ICMS. OPERAÇÃO DE IMPORTAÇÃO DE MERCADORIA

ICMS. OPERAÇÃO DE IMPORTAÇÃO DE MERCADORIA. EMENDA CONSTITUCIONAL 33. “FLUXO DE POSITIVAÇÃO

 

                                      Valentino Aparecido de Andrade

Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

 

 

“(…) Como as novidades de agora são antigas!”

 –  CAMILO CASTELO BRANCO, A Caveira da Mártir.

 

– 1 –

 

Há algum tempo, embora não muito recuado, instalou-se em nossa doutrina e jurisprudência o vezo de atribuir a institutos antigos e consagrados pela tradição jurídica uma denominação nova, seja para demonstrar, apenas por vaidade, uma falsa cultura e originalidade, seja com um objetivo mais prático, de fazer com que uma argumentação que tenha sido exaustivamente analisada (e rejeitada), possa parecer que não o tenha sido, e quiçá agora prevaleça, quando antes não o fora, apenas pelo falso sabor da novidade.

 

É o que sucede com o instituto a que se deu o espaventoso nome de “fluxo de positivação”, que a partir de um julgamento do Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinário sob número 439.796,  relator ministro Joaquim Barbosa), ganhou algum prestígio em nossa  jurisprudência, tornando-se frequente que julgados de diversos tribunais o invoquem apenas por sua denominação, como ocorreu com o mesmo Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso extraordinário sob número 474.767 (relator ministro Roberto Barroso),  e em um recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

 

“MANDADO DE SEGURANÇA ICMS – IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTO – NÃO CONTRIBUINTE – USO PRÓPRIO – LEGISLAÇÃO ESTADUAL – FLUXO DE POSITIVAÇÃO DE COMPETÊNCIA – INOBSERVÂNCIA – ÓRGÃO ESPECIAL – INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – ACOLHIMENTO – LIMINAR – POSSIBILIDADE: DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º, INCISO VII DA LEI ESTADUAL Nº 11.001/01, O ICMS NÃO PODE INCIDIR SOBRE A IMPORTAÇÃO EFETUADA POR CONTRIBUINTE NÃO HABITUAL DO IMPOSTO. PRESENTE A RELEVÂNCIA DO FUNDAMENTO E O PERIGO DA DEMORA A LIMINAR NÃO PODE SER NEGADA.  (Agravo de Instrumento nº 2210307-05.2017.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Público do TJSP, Rel. Teresa Ramos Marques. j. 23.03.2018)”.

 

 

Mas em que consiste o instituto do “fluxo de positivação”? Consideremos o que o próprio Supremo Tribunal Federal explicitou a respeito, quando sublinhou não existir em nosso sistema jurídico o “fenômeno da constitucionalização superveniente”, analisando sob essa premissa  a incidência do ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e de Serviços após a entrada em vigor da emenda constitucional de número 33/2001,  que modificou a regra do artigo 155, inciso IX, alínea “a”, da Constituição de 1988, para prever que o ICMS incide

 

sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço; (…).[1]

 

Assim, sob o argumento de que em nosso sistema jurídico não existe o “fenômeno da constitucionalização superveniente”, decidiu o Supremo Tribunal Federal que a legislação federal ou de Estado-membro anterior à emenda constitucional de número 33/2001 não foi convalidada, porque essa legislação não teria recebido da nova norma constitucional (a dizer, da emenda 33) o fundamento que lhe daria validez. Afirmou-se, pois, no julgamento do recurso extraordinário 439.796, textualmente:

 

Modificações da legislação federal ou local anteriores à EC 33/2001 não foram convalidadas, na medida em que inexiste o fenômeno da ‘constitucionalização superveniente’ no sistema jurídico brasileiro. A ampliação da hipótese de incidência, da base de cálculo e da sujeição passiva da regra-matriz de incidência tributária realizada por lei anterior à EC 33/2001 e à LC 114/2002 não serve de fundamento de validade à tributação das operações de importação realizadas por empresas que não sejam comerciais ou prestadoras de serviços de comunicação ou de transporte intermunicipal ou interestadual”. (STF, RE 439.796 – Paraná).

