOR AUDIÊNCIA.
NECESSIDADE DE QUE SE FIXEM LIMITES À LIBERDADE DE IMPRENSA, QUE, NO CASO DO JORNALISMO SENSACIONALISTA, COMO O EXERCIDO NO PROGRAMA DE TELEVISÃO EM QUESTÃO, NÃO ATENDE AO INTERESSE PÚBLICO, O QUE SIGNIFICA DIZER QUE TANTO A EMPRESA DE COMUNICAÇÃO, QUANTO O JORNALISTA ASSUMEM OS RISCOS QUANDO A REPORTAGEM VEICULADA AFETA A IMAGEM E A DIGNIDADE DAS PESSOAS, COMO NO CASO EM QUESTÃO. RISCOS QUE SÃO IMANENTES A ESSE TIPO DE JORNALISMO E QUE DEVEM SER ASSUMIDOS POR QUEM O EXERCE.
AUTOR CUJA IMAGEM FOI INDEVIDAMENTE À PRÁTICA DE CRIME, EM REPORTAGEM COM VIÉS QUE O COLOCOU EM SITUAÇÃO EVIDENTEMENTE CONSTRANGEDORA, SOBRETUDO EM FACE DOS COMENTÁRIOS QUE O CORRÉU FIZERA, UTILIZANDO-SE DE LINGUAGEM QUE É PRÓPRIA DO JORNALISMO SENSACIONALISTA.
DIREITO À LIBERDADE DE IMPRENSA QUE, NO CASO EM CONCRETO, NÃO FOI EXERCIDO DENTRO DE JUSTOS LIMITES. PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICA DO AUTOR, CUJA PROTEÇÃO À IMAGEM DIGNIDADE FOI SENSIVELMENTE AFETADA PELO CONTEÚDO DA REPORTAGEM.
DANO MORAL CONFIGURADO. ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO QUE CONFIRMARAM NÃO TER O AUTOR PRATICADO QUALQUER CRIME NO CONTEXTO A QUE A REPORTAGEM SE REFERE.
DANO MORAL QUE DEVE SER QUANTIFICADO SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE, E ASSIM FIXADOS EM R$20.000,00 (VINTE MIL REAIS). CONDENAÇÃO DOS RÉUS EM REGIME DE SOLIDARIEDADE PASSIVA.
SENTENÇA REFORMADA. RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELO AUTOR PROVIDO. INVERSÃO DOS ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA, SEM A MAJORAÇÃO DOS HONORÁRIOS DE ADVOGADO.

RELATÓRIO
Cuida-se de recurso de apelação interposto pelo autor contra r. sentença que, em ação de reparação civil por supostos danos morais, julgou improcedente o pedido, argumentando o autor que o juízo de origem não bem valorou ou não considerou os fatos que comprovam a prática de ato ilícito pelos réus, quando veicularam reportagem associando a imagem do autor à prática de crime, pugnando, pois, pela reforma da r. sentença e acolhimento a seu pedido de condenação.
Recurso tempestivo, sem preparo em razão de o autor beneficiar-se da gratuidade. Resposta no prazo legal

FUNDAMENTAÇÃO
É de rigor o provimento a este recurso de apelação.
Caracteriza-se um conflito entre posições jurídicas: de um lado a do autor, cuja proteção à imagem e dignidade está garantida em norma constitucional; doutro a dos réus, cuja proteção à liberdade de imprensa também é garantida em nível constitucional. A Constituição de 1988 erigiu tais direitos (os da proteção imagem, dignidade e liberdade de imprensa) a direitos fundamentais, na base dos quais está a liberdade em suas variadas formas de expressão.
E como observa o filósofo ISAIAH BERLIN, a liberdade está a colidir o tempo todo com outros direitos, surgindo a colisão entre direitos e a necessidade de que o conflito seja solucionado no campo do Direito. Surgiu nesse contexto o princípio da proporcionalidade.
Deve-se ter presente que os direitos fundamentais formam a parte essencial de uma constituição de qualquer país realmente democrático, e em geral as normas jurídicas que os preveem apresentam um grau de abstração superior àquele encontrado nas demais normas jurídicas, o que determina que as normas dos direitos fundamentais sejam frequentemente abertas a várias interpretações.
Essa forma característica das normas dos direitos fundamentais conduziu importante parte da doutrina a afirmar que o princípio da proporcionalidade nada mais é do que uma regra de interpretação. Mas além de ser necessário considerar que diversas normas jurídicas trazem consigo um acentuado grau de abstração, seja porque o objeto de sua regulação isso impõe, seja por alguma outra razão que o legislador tenha levado em conta, não sendo o grau de abstração, portanto, um atributo exclusivo das normas de direito fundamental, também é mister constatar que o que justifica seja o enunciado das normas de direito fundamental expresso preferentemente sob a forma de “princípios” decorre de ser essa a forma que melhor confere proteção jurídica à liberdade do indivíduo em face do Estado, por conceder ao juiz poderes hermenenêuticos mais amplos.
Impõe-se observar, pois, que o princípio da proporcionalidade não surgiu devido ao grau de abstração das normas dos direitos fundamentais, mas sim como um instrumento elaborado pelo Direito diante de uma necessidade de ordem prática que lhe foi imposta pelos problemas que são decorrentes dos inevitáveis conflitos entre a liberdade individual e o poder do Estado. Sim, se dois valores jurídico-legais podem ser aceitos igualmente (o que, aliás, é comum suceder, porque é da essência dos valores a colisão), é necessário definir um critério racional de escolha entre os interesses que estão presentes em um conflito que envolve a liberdade do indivíduo e a autoridade estatal.
Os conflitos que envolvem os limites de aplicação prática dos direitos fundamentais, e que formam o material sobre o qual se aplica o princípio da proporcionalidade, surgem, portanto, nesse específico contexto, e é importante observar que são conflitos que não decorrem diretamente do sentido jurídico que se deva emprestar ao conteúdo dos direitos em colisão, mas da forma de aplicação de cada um desses direitos em face de circunstâncias extraídas de uma situação concreta, de modo que essas circunstâncias, extraídas da realidade material subjacente, analisadas pelo juiz quando esteja a aplicar o princípio da proporcionalidade, é que determinarão uma possível harmonização entre os interesses em conflito, ou que justificarão o sacrifício de uma posição jurídica em face de outra.
Donde se deve afirmar que o princípio da proporcionalidade não é uma regra ou critério de interpretação, nem seu campo de atuação é o procedimento hermenêutico.
Na essência do princípio da proporcionalidade, formando-lhe seu conteúdo principal, está uma necessidade de ordem de prática, que é a de encontrar-se um instrumento jurídico de resolução desse tipo de conflito mediante soluções racionais, extraídas das possibilidades criadas pela realidade subjacente, a legitimar a conclusão de que a fonte desse princípio jurídico está nos estudos da Filosofia acerca da liberdade e de sua harmonização com os demais valores, o que obrigatoriamente nos remete às ideias de ISAIAH BERLIN, que, analisando a liberdade individual e sua relação com o poder estatal, descortinou que os valores (em especial, os da igualdade e liberdade) estão sempre a colidir, e que a solução desse conflito depende necessariamente de um “compromisso prático”.
No caso em concreto, há que se estabelecer um limite razoável entre a prática do jornalismo em sua verdadeira essência – que é a de informar, refletir e de fazer a opinião pensar – e aquilo que a Ciência da Comunicação denomina de “jornalismo sensacionalista”, que se caracteriza pelo emprego de uma linguagem emotiva, um intencional recorte da realidade, com a abordagem da matéria sob um viés que tem apenas uma intenção, que é a de captar a maior audiência possível, ou seja, um jornalismo que não tem por finalidade informar ou fazer refletir, mas explorar a imagem como signo até que o objetivo comercial do lucro, gerado por uma maior audiência, seja obtido. Como observa o professor EUGÊNIO BUCCI, conhecido professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo:
“Um programa que seja uma concessão ao policialesco e ao entretenimento mórbido se afasta do que a imprensa deve constituir na sociedade (…). Vira um circo que não tem nada a ver com informação, reflexão crítica ou respeito aos direitos das pessoas”.
