ITBI. BASE DE CÁLCULO. TESE JURÍDICA FIXADA EM INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS E SUJEITA A CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Processo número 1030236-03.2020

3ª. Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública

Comarca da Capital

Vistos.

 

Sustenta o autor deva prevalecer, como base de cálculo do ITBI – Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, o valor pelo qual adquiriu o imóvel descrito na peça inicial, a dizer, o valor que consta da escritura de compra e venda, que é próximo daquele que consta da base de dados do IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbano. Invocou a aplicação de tese jurídica fixada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo em incidente de resolução de demandas repetitivas (tema 19). 

Citada, a ré contestou para, invocando a aplicação do artigo 38 do Código Tributário nacional, sustenta deva prevalecer o valor real de mercado do imóvel adquirido, à base de cálculo do ITBI, e que para esse fim se fez adotar, em Lei, um apuração do valor venal dos imóveis localizados nesta Capital, específica à base de cálculo do ITBI, não se confundindo, pois, com a base de cálculo de outro imposto (IPTU). Argumentou, por fim, que o Código Tributário nacional autoriza ao Fisco arbitre o valor do imóvel para fim de incidência do imposto de transmissão, e que na hipótese de o contribuinte discordar desse valor, faça requerer uma avaliação especial. 

Nesse contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.  

Invocou o autor a aplicação de tese jurídica fixada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo em incidente de resolução de demandas repetitivas. Trata-se do tema de número 19, que tem o seguinte conteúdo: “Fixaram a tese jurídica da base de cálculo do ITBI, devendo ser calculado sobre o valor do negócio jurídico realizado e, se adquirido em hastas públicas, sobre o valor da arrematação ou sobre o valor venal do imóvel para fins de IPTU, aquele que for maior, afastando o valor de referência”.

Em nosso ordenamento jurídico em vigor, todo imposto possui a sua hipótese de incidência e sua base de cálculo fixadas em norma constitucional, o que significa dizer que, discutindo a demanda sobre um desses temas – hipótese de incidência ou base de cálculo – a matéria será necessariamente constitucional. 

Assim, quando se trata de tese jurídica que, em incidente de resolução de demandas repetitivas, tenha tratado sobre a base de cálculo de um imposto, como sucede com a tese jurídica em questão,  é imperioso realizar-se um controle difuso de sua constitucionalidade, pois que a tese jurídica, diante de seus efeitos normativos, pode e deve ser objeto desse controle difuso de constitucionalidade, como enfatizou RUI BARBOSA, pode ser realizado  por qualquer juiz ou tribunal: “Não esqueçamos que a Constituição brasileira firma claramente esse direito. Mas, quando o não fizesse, ele não seria menos inelutável. ‘Nem as constituições locais, nem a dos Estados Unidos, contêm artigo, que prescreva à autoridade judiciária não aplicar as leis inconstitucionais. Nenhum texto explícito e formal a investe nessa prerrogativa, tão importante; o juiz a possui implicitamente, como parte integrante de suas atribuições”. (Obras completas de Rui Barbosa, vol. XX, 1893, tomo V, Trabalhos  Jurídicos). 

É esse poder, pois, de que me valho nesta Sentença, em que analiso, em controle difuso de constitucionalidade, a tese jurídica fixada pelo egrégio Tribunal de Justiça deste Estado, enfatizando que a tese jurídica sobre-excede a um decisão jurisdicional, na medida em que possui inerente e natural efeito normativo e que vincula, o que significa dizer que se equipara a uma lei, e como tal, sujeita ao controle de sua constitucionalidade.  

Exercendo o controle difuso de constitucionalidade que a Constituição da República de 1988 outorga a todos os juízes, e como ao julgamento do mérito desta demanda é indispensável analisar-se o conteúdo da tese jurídica em questão, declaro, incidentalmente, a sua inconstitucionalidade, para não a aplicar neste caso.

Como observa BARBOSA MOREIRA: 

O controle tem cabimento seja qual for o processo de que esteja a se ocupar o órgão judicial. Pode tratar-se de um pleito pendente em primeiro grau de jurisdição, de um recurso, de um assunto compreendido na competência originária de um órgão superior. O essencial é que a resolução sobre o pleito dependa logicamente da questão de constitucionalidade. Se o órgão judicial tem a possibilidade de julgar sem enfrentar a questão, deve abster-se de manifestar seu convencimento a respeito”.