 

Para que se compreenda o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal nesse julgamento, e em que contexto aplicou o denominado “fluxo de positivação”, é necessário observar que antes da emenda constitucional de número 33, o ICMS, nas operações de importação, incidia apenas se a mercadoria ou bem destinava-se a consumo ou ao ativo fixo do estabelecimento comercial, exigindo-se também que o importador fosse contribuinte habitual do ICMS, situação modificada pela referida emenda constitucional, que, sem alterar os elementos essenciais da hipótese de incidência fixados no texto original  do artigo 155, incisos II e IX, da Constituição de 1988, permitiu que o ICMS incida sobre toda e qualquer operação de importação de bem ou mercadoria, independentemente de sua finalidade, de modo que ainda que o importador não se dedique habitualmente ao comércio ou à prestação de serviços, será sujeito passivo da exação. Como aduz o tributarista JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO:

 

A modificação objetivou abranger todas as espécies de importação, na medida em que o texto original era circunscrito à importação de ‘mercadoria e bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento’, tendo o novo preceito suprimido a referida destinação ao dispor sobre a incidência tributária independentemente da finalidade da mercadoria ou do bem”.[2]

 

Decidiu o Supremo Tribunal Federal, pois, que a emenda constitucional de número 33/2001 não pode, só por si, legitimar a cobrança do imposto nas operações de importação de bem ou mercadoria, porque a legislação federal ou de Estado-membro  anterior à entrada em vigor dessa emenda constitucional não foi convalidada, e assim, se era inconstitucional à luz do texto original da Constituição de 1988, continuou a ser mesmo depois da emenda 33.

 

Em outros termos: a legislação infraconstitucional relativa ao ICMS, seja a de matriz federal, seja a emanada de Estado-membro, no que toca à previsão de incidência sobre operação de importação de bem ou mercadoria,  essa legislação, embora surgida quando já em vigor a Constituição de 1988, perdeu toda a sua validez, porque a inconstitucionalidade que a acoimava em face do texto original da Constituição de 1988, subsiste, mesmo quando uma nova norma constitucional (a emenda de número 33) pudesse lhe ter conferido essa constitucionalidade.

 

Sob esse fundamento é que o Supremo Tribunal Federal fez aplicar o que denominou de “fluxo de positivação”, quando decidiu que, ao menos em matéria tributária,[3] uma norma infraconstitucional que, mesmo posterior à Constituição de 1988, não seja conforme com seu texto, será irremediável e definitivamente inconstitucional, ainda que uma nova norma (emenda) lhe tenha dado, supervenientemente, essa constitucionalidade.

 

E assim, decidiu o Supremo Tribunal Federal que  o ICMS somente poderá ser cobrado nas operações de importação de bem  e mercadoria depois que se observar um novo “fluxo de positivação”, o que significa que uma legislação infraconstitucional terá que surgir a partir da emenda constitucional 33, para que o imposto possa ser exigido.

 

Tal é, em sua essência e efeitos, o instituto a que se deu o nome de “fluxo de positivação”, com o qual o Supremo Tribunal Federal desobrigou do pagamento do ICMS quem realizara importação de mercadoria, malgrado a emenda constitucional de número 33/2001 previsse essa incidência.

 

Tratar-se-ia, pois, de um novo instituto de direito constitucional, de criação nossa, mas a tal ponto consistente que não haveria qualquer necessidade de fundamentar sua aplicação. Basta que ele seja invocado por seu nome  – “fluxo de positivação”, aliás, um nome  que é tanto mais pomposo quanto mais enigmático, visto poder ser aplicado a um considerável número de situações jurídicas, chegando mesmo a confundir-se em certo aspecto  com um outro instituto jurídico, também de criação nossa, e que, tal como o “fluxo de positivação”,  tem aplicação ao direito tributário, e ao qual coincidentemente se deu um nome bastante parecido. Refiro-me ao “ciclo de positivação”, expressão cunhada por um nosso grande jurista para denominar o fenômeno de concreção da norma tributária sobre uma determinada situação material, o que antes chamávamos com o singelo nome de “aplicação do direito”.

 

Certamente, suporá o leitor (e não cuido se trate de um jejuno em Direito) que a nossa jurisprudência terá descortinado um novo instituto de direito constitucional (ou quiçá um princípio), para regular um tema de direito intertemporal que envolve a aplicação de normas constitucionais.  Assim, se ao tempo de Rui Barbosa era bastante frequente invocar-se a doutrina do direito constitucional inglês, agora estaríamos a criar teoria. Sim,  deixáramos de importar ciência,  para a fazer por mão própria.

 

Pois bem, caro leitor,  estou na obrigação de lhe desvanecer a ilusão, porque me vejo obrigado a  dizer  que aquilo que parece constituir uma criação de nossa jurisprudência no terreno do Direito constitucional, nada mais é do que a mera aplicação de uma teoria que é tão vetusta quanto conhecida: a “Teoria da Recepção”, engendrada de há muito pela doutrina estrangeira, quando se deparou com a particular problemática que envolve a aplicação das normas constitucionais no tempo.

 

Se a vaidade de alguns dos nossos operadores do Direito se limitasse a dar nomes novos a institutos antigos, não teríamos razão e motivo para perdermos tempo com algo que apenas confirmaria a percuciente observação do dramaturgo Nelson Rodrigues quando cunhou a expressão “complexo de vira-lata”, referindo-se ao sentimento de inferioridade que continua persistente em nosso País. Entretanto, o problema ganha outra dimensão, quando associado ao fato de se dar nome novo a um instituto antigo, sucede uma injustificável perda de receita tributária, resultado direto da aplicação incorreta de normas da Constituição de 1988.

 

 

– 2 –

 

Desenvolvida para dar solução aos problemas jurídicos que envolvem a aplicação das normas constitucionais no tempo,  a Teoria da Recepção buscou sistematizar critérios que devem ser empregados quando se analisa o conflito entre uma nova constituição e normas infraconstitucionais anteriores ou posteriores a ela.

 

Com efeito, quando surge uma nova constituição, instala-se o indissociável problema jurídico de se apurar se as normas infraconstitucionais anteriores subsistem no ordenamento jurídico. Ou seja: se essas normas, que até então eram vigentes, válidas e eficazes, se após uma nova constituição (ou emenda constitucional) continuam com tais predicados.

 

A Teoria da Recepção também busca fixar critérios a serem aplicados a uma outra situação jurídica, que ocorre quando uma norma infraconstitucional, anterior ou posterior a uma constituição, apresenta inconstitucionalidade que, entretanto, cessa (ou cessaria) em virtude de uma nova norma constitucional (emenda), que lhe confere (ou conferiria) essa constitucionalidade.

 

De modo que  os critérios que formam a estrutura da Teoria da Recepção são aplicados aos conflitos jurídicos que envolvem a aplicação das normas constitucionais no tempo nas diversas situações em que esses conflitos instalam-se. Assim, podemos ter o conflito entre uma nova constituição e leis constitucionais e infraconstitucionais anteriores a ela, como também podemos ter um conflito entre leis infraconstitucionais posteriores a uma constituição, mas anteriores a uma emenda constitucional, perscrutando-se nesse contexto se as normas infraconstitucionais que sejam desconformes com o texto originário da constituição, mas que em virtude de uma emenda passaram a ser conformes com essa nova norma constitucional, se tais normas podem receber de uma emenda constitucional o fundamento de sua validez.

 

Como uma nova constituição revoga no todo uma constituição anterior, pelo simples e curial motivo de que não pode haver senão uma constituição em vigor, daí decorre que, surgindo uma nova constituição, as normas de uma constituição anterior não sejam recepcionadas em sua fundamento de validez, e por isso deixam de existir naquele sistema jurídico. Afirma o constitucionalista português,  JORGE MIRANDA, que,  nesse caso, ocorre uma “revogação global ou de sistema”.[4]

 

Mas o que ocorre quando se cuidam de normas infraconstitucionais anteriores ou posteriores a uma nova constituição? É aqui propriamente que se deve aplicar a Teoria da Recepção.

 

Ressalta JORGE MIRANDA que  uma nova constituição nunca faz tábua rasa da legislação que compõe o direito ordinário (infraconstitucional) anterior, de forma que se há presumir que essa legislação  mantenha-se válida, e que a razão para que assim seja é porque demandaria um esforço considerável o reconstruir, em curto tempo, toda uma série de normas legais que são indispensáveis à regulação de um sem número de situações jurídicas do dia a dia. Pensemos, por exemplo, no nosso código civil de 1916, que teria perdido toda a sua validez no momento em que a Constituição de 1988 entrou em vigor, não fosse a presunção de que as normas desse código foram recepcionadas em seu fundamento de validez.[5] E já que estamos a falar de matéria tributária, o mesmo teria sucedido com o Código Tributário, que é de 1966.

 

Destarte, se as normas que são anteriores a uma constituição presumem-se conformes com ela, daí se pode concluir que é equivocada a premissa de que se utilizou o Supremo Tribunal Federal no referido julgamento, quando afirmou não existir em nosso sistema jurídico o fenômeno da constitucionalização superveniente. Não houvesse, e ao tempo em que entrou em vigor a Constituição de 1988 todas as normas a ela anteriores teriam perdido, naquele momento, o fundamento de sua validade. Aliás, a regra geral é exatamente a que assegura uma constitucionalidade superveniente, porque, como enfatiza JORGE MIRANDA, uma constituição nova não faz, nem pode fazer tábua rasa do direito ordinário anterior, o qual se presume recepcionado em seu fundamento de validez pela nova constituição, salvo quando se demonstre que a norma anterior a uma constituição seja desconforme com ela.

 

Dir-se-ia que o Supremo Tribunal Federal, ao negar a existência em nosso sistema jurídica do fenômeno da constitucionalização superveniente, não estava a pensar nas normas existentes antes da Constituição de 1988,  mas sim naquelas surgidas após a entrada em vigor dessa Constituição e que não eram conformes com ela, muito embora tivessem posteriormente alcançado  uma relação de conformidade graças a uma emenda constitucional, e, pois,  que a premissa de que em nosso sistema jurídico não há o fenômeno da constitucionalidade superveniente se circunscreveria  a esse contexto. Mas, se esse é o caso, quando menos deveria o Supremo Tribunal Federal ter feito a necessária ressalva, para evitar qualquer dúvida acerca do conteúdo e alcance da premissa de que estava a se valer.

 

 

– 3 –

 

Convém assinalar que a presunção de validez é sempre relativa, porque será necessário verificar se a norma infraconstitucional anterior a uma nova constituição é com ela conforme. Esse é o único requisito que se deverá observar, como destaca JORGE MIRANDA:

 

A subsistência de quaisquer normas ordinárias anteriores à nova Constituição depende um único requisito: que não sejam desconformes com ela. Se forem desconformes, só poderão eventualmente, sobreviver se elevadas elas próprias então à categoria de normas constitucionais, quer dizer, se constitucionalizadas”.[6]

 

                                      Caberá ao intérprete, portanto, a tarefa de perscrutar acerca da eventual relação de conformidade entre a norma de direito infraconstitucional em face de uma nova constituição. Se houver conformidade, diz-se que a norma de direito infraconstitucional foi recepcionada, o que equivale a reconhecer que seu fundamento de validade foi-lhe dado pela nova constituição, de modo que essa norma infraconstitucional, embora anterior a uma nova constituição, mantém-se no ordenamento jurídico com os predicados de vigência, validez e eficácia, ainda que se reconheça, como afirma JORGE MIRANDA, que as normas infraconstitucionais anteriores a uma constituição, quando recepcionadas, são sempre “novadas”, no sentido de que experimentam uma mudança no fundamento de sua validade em virtude  da nova constituição:

 

Há, assim, uma nítida diferença entre a situação do Direito constitucional anterior – o qual cessa com a entrada em vigor da nova Constituição – e a do Direito ordinário anterior – o qual continua, com novo fundamento da validade e sujeito aos princípios materiais da nova Constituição e que somente em caso de contradição deixará de vigorar. E, enquanto as normas constitucionais que subsistam são recebidas pelas novas normas constitucionais, as normas ordinárias são simplesmente novadas”.[7]

 

Com efeito,  ainda que se reconheça que uma norma infraconstitucional anterior a uma nova constituição foi por ela recepcionada, e por isso se mantém  como vigente, válida e eficaz,  é de ser considerar que ela deve ser interpretada em seu conteúdo e alcance em face do novo sistema jurídico em que está agora colocada, estabelecido esse sistema pela nova constituição. Daí se revelar apropriado dizer-se, na esteira de JORGE MIRANDA, que a norma infraconstitucional anterior a uma nova constituição é “novada” em seu fundamento de validez, quando é conforme a essa nova constituição.

 

Mas é necessário fazer uma ressalva entre gênero e espécie na relação que existe entre “recepção” e “novação”, quando se cuidam de normas infraconstitucionais que recebem seu fundamento de validez por uma nova constituição ou por uma emenda. É que a “recepção” constitui gênero na relação que mantém com a “novação”, que é assim sua espécie. Ou seja: em toda a vez que houver a “novação” de uma norma infraconstitucional, estará presente necessariamente a recepção dessa norma em face do sistema instaurado por uma nova constituição. Mas o inverso não é verdadeiro, pois que em se tratando de uma norma infraconstitucional posterior à constituição, não há novação, porque essa norma surge já sob o sistema  pela constituição em vigor, e, assim,  se uma emenda posteriormente lhe confere uma constitucionalidade que ela a princípio não tinha, configurar-se-á nesse caso a recepção, mas sem a novação.

 

Com efeito, quanto às normas infraconstitucionais posteriores a uma constituição elas podem, sim, ser recepcionadas em seu fundamento de validez em virtude de uma emenda constitucional. É aqui precisamente que devemos analisar o equívoco da afirmativa do Supremo Tribunal Federal quanto a não haver, em nosso sistema jurídico, o fenômeno da “constitucionalidade superveniente”. Isso nos conduz ao exame de duas hipóteses distintas.

 

Na primeira hipótese,  a norma infraconstitucional é anterior a uma determinada constituição e desconforme com seu texto, malgrado posteriormente tenha recebido o fundamento de sua validez por uma nova norma constitucional (emenda).

 

Na segunda hipótese, a norma infraconstitucional surge quando já em vigor uma constituição, mas é desconforme a seu texto, recebendo, contudo, de uma emenda constitucional o fundamento de sua validez.

 

Note-se que em ambas as situações há um elemento em comum: é que o fundamento de validez da norma infraconstitucional lhe é conferido por uma nova norma constitucional (emenda). Assim, tanto a norma anterior a uma constituição poderá, em tese, receber o fundamento de sua validez por força de uma emenda, como o mesmo pode ocorrer com uma norma infraconstitucional posterior a uma constituição. Mas há um aspecto que diferencia uma hipótese da outra, e esse aspecto é que determinará qual o regime jurídico a aplicar-se.

 

Conforme se enfatizou, quando surge uma nova constituição é necessário analisar se as normas infraconstitucionais anteriores a ela são conformes com seu texto, para determinar se o fundamento de validez dessas normas foi recepcionado (ou “novado”) pela constituição ao tempo em que esta nasce. Tratando-se, pois, de normas infraconstitucionais que são anteriores a uma constituição, a relação de conformidade é de realizar-se com base apenas no texto original da constituição, tal como nasceu, de modo que se essa relação de conformidade não existe aí, nesse momento específico, jamais poderá existir, ainda que uma emenda constitucional lhe tenha conferido posteriormente o fundamento que lhe daria validez. É que nesse caso a norma infraconstitucional anterior a uma nova constituição, se desconforme com seu texto, será tida como inexistente, o que determina que a inconstitucionalidade nesse caso seja resultado de um vício de caráter absoluto, porquanto, em se tratando de uma norma jurídica inexistente, esse vício não pode ser sanado. E por consequência, uma emenda constitucional jamais pode conferir fundamento de validez a uma norma infraconstitucional anterior à constituição.

 

Mas esse regime jurídico – de inexistência da norma infraconstitucional anterior a uma constituição e por ela não recepcionada em seu fundamento de validez – não é de ser aplicado quando se trata de uma norma infraconstitucional surgida quando já em vigor uma constituição. Nesse caso, a inconstitucionalidade que poderá acoimar a norma infraconstitucional não faz com essa norma seja inexistente, mas apenas nula, sendo de se recordar que em nosso ordenamento jurídico em vigor o artigo 27 da Lei federal de número 9.868/1999 passou a autorizar  ao Supremo Tribunal Federal flexibilize os efeitos da nulidade de uma lei declarada inconstitucional, sobretudo quanto ao momento temporal da produção de seus efeitos.

 

De sorte que, em se tratando de uma lei infraconstitucional surgida após a Constituição de 1988, em não se tendo declarado, em controle abstrato, a sua inconstitucionalidade, ela permanecerá integrada ao  nosso  sistema jurídico em estado de latência, seja para aguardar que o Supremo Tribunal Federal venha a declarar essa inconstitucionalidade (definindo, nesse caso, a partir de que momento os efeitos da inconstitucionalidade serão projetados), seja para ensejar que uma emenda possa lhe conferir uma constitucionalidade superveniente, se isso vier a suceder.

 

Há, pois, uma considerável diferença entre os dois regimes a serem aplicados quando se trata de uma norma infraconstitucional anterior ou posterior a uma constituição, relativamente à inconstitucionalidade.

 

Importante observar, outrossim, que a análise dos efeitos que decorrem da declaração de inconstitucionalidade depende da solução adotada em cada ordenamento jurídico, seja quanto a efeitos materiais (se a norma inconstitucional será de ser tida como inexistente, nula ou anulável), seja também, como observou PONTES DE MIRANDA,[8] quanto a aspectos processuais.