O jornalismo que os réus exercem no programa em questão amolda-se, sem dúvida, ao que a Ciência denomina de “jornalismo sensacionalista”. E quando se exerce esse tipo de jornalismo, há riscos que a empresa jornalística e o jornalista devem assumir, porque é algo comum que se explore a imagem das pessoas, tratada sob um viés que é imanente a esse tipo de jornalismo, em que a busca por um faturamento maior, alcançado por uma maior audiência, faz surgir o risco de que a imagem e a dignidade das pessoas possam ter sido injustamente afetadas, como aconteceu no caso em questão.
Com efeito, o autor, no dia 27 de março de 2019, estava no interior de uma loja de peças para automóveis e ali foi surpreendido por policiais que estavam acompanhados de uma equipe de reportagem da ré. O autor foi algemado pelos policiais e a imagem foi veiculada no programa de televisão apresentado pelo corréu, que, como é próprio do jornalismo sensacionalista, tratou de fazer comentários, com uma linguagem que buscava despertar a atenção do público, ao dizer que o “cara” (ou seja, o autor), preso como receptador, logo estaria solto, explorando o corréu um tema que é sensível à sociedade brasileira, que é o da impunidade.
Sucede, contudo, que feitas as investigações policiais, constatou-se que o autor estava na loja apenas para comprar um produto, como qualquer cliente normal. Ou seja, não havia o autor praticado nenhum crime. Sua imagem, contudo, fora associada à prática de crime, e exibida no programa de televisão apresentado pelo corréu, programa, aliás, cuja linguagem sensacionalista tem consideráveis índices de audiência, da ordem de 4,7 pontos de média, o que o coloca, em determinados horários, como o mais visto no Brasil. Daí a dimensão dos prejuízos suportados pelo autor, aspecto que será valorado no momento em que se estiver a quantificar o dano por ele suportado.
Dano moral que decorre de, em se aplicando aqui o princípio da proporcionalidade e a ponderação como forma de controle, caracteriza-se, visto que se deve considerar que os réus, exercitando um jornalismo evidentemente sensacionalista, submete-se a riscos, que os réus devem suportar quando, como no caso presente, causam sensível prejuízo à esfera jurídica das pessoas, como produziu ao autor, cuja imagem foi indevidamente associada à prática de crime, que ele não havia praticado.
Conclui-se, portanto, que os réus sobre-excederam os justos limites do que se deve considerar o exercício de um jornalismo sério, e assim se deve considerar prevalecente a posição jurídica do autor no contexto do conflito de seus direitos fundamentais em face daquele direito que os réus invocam.
Dano moral que deve ser quantificado por meio da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que permite encontrar, com critérios algo objetivos, um valor que recomponha o prejuízo da dor suportada pelo autor nas específicas circunstâncias do caso em questão. Lembremos que o princípio da razoabilidade opera diretamente com as essas circunstâncias, enquanto da proporcionalidade tem a finalidade de gerar a convicção de que o réu, condenado por dano moral, deve precatar-se, não praticando a conduta que ensejou a caracterização desse tipo de dano.
Pois bem, deve-se levar em conta o grau de exposição a que a imagem do autor foi exposta, tratando-se como dito de um programa de televisão com uma grande audiência, exibido em todo o território nacional. O autor, importante frisar, teve a sua imagem associada à prática de crime. Assim, fixa-se a reparação por dano moral em R$20.000,00 (vinte mil reais), azado valor em face dessas específicas circunstâncias, e que fará gerar nos réus o refletir sobre os riscos a que o jornalismo que praticam está submetido e como devem lenificar esses riscos, fazendo proteger a imagens das pessoas exibidas em seu programa de televisão. Aplica-se o regime de solidariedade passiva na condenação aqui imposta aos réus.
Correção monetária a partir do evento, calculada com base nos índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo. Juros de mora, de um por cento ao mês, que incidem desde a citação.
Por meu voto, dá-se provimento ao recurso de apelação interposto pelo autor, reformando a r. sentença para condenar os réus na reparação por dano moral, nos termos que estruturam este voto. Adota-se o regime da solidariedade passiva.
Condenam-se os réus no pagamento da taxa judiciária, despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso, e honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, devidamente corrigido. Não se majoram os honorários de advogado.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR