INCONSTITUCIONALIDADE, COISA JULGADA E VERDADE
Valentino Aparecido de Andrade
O julgamento que ainda está em curso no Supremo Tribunal Federal, mas que já alcançou uma maioria que provavelmente se manterá até a proclamação do resultado, o que significa dizer que o resultado que ainda é provisório, pode já ser considerado como definitivo no sentido de reconhecer que a declaração de constitucionalidade acerca de um tributo produz efeitos “erga omnes” e retroativos, esse julgamento, pois, fez-me lembrar um livro escrito por FERNANDO SABINO em 1988, “O Tabuleiro de Damas”:
“Numa das três novelas do meu último livro, A Faca de Dois Gumes, um escrivão está jogando damas com um comissário de polícia e pergunta se o tabuleiro é preto com quadrados brancos ou branco com quadros pretos. O comissário diz que é branco com quadrados pretos. O escrivão, raposa velha da polícia, diz que não.
– Então é preto com quadrados brancos.
“E o escrivão:
Também não. É de outra cor, com quadrados pretos e brancos.
Com isso eu quis sugerir que, por baixo da realidade que se apresenta aos nossos olhos, existe outra, que é a verdade”.
Para explicar sobre o que versava seu livro, SABINO utilizava-se de uma metáfora, dizendo que o tabuleiro de damas nem é preto com quadrados brancos, nem é branco com quadrados pretos, é de outra cor com quadrados pretos e brancos, e esta outra cor é que simboliza o esforço do escritor em buscar uma verdade que se esconde além da realidade – a realidade é que é mentira, e a verdade, que surge na imaginação criadora, é que ultrapassa a realidade.
Durante muitos anos, para não falar desde sempre, os juristas e operadores do Direito aprenderam, com CHIOVENDA em especial, que a coisa julgada material é imutável, e que ela tinha o grande poder de transformar o branco em preto, e o branco em preto, o que, aliás, vem a calhar com o que dizia SABINO sobre o tabuleiro de damas.
Ocorre que agora se descobre que a coisa julgada material é uma espécie de tabuleiro de outra cor, com quadrados pretos e brancos, no sentido de que tanto quanto pode transformar o preto em branco e o branco em preto, a coisa julgada material pode ainda mais, porque pode ultrapassar a realidade, produzindo uma verdade que a ultrapassa, ao fazer com que aquilo que se pensava imutável transforma-se de repente em mutável, para logo em seguida tornar-se imutável novamente, mas em um sentido totalmente oposto ao que fora. É a imaginação criadora no Direito, ultrapassando a realidade, como diria o grande SABINO.
Tudo estaria bem, estivéssemos no plano da ficção. Sucede, entretanto, que temos uma Constituição que coloca sob a proteção máxima de uma cláusula pétrea a coisa julgada material, impondo, portanto, um limite à atividade criadora. Com efeito, conquanto seja possível declarar a constitucionalidade de um tributo, fazendo com isso gerar efeitos obrigatórios e até mesmo retroativos, como prevê a Constituição de 1988, também é necessário considerar que a mesma Constituição protege a coisa julgada material, de modo que se instala aí um conflito entre a decisão do caso em concreto e um princípio constitucional que é de fundamental importância em nosso Estado de Direito, e não haverá dúvida em afirmar que esse princípio é que deve prevalecer, porque essa é a verdade que a Constituição, com sua atividade criadora, impõe.