 

Em nosso sistema, quando se afirma, como ALFREDO BUZAID, que uma lei adversa à constituição é absolutamente nula, não simplesmente anulável, há que se considerar que se está aí a considerar  apenas o regime jurídico das normas infraconstitucionais posteriores à constituição, ou seja, das normas produzidas sob a vigência da Constituição de 1988, porquanto em relação àquelas anteriores à vigência dessa Constituição, elas devem ser consideradas inexistentes, quando desconformes com a Constituição.

 

Há, pois, uma diferença de grau entre o regime de invalidade decorrente da inconstitucionalidade, quando ela atinge normas infraconstitucionais anteriores ou posteriores à constituição. Daí que os efeitos negativos/positivos de uma revisão constitucional devem ser fixados conforme o sistema de cada ordenamento jurídico em vigor, e não se pode excluir, em absoluto, a possibilidade de que em determinado sistema uma emenda constitucional possa conferir fundamento de validez a uma norma infraconstitucional anterior a ela, configurando-se nesse caso a recepção da norma infraconstitucional, mas sem novação.

 

Pois bem: em nosso sistema jurídico, há que se considerar a distinção de regime a aplicar-se em caso de inconstitucionalidade de norma infraconstitucional que seja anterior ou posterior à Constituição de 1988, porque em relação às normas posteriores à Constituição de 1988, caso das normas federais (de caráter geral) e de Estados-membros acerca do regime jurídico do ICMS na operação de importação de mercadoria, o regime jurídico a aplicar-se, em caso de inconstitucionalidade, é o da nulidade, o que equivale a reconhecer que a invalidez dessas normas não é do mesmo grau da invalidez que as acoimaria, se fossem anteriores à Constituição de 1988. Assim, se tais normas não eram conformes ao texto da Constituição de 1988, e se por isso eram inconstitucionais, o fato é que tais normas permaneceram em nosso sistema jurídico em estado de latência, na aguarda ou  de que se fizesse observar o procedimento fixado pela Constituição de 1988 para que fossem retiradas do ordenamento jurídico (o que não sucedeu), ou para que uma emenda pudesse conferir àquelas normas uma constitucionalidade superveniente, o que efetivamente ocorreu com a emenda de número 33/2001, que, sem modificar os elementos essenciais da hipótese de incidência do ICMS, tal como eles foram estruturados no texto original da Constituição de 1988, passou a dar fundamento de validade àquelas  normas federais e de Estados-membros que haviam estabelecido a hipótese de incidência desse imposto tal como posteriormente veio a fazer a emenda 33, o que determina que essas normas infraconstitucionais foram recepcionadas em seu fundamento de validez por força da referida emenda, caracterizando-se aí a sua constitucionalidade superveniente.

 

Para concluir, não se pode olvidar-se de uma particularidade do Direito Tributário em nosso ordenamento jurídico em vigor, nomeadamente quanto ao conteúdo que se deve extrair do princípio da legalidade em matéria tributária. Com efeito, conforme a nossa Constituição de 1988, o princípio da legalidade em matéria tributária é de ser entendido como uma exigência de que exista uma lei para que se possa criar um tributo,  cabendo à norma constitucional o papel de apenas fixar os elementos essenciais para a formação da hipótese de incidência dos tributos em geral, o que legitima o poder do legislador infraconstitucional de agregar outros elementos à  formação da hipótese de incidência, desde que respeite os elementos essenciais fixados na norma constitucional, não constituindo certamente a destinação da mercadoria e a qualidade de comerciante  do importador elementos essenciais à hipótese de incidência do ICMS.

[1] A redação anterior era esta: “sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço”.

[2] ICMS – Teoria e Prática, p. 47. 5ª. edição, Dialética editora, São Paulo, 2002.

[3] Não há indicação, no texto do julgamento do recurso extraordinário de número 439.796, quanto à posição do STF em estender a outras a matérias a análise da constitucionalidade pela aplicação do “fluxo de positivação”.

[4] Teoria do Estado e da Constituição, p. 666, Coimbra editora, 2002. Nessa obra, JORGE MIRANDA analisa outros aspectos que envolvem a compatibilidade entre normas de uma constituição anterior em face de uma nova constituição (cf. por exemplo p. 667).

[5] Obra mencionada, p. 669.

[6] Obra mencionada, p. 671-72.

[7] Obra mencionada, p. 669.

[8] Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 390-392, RT.