JUÍZO DE RETRATAÇÃO. ARTIGO 1.030, INCISO II, DO CPC/2015. TÉCNICA DO JUÍZO DE RETRATAÇÃO APLICADA EM RAZÃO DE DIVERGÊNCIA DE ACÓRDÃO COM TESE JURÍDICA FIXADA EM REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL. CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE FIRMADO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI FEDERAL 9.656/1998. TESE JURÍDICA QUE RESSALVA A PREVALÊNCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM COLISÃO. DIREITO À SAÚDE PREVALECENTE. JUÍZO DE RETRATAÇÃO REALIZADO, MAS SEM MODIFICAÇÃO DO JULGADO.

REEXAME EM RECURSO DE APELAÇÃO. MATÉRIA DECIDIDA EM REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL. ARTIGO 1.030, INCISO II, DO CPC/2015.
CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE FIRMADO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI FEDERAL 9.656/1998 E NÃO ADAPTADO AO REGIME JURÍDICO INSTITUÍDO POR ESSA LEI FEDERAL. FIXAÇÃO DO REGIME JURÍDICO A APLICAR-SE NOMEADAMENTE QUANTO AO CONTEÚDO DE CLÁUSULA CONTRATUAL QUE PREVÊ A COBERTURA A TRATAMENTOS MÉDICOS.
TESE JURÍDICA FIXADA PELO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL NO SENTIDO DE QUE AS DISPOSIÇÕES DA LEI FEDERAL 9.656/1998 SOMENTE INCIDEM SOBRE OS CONTRATOS CELEBRADOS A PARTIR DE SUA VIGÊNCIA, NÃO PROJETANDO EFEITOS SOBRE CONTRATOS ANTERIORES À ESSA LEI FEDERAL, SE A SEU REGIME JURÍDICO NÃO TIVEREM SIDO ADAPTADOS.
V. ACÓRDÃO SOB REEXAME QUE, EM TENDO APLICADO À RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL OBJETO DA LIDE, A LEI 9.656/1998, MALGRADO SE TRATASSE DE UM CONTRATO ANTERIOR À ESSSA LEI E NÃO ADAPTADO A ELA, DIVERGE DO ENTENDIMENTO CONSUBSTANCIADO NA REFERIDA TESE JURÍDICA, ENSEJANDO SE APLIQUE A TÉCNICA DO “JUÍZO DE RETRATAÇÃO”, SEGUNDO O QUE ESTATUI O ARTIGO 1.030, INCISO II, DO CPC/2015.
JUÍZO DE RETRATAÇÃO, CONTUDO, QUE NÃO PROVOCA NO CASO EM CONCRETO MODIFICAÇÃO QUANTO AO RESULTADO DO JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO, QUE É ASSIM MANTIDO.
MALGRADO SE DEVA AFASTAR A APLICAÇÃO À RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL OBJETO DA LIDE DO REGIME JURÍDICO ESTABELECIDO PELA FEDERAL 9.656/1998, POR SE TRATAR DE UM CONTRATO ANTERIOR A ELA, HÁ QUE SE CONSIDERAR A ESPECIAL NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE, QUE SE DISTINGUE EM FACE DE SEU OBJETO – A PROTEÇÃO À SAÚDE, DIREITO FUNDAMENTAL CUJA PROTEÇÃO FOI RESSALVADA PELO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AO FIRMAR A TESE JURÍDICA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 196 DA /1988 COMO MATERIAL HERMENÊUTICO. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE QUE, NO CASO EM QUESTÃO, É DE SER CONSIDERADO COMO PREVALECENTE, CONSIDERADAS A GRAVIDADE DA DOENÇA E A SITUAÇÃO DE URGÊNCIA, CIRCUNSTÂNCIAS OBJETO DE PONDERAÇÃO.
RESSALVA NO CONTEÚDO DO V. ACÓRDÃO FIXADO EM REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL QUANTO A SE DEVER CONSIDERAR A PROTEÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS – COMO O DIREITO À SAÚDE, O QUE CONDUZ A QUE, CONQUANTO SE UTILIZE AQUI DO “JÚIZO DE RETRATAÇÃO”, MANTENHA-SE O V. ACÓRDÃO SOB REEXAME.