Como se cuida-se de um tema novo em nosso sistema processual civil, em que as relações com o direito constitucional surgem agora sob um aspecto que não se limita mais ao controle de constitucionalidade apenas das leis em geral, devendo abranger as teses jurídicas fixadas em incidente de resolução de demandas repetitivas, porque dotadas de uma força normativa equiparada a de uma lei, entendo necessário justificar as razões pelas quais entendo que, em face do conteúdo de tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, pode o juiz exercer o controle incidental de constitucionalidade – para justificar, pois, o porquê o estou a aplicar neste processo.

O incidente de resolução de demandas repetitivas, com ser a forma encontrada pelo Código de Processo Civil de 2015 para que o valor da segurança jurídica seja implementado em larga escala, traz consigo um problema que afeta essa mesma segurança jurídica,  porque ao permitir que todo tribunal local, estadual ou federal, fixe teses jurídicas sobre temas os mais diversos, dá ensejo a que com certa frequência surja a possibilidade de que o conteúdo de algumas dessas teses revele-se inconstitucional.

Ao dotar de eficácia obrigatória a tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, o Código de Processo Civil de 2015 criou uma nova fonte de direito: a da “decisão judicial com força de ato normativo”,  o que em  nosso ordenamento jurídico existia apenas em caráter excepcional  na sentença em controle concentrado de constitucionalidade e na súmula vinculante. 

Agora, qualquer tribunal local, estadual ou federal, dispõe do poder de dotar de caráter normativo uma decisão que venha a proferir em incidente de resolução de demandas repetitivas, e o que é deveras preocupante, sem que o Código de Processo Civil tenha estatuído  aspectos de um controle mínimo que certamente deveriam envolver o procedimento de criação da tese jurídica, tendo optado por delegar ao poder discricionário de cada tribunal local a definição do órgão a que caberá o julgamento desse tipo de incidente, sequer fixando um quórum mínimo de votação, o que evidentemente seria de se impor, sobretudo em razão dos momentosos efeitos que decorrem de uma decisão judicial que é dotada de caráter normativo. 

A propósito da segurança jurídica, não há dúvida de que, em um estado democrático de direito, uma decisão judicial, qualquer que seja, deve valer apenas para o caso em concreto; o dar-lhe a lei uma extensão maior que essa é violar, além de uma justa medida, a liberdade que se deve garantir ao juiz na interpretação e aplicação das normas legais. Assim, apenas em situações cuja excepcionalidade justifique, e que tenham previsão expressa no texto constitucional, é que se poderá admitir e tolerar que uma decisão judicial possua caráter normativo. Essa excepcionalidade – que deve ser a regra –,  é que garante um justo equilíbrio em relação à liberdade  do juiz.  

Cabe ressaltar que aqui entendo necessário analisar com maior profundidade a questão da constitucionalidade dessa nova fonte do direito, mas apenas registro que, a princípio, não me parece que a Constituição de 1988 legitime essa criação, observando, na esteira de CANOTILHO, que nenhuma fonte pode atribuir a outra um valor de que ela própria não dispõe, o que estaria a suceder com o Código de Processo Civil de 2015, que ao dotar de carga obrigatória uma decisão judicial não emanada de um tribunal superior, teria feito equiparar a tese jurídica a institutos que possuem previsão expressa e exclusiva na  Constituição, como se dá com a sentença proferida em controle abstrato de constitucionalidade e com a súmula vinculante.  

Conforme a tradição de nosso Direito, reconhece-se ao juiz o poder de declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma legal com a qual esteja a lidar no julgamento de um caso em concreto, desde que a resolução da demanda dependa direta e logicamente da análise da constitucionalidade da norma legal.

 

O nosso ordenamento jurídico em vigor contempla, portanto, o princípio da supremacia das normas constitucionais, em cujo conteúdo está a garantia de que cabe ao Poder Judiciário a guarda da constituição, e do que daí se deduz quando se adota um  sistema misto de controle de constitucionalidade (abstrato e difuso), ou seja, que qualquer juiz, exercendo jurisdição, conta com liberdade para declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, quando indispensável ao julgamento do caso em concreto.  O mestre CANOTILHO, em notável texto,  nos diz que:

Associado ao controlo jurisdicional difuso e incidental, o controlo concreto é também chamado ‘acção judicial’ (Ritchterklage). Trata-se aqui de dar operatividade prática à ideia da judicial review americana: qualquer tribunal que tem de decidir um caso concreto está obrigado, em virtude da sua vinculação pela constituição, a fiscalizar se as normas jurídicas aplicáveis ao caso são ou não válidas”.

 

Esse poder, que é conferido a qualquer juiz no exercício de sua atividade jurisdicional,  radica, em essência, na liberdade que se lhe deve garantir quanto ao exercício  das atividades de interpretação e aplicação das normas legais, nomeadamente  em seu confronto com as normas constitucionais, cuja guarda lhe está confiada. 

E se esse poder restringia-se, em nosso ordenamento jurídico em vigor,  apenas às leis e a atos normativos em geral,  agora deve estender-se à tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, porque tal decisão judicial é dotada de caráter normativo,  segundo o que estatui o Código de Processo Civil de 2015, e sujeita assim ao controle incidental de constitucionalidade, tal como sucede com qualquer lei ou ato normativo em geral. 

Quando um sistema legal institui as decisões judiciais com caráter normativo, como sucedeu com o Código de Processo Civil de 2015, dotando as decisões emanadas de tribunais locais, a dizer, tribunais que, em nosso sistema de justiça, não são tribunais de “superposição”, os juízes, a justo título,  podem-devem reivindicar e exercer o direito de declararem a inconstitucionalidade incidental dessas decisões, visto que estão aí a atuar na guarda das normas constitucionais. 

Poder-se-ia objetar que esse poder estaria vedado pela preclusão (hierárquica). Veremos a seguir que isso não ocorre.

Obrigando a todos juízes e tribunais a cumprirem o que é decidido pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, ou quando se está diante de uma súmula vinculante, dir-se-ia que nessas hipóteses a decisão judicial é tão normativa quanto a que fixa tese jurídica em incidente de resolução de demandas repetitivas, de modo que se o juiz não pode exercer o controle difuso de constitucionalidade naqueles casos, também não o poderia em face da tese jurídica. Há, contudo,  que se considerar o que diferencia essas hipóteses: a preclusão. 

Na doutrina, é frequente encontrar-se a preclusão definida como a perda de uma situação jurídica ativa no processo, no sentido de que a parte (autor, réu, interveniente) deixa de praticar um ato, quando o poderia ter praticado em determinado tempo (preclusão temporal), quando pratica um ato que é incompatível com outro que quisesse praticar (preclusão lógica), ou ainda quando, praticando um ato, esgota-o a ponto de não poder praticar outro ato que teria idêntica finalidade (preclusão consumativa). LIEBMAN torna claro o que é da essência da preclusão: 

O andamento ordenado e coerente do processo é obtido não só através dos prazos, mas também das preclusões. Por preclusão entende-se a perda ou extinção do direito de realizar um ato processual em virtude: (…) do decurso do prazo; (…) da falta do exercício do direito no momento oportuno, quando a ordem legalmente estabelecida para a sucessão das atividades processuais importar em uma consequência assim grave; (…) da incompatibilidade com uma atividade já realizada; (…) do fato de já se ter exercido o direito uma vez”. 

A princípio, a doutrina entendia que a preclusão operava efeitos apenas contra as partes, e não quanto ao juiz. Mas CHIOVENDA, com a segurança que lhe era habitual e com um estilo que outro grande processualista, COUTURE, afirmava ser o mais correto na ciência do Direito Processual Civil,  demonstrou que  a preclusão,  em determinados casos e conforme os limites estabelecidos no ordenamento jurídico, pode incidir sobre o juiz, obstando-lhe a decisão em algumas circunstâncias. 

Enfatizando que a essência da preclusão está nos limites que a lei estabelece para a prática de um ato no processo e que além desses limites ocorre uma perda da faculdade de agir,  CHIOVENDA identificou situações nas quais a atividade decisória do juiz não pode ser exercida porque a lei impõe limites a essa atividade, como ocorre, por exemplo, quando obsta o juiz de decidir novamente questões já decididas em relação a uma mesma lide, ou quando a parte não tiver se utilizado do momento útil para provocar o exame da matéria. A preclusão ocorre ainda quando a lei processual estabelece que, proferida a sentença, a atividade decisória do juiz alcança um limite que não pode ser ultrapassado.

Destarte, se falamos em limites impostos pela lei à pratica de um ato decisório do juiz no processo, devemos obviamente considerar que cada ordenamento jurídico pode fixar e demarcar quais são os limites a serem observados nas diversas situações jurídicas que ocorrem no processo. Esse é o aspecto fundamental para compreender a razão pela qual, em nosso ordenamento jurídico em vigor,  estabelece-se uma necessária  distinção entre as hipóteses em que o juiz está diante de uma sentença proferida em controle abstrato de constitucionalidade, ou de uma súmula vinculante, havendo aí  uma preclusão decorrente de um limite fixado pela Constituição de 1988. É o que DINAMARCO denomina de “preclusão hierárquica”:

As decisões dos tribunais de superposição operam em face dos juízes e tribunais locais um fenômeno que se qualifica como preclusão, consistente em impedi-los de voltar a decidir sobre o que já haja sido superiormente decidido. Ainda quando se trate de matéria ordinariamente insuscetível de precluir, cabendo ao juiz o poder-dever de voltar a ela sempre que haja pertinência e mesmo que já se tenha pronunciado a respeito (incompetência absoluta, condições da ação …), essa liberdade atuação deixa de existir se sobre ela já houver um pronunciamento superior sobre o tema”.

Mas quando a decisão normativa não é emanada de um tribunal de superposição, ou seja, quando a decisão provém de um tribunal local (estadual ou federal),  nessa hipótese a preclusão hierárquica não se caracteriza com a mesma força que sucede quando a decisão normativa é proferida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça (tribunais de “superposição” em nosso sistema de justiça),  considerando  os limites que foram estabelecidos pela Constituição de 1988,  e, sobretudo,  o poder que essa mesma Constituição reconhece e outorga aos juízes em geral quanto à  liberdade de interpretação e aplicação das normas legais, quando confrontam e colidem com as normas constitucionais. 

É nesse contexto que se deve distinguir o regime jurídico a aplicar-se no caso de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade e quando edita súmula vinculante,  e o que ocorre quando se trata de uma tese jurídica fixada por um tribunal local em incidente de resolução de demandas repetitivas, porque embora  essa decisão judicial seja dotada de caráter normativo, conforme prevê o Código de Processo Civil de 2015,  o regime jurídico de preclusão (ou seja, os limites impostos pela lei à atividade decisória do juiz) é diverso, se considerarmos os limites tais como foram estabelecidos em nossa Constituição.  

Importante assinalar que, se o juiz deve curvar-se ao que o tribunal a que vinculado tenha decidido em grau de recurso (porque a Constituição de 1988, ao prever o direito ao devido processo legal, garante o direito de recurso, estabelecendo que seu julgamento caberá aos tribunais locais), havendo aí preclusão hierárquica, ela não ocorre com a mesma força quando se trata de tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, a legitimar que nesse caso  o juiz exerça o controle difuso de constitucionalidade.  

Por fim, assinale-se que, embora o Código de Processo Civil de 2015 preveja o uso da reclamação contra a decisão que não observe a tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, há que se considerar que se a tese jurídica não tiver examinado expressamente a questão da constitucionalidade, ou seja, se o tribunal local  não tiver se pronunciado sobre esse fundamento jurídico, a reclamação não caberá, porque como enfatiza DINAMARCO: “não se reputa desobediente à autoridade de um tribunal a decisão sobre pedido já soberanamente decidido por um deles, quando essa nova decisão de pronunciar sobre novos fundamentos antes não versados”. 

Assim, no exemplo que mencionamos, na tese jurídica fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo acerca da forma de contratação dos “soldados temporários” e do regime jurídico a aplicar-se, como aquele Tribunal, na tese jurídica proferida em incidente de resolução de demandas repetitivas, não tratou da constitucionalidade, em declarando o juiz de primeiro grau a inconstitucionalidade incidental da referida tese jurídica, não caberá a reclamação pela razão que a doutrina aponta, de modo que o exame da questão  deve se dar apenas em recurso inominado, segundo as regras que se adotam ao sistema recursal fixado pela Lei federal de número 12.153/2009.

Registre-se, porque relevante, que na tese jurídica em questão o Tribunal de Justiça de São Paulo, em nenhum momento, cuidou analisar a norma constitucional que trata da base de cálculo do ITBI,  de modo que também por essa razão não se podia obstar que, nesta sentença, desse tema se cuidasse, até porque não pode o juiz deixar de sempre  considerar a hierarquia das normas constitucionais, quando, examinando uma causa, tem que cotejar o direito subjetivo invocado com base em norma local em relação às normas da Constituição de 1988, como aqui cuido levar a cabo.  

Justifico, com tais razões e argumentos, o porquê estou, neste processo, a exercer o controle difuso de constitucionalidade, para deixar de aplicar a tese jurídica fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em incidente de resolução de demandas repetitivas, porque entendo que, ao decidir aquele Tribunal, com efeito normativo, qual seja a base de cálculo do ITBI, violou a Constituição de 1988. De modo que, exercendo o controle difuso de constitucionalidade, atuando, pois, na guarda das normas constitucionais, declaro, incidentalmente, a inconstitucionalidade material da referida tese em jurídica, não a aplicando, portanto, no caso presente.

Com efeito, embora se reconheça como válida a argumentação dos autores  de que o valor do ITBI deve a princípio corresponder ao da aquisição, não se retira do Fisco o poder de impugnar esse valor, se entende que é outro, de maior montante, o real valor do imóvel. Nesse caso, instala-se um conflito entre contribuinte e Fisco, para o desimplicar do qual poderá ser necessária a produção de provas, inclusive a pericial, que a Lei que prevê a incidência do ITBI no âmbito do Município de São Paulo autoriza seja produzida, se o contribuinte discorda da base de cálculo exigida pelo Fisco. 

Base de cálculo, cabe observar, na esteira da argumentação desenvolvida pela MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO, que é e pode ser diversa daquela fixada para o IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana, segundo dispuser a Lei, como ocorre no caso do município de São Paulo, que para o conceito de “valor venal”, estabelece o valor real de mercado, aferido segundo avaliação técnica adequada. De resto, o artigo 148 do Código Tributário nacional concede ao Fisco o poder de impugnar o valor adotado pelo contribuinte, quando encontra razões suficientes a permitir fazê-lo. 

A propósito, perscrutando com sua habitual profundidade a base de cálculo do ITBI, pontifica o brilhante tributarista ALFREDO AUGUSTO BECKER as possibilidades de que dispõe o Fisco para validamente fixar a base de cálculo desse tipo de imposto, de modo que reste configurado o gênero tributo, que  assim poderá abarcar em sua base de cálculo o valor do direito transmitido, permitindo-se o arbitramento do valor do direito transmitido (cf. Teoria Geral do Direito Tributário, p. 397, Saraiva, 1963). E nesse compasso,  segundo o Código Tributário Nacional em seu artigo 38, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal dos bens ou direitos transmitidos, segundo arbitramento que a Lei pode conferir ao contribuinte, embora remanescendo em mãos do Fisco o direito de arbitrar outro valor, se aquele declarado pelo contribuinte se mostrar inferior ao valor real de mercado, pois que isso o artigo 148 do CTN autoriza.

Mas, a Lei pode ainda assegurar ao Fisco o direito de arbitrar desde logo o valor venal do bem, segundo critérios radicados na localização e outras circunstâncias, a partir das quais lhe seja possível, com razoável precisão, quantificar o valor real de mercado, que pode, outrossim, ser coincidente com o valor venal adotado para o IPTU, e normalmente assim se dá, por coerência, mas que poderá, sem óbice, ser-lhe superior. 

Com efeito, sobre serem diversas as bases de cálculo do ITBI  e do IPTU (a base de cálculo do IPTU, com efeito, é o estado de fato jurídico, ou seja, a propriedade), não há impedimento legal a que o Fisco considere o real valor de mercado para a tributação pelo ITBI, segundo critérios de arbitramento de que dispuser, adotando eventualmente para o IPTU um valor menor. Evidentemente que mais coerente seria a identidade de valores, pois que para ambos se pode considerar o valor venal; mas a incoerência nesse caso não está censurada pela Lei, de modo que não há impedimento legal a que o Fisco considere para a base de cálculo do ITBI o valor que arbitra segundo critérios que entender adequados, chegando eventualmente a um valor superior ao adotado para o IPTU. 

Conclui-se, portanto, que o autor não possui o direito subjetivo que invoca, visto que não pode exigir prevaleça sem mais, na base de cálculo do ITBI, o valor da escritura de compra e venda, pois que a Lei confere ao Fisco o direito de impugnar esse valor, se entende que o valor arrematado é inferior àquele que corresponde ao real valor de mercado.

A produção de avaliação técnica, em regular processo, administrativo ou judicial, é que definirá qual o real valor de mercado para efeito de tributação, se assim o autor se dispuserem a levar a cabo, ao discordar da base de cálculo que lhe impôs o Fisco. Mas será necessário produzir-se uma prova pericial cuja modalidade não é a do exame técnico, de modo que a controvérsia, ser for instalada pelo autor em uma nova ação, deverá observar a competência. Essa é a ressalva, explicitando-se por ela que não se formará a coisa julgada material acerca dessa questão (a dizer, sobre se o preço real de mercado é aquele que o Fisco está a apontar), mas apenas quanto a poder o Fisco do Município de São Paulo exigir o pagamento do ITBI em uma base de cálculo que não corresponde ao do preço da escritura de compra e venda, tratando-se aí de uma matéria exclusivamente jurídica.

POSTO ISSO, declarando a inconstitucionalidade incidental de tese jurídica fixada em incidente de resolução de demandas repetitivas, não a aplicando neste caso, pois, JULGO IMPROCEDENTE o pedido, declarando  extinto este processo, com resolução do mérito, por aplicação subsidiária do artigo 487, inciso I, do novo Código de Processo Civil.

Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pelo autor de ato de litigância de má-fé, não se lhe pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado. 

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença. 

São Paulo, em 30 de novembro de 2020.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

JUIZ DE DIREITO