RELATÓRIO
Trata-se de levar a cabo o juízo de retração em face de v. Acórdão proferido por esta Colenda Câmara, tal como exige o artigo 1.030, inciso II, do CPC/2015, diante da divergência de regime jurídico-legal que foi aplicado no caso em concreto e aquele fixado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal em regime de repercussão geral no recurso extraordinário de número 948634/RS, cuja tese jurídica está assim explicitada:
“(…) As disposições da Lei 9.656/1998, à luz do art. 5, XXXVI, da Constituição Federal, somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como nos contratos que firmados, anteriormente, foram adaptados ao seu regime, sendo as respectivas disposições inaplicáveis aos beneficiários que, exercendo sua autonomia de vontade, optaram por manter os planos antigos inalterados”.
O v. Acórdão proferido por esta colenda Câmara, com efeito, fez considerar e aplicar à relação jurídico-material objeto da lide e do recurso a lei federal 9.656/1998, malgrado se tratasse de um contrato de plano de saúde firmado anteriormente à essa lei federal e não adaptado a ela, temática jurídica que formava parte nuclear da argumentação da apelante, (…), caracterizando-se, pois, a divergência quanto ao regime jurídico-legal a aplicar-se, havendo, portanto, de realizar-se o juízo de retratação nos termos do que exige o artigo 1.030, inciso II, do CPC/2015.

FUNDAMENTAÇÃO
Constata-se a divergência entre o v. Acórdão proferido neste processo e o v. Acórdão paradigma firmado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal em regime de repercussão geral, relativamente ao regime jurídico-legal a aplicar-se ao contrato em questão, que é anterior à Lei federal 9.656/1998 e a essa lei não adaptado.
Importante observar que o juízo de retratação constitui uma azada técnica introduzida pelo CPC/2015 e que é decorrente da regra do artigo 926 desse mesmo Código, que enfatiza devam os Tribunais, tanto quanto possível, manter a sua jurisprudência estável, íntegra e coerente. Na aplicação dessa técnica, que tem lugar quando há efetiva divergência entre o acórdão e tese jurídica fixada no regime da repercussão geral, pode suceder no campo lógico-jurídico de, conquanto exista a divergência, o acórdão deva ser mantido, como neste caso.
Caracterizada a efetiva divergência, pois que o egrégio Supremo Tribunal Federal estabeleceu com a nota de repercussão geral o seguinte:
“Os contratos de planos de saúde firmados antes do advento da lei 9.656/1998 constituem atos jurídicos perfeitos, e, como regra geral, estão blindados contra mudanças supervenientes, ressalvada a proteção de outros direitos fundamentais ou de indivíduos em situação de vulnerabilidade”.
Destarte, como o v. Acórdão aqui sob reexame fez aplicar, como razão de decidir, a lei federal 9.656/1998 a um contrato anterior a essa lei, e ela não adaptado, daí se tem como configurada a divergência, ensejando a aplicação da técnica do “juízo de retratação”.
Deve-se afastar, portanto, a aplicação da lei federal 9.656/1998, o que, contudo, não conduz à modificação do julgado. Senão vejamos.
Há um sobranceiro aspecto a considerar: a existência no caso em questão de um conflito entre dois direitos subjetivos de matriz constitucional: de um lado, a apelante, que está legitimamente a invocar a proteção constitucional quanto a um ato jurídico perfeito – o contrato que celebrou com a apelada –, firmado antes da entrada em vigor da Lei federal 9.656/1998; doutro lado há igualmente o direito subjetivo, também de matriz constitucional, que é reconhecido em favor da autora-apelada, que é o direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição de 1988, que, como se cuidará demonstrar, é de ser aplicado como importante material hermenêutico às relações jurídicas de natureza privada.
E como há um conflito entre direitos subjetivos, ambos de matriz constitucional, impõe-se a utilização do princípio constitucional da proporcionalidade, apurando-se, nas circunstâncias do caso em concreto, qual o direito subjetivo deva prevalecer, dado que é impossível harmonizá-los.
A causa, com efeito, diz respeito a um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico.
Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
De modo que é juridicamente possível aplicar à relação jurídico-material que forma o objeto desta ação, como imperativo de interpretação, um importante direito fundamental reconhecido em nossa Constituição, que é o direito fundamental à saúde, cujo conteúdo determina se garanta ao paciente o melhor tratamento médico disponível, tudo de molde que não se possa colocar a esfera jurídica da paciente em uma situação de injustificada proteção, ou aquém de uma proteção minimamente razoável.
Deve-se ter presente uma particularidade do caso em questão, em que a apelante, defendendo a aplicação do regime jurídico-legal próprio ao contrato firmado com a autora-apelada, e a não aplicação a esse contrato da lei federal 9.656/1998, que expressamente excluiu da cobertura contratual “próteses, aparelhos ortopédicos, membros artificiais, marca-passo, aparelhos visuais e auditivos”, conforme consta da cláusula 8.15, observando-se que a apelante argumenta que o aparelho “stent” é de ser caracterizado pela literatura médica como uma prótese, e por isso estaria excluído da cobertura contratual.
Enfatize-se que, a despeito de o egrégio Supremo Tribunal Federal ter estabelecido no v. Acórdão paradigma que não se pode aplicar a lei federal 9.656/1998 a contratos que são anteriores a ela, e não adaptados ao novo regime jurídico que essa lei federal criou, não se pode olvidar da proteção a direitos fundamentais, o que significa dizer que se devem ponderar as circunstâncias do caso em concreto, quando a compasso com o existir a proteção ao ato jurídico perfeito (o contrato foi firmado antes da lei 9.656/1998), também existe e merece proteção o direito fundamental à saúde.
E a proteção ao direito fundamental à saúde conduz-nos a considerar que a autora-apelada estava a vivenciar uma situação de emergência médica, pois que, acometida de uma grave patologia cardiológica, fora internada em UTI coronariana, na aguarda de que fosse submetida a uma angioplastia, com a implantação em seu corpo de um “stent”, que, segundo a literatura médica, é de ser caracterizado como uma prótese, tal como argumenta a ré-apelante, mas o que não constitui razão para que se deixasse sob injustificada proteção, aquém de um mínimo razoável, a esfera de saúde e jurídica da autora-apelada, aspecto que é de fundamental importância quando, em se aplicando o princípio constitucional da proporcionalidade, ponderam-se sobre os riscos a que estão submetidos as partes na lide.
Deve-se perscrutar, portanto, se, nas circunstâncias do caso em concreto, a esfera jurídica da autora não ficaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse o conteúdo literal da cláusula que exclui da cobertura contratual a implantação de uma prótese. Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.
De relevo observar que, com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a interpretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso em que a prevalecer o sentido literal da cláusula em questão, a autora-apelada não poderia contar com o tratamento médico que era de natureza urgente e indispensável à manutenção de sua vida, de maneira que, em se ponderando os direitos subjetivos em conflito, analisadas as circunstâncias impostas pela realidade subjacente, conclui-se que deve prevalecer a posição jurídica da autora-apelada, tal como decidido no v. Acórdão proferido por esta colenda Câmara, não sendo de molde que possa suprimir a prevalência do direito subjetivo da autora-apelada o fato de ao contrato não se poder aplicar a lei federal 9.656/1998, pois, como ressalvou o egrégio Supremo Tribunal Federal, conquanto se deva reconhecer a validez do ato jurídico perfeito e de sua proteção em nível constitucional, não se pode olvidar da proteção que é de ser dada a “outros direitos fundamentais”, como é o direito fundamental à saúde, que possui matriz constitucional.
Por meu voto, aplicada aqui a técnica do “juízo de retratação”, prevista no artigo 1.030, inciso II, do CPC/2015, conquanto se deva afastar a aplicação da lei federal 9.656/1998 à relação jurídico-material objeto da lide, conforme a tese jurídica fixada em regime de repercussão geral, mantém-se o resultado do julgamento do recurso de apelação levado a cabo por esta Colenda Câmara, em que se negou provimento ao recurso de apelação interposto pela ré, retornando os autos à egrégia Presidência da Seção de Direito Privado para o processamento do recurso extraordinário.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR