Processo número 1003293-92-2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
Trata-se de ação de reparação por dano moral, cumulada com pretensão cominatória, ajuizada por (…), qualificada a folha 1, contra (…), qualificado a folha 94, atribuindo a autora ao réu a prática de graves ofensas feitas em uma entrevista veiculada pela plataforma “Youtube” em 25 de março do corrente ano, quando o réu, entrevistado ao vivo para o canal “Na Lata”, apresentado por (…), motivado, segundo a autora, por claro intento ofensivo, proferiu um série de insultos e ultrajes à pessoa da autora, atingindo-a em sua honra, intimidade e dignidade, ao assacar-lhe a condição de “garota de programa” e de “mulher desqualificada”, expressões aleivosas que se tornaram de conhecimento de um grande público, dado que o vídeo da referida entrevista teria alcançado mais de oitocentas mil visualizações, potencializando, segundo a autora, a dimensão das ofensas, afetando diretamente a imagem pública da autora, sua honra e dignidade, objetivando a autora nesse contexto que se imponha ao réu condenação por dano moral, além de lhe obstar volte a proferir tais ofensas, quaisquer que sejam os veículos de comunicação utilizados, sob pena de suportar multa. Adotado o procedimento comum.
Concedida a tutela provisória de urgência de natureza cautelar, cuja eficácia subsiste, registrando-se que o réu interpusera agravo de instrumento, mas a esse recurso foi negado provimento.
Citado, o réu contestou, alegando que é necessário de primeiro “contextualizar as falas e as personagens da ação” e que isso conduz a se dever considerar tanto a autora quanto o réu figuras públicas, e que a entrevista foi concedida na sua condição de senador da República, beneficiando-se da imunidade parlamentar que está prevista no artigo 53 da Constituição Federal, aduzindo, outrossim, que a fala impugnada, que não supera um minuto, está presente nos primeiros cinco minutos do programa, e em nenhum momento tivera o réu a intenção de ofender a autora, e que o termo “garota de programa” possui um duplo sentido, e que se o sentido fosse aquele extraído pela autora, ou seja, se houvesse o intuito de ofendê-la e teria se utilizado de expressões com um sentido inequivocadamente ofensivo, como “meretriz, “rameira”, além de se dever considerar, segundo o réu, que a finalidade do uso do termo “garota de programa” teve apenas o sentido de afirmar que a autora, como apresentadora de programa, não possui competência para o desempenho de tal mister, e que se ela ganhou notoriedade como apresentadora foi tão somente em virtude de um relacionamento amoroso que mantivera com um cantor de fama internacional, fato que, segundo o réu, é conhecido e que pode se provado, não havendo, pois, na entrevista que concedeu qualquer intenção de ofender a honra e a dignidade da autora, senão que tão somente o de submeter a autora a uma crítica enquanto pessoa pública, não se caracterizando ilícito nessa conduta, sublinhando o réu que, quando se trata de uma pessoa pública, o regime jurídico de proteção da honra, intimidade e dignidade é algo diverso daquele que se aplica às pessoas que não são públicas, e que as críticas devem ser consideradas e ponderadas segundo seu específico regime jurídico e dentro de um discrímem que se justifica e que se adota em nossa jurisprudência.
Réplica apresentada.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO.
Conquanto tenha o réu requerido lhe fosse permitido produzir prova testemunhal, tem-se que essa prova mostra-se impertinente (o que se demonstrará no curso desta sentença), o que significa dizer que, ao desimplicar desta demanda, e do julgamento de seu mérito, são suficientes as provas documentais já produzidas, o que determina sobrevenha, como sobrevém o imediato julgamento desta lide.
Um registro prévio impõe-se: reconheceu-se a conexão desta ação com a registrada com o número 1003538-07-2021, por haver certa relação de identidade quanto ao contexto fático-jurídico, ou seja, quanto à causa de pedir, de modo que, reunidas as ações, evitam-se julgamentos conflitantes, o que, no entanto, não quer dizer que deva haver necessariamente um julgamento simultâneo das ações conexas. Importante observar que o CPC/2015, por meio de seu artigo 55, parágrafo 3º., estendeu de modo bastante apropriado o número de hipóteses em que deva haver a reunião de processos, quando essa medida for necessária para afastar o risco de decisões conflitantes ou contraditórios, exista ou não conexão. E esse objetivo está sendo aqui observado. Destarte, estando este processo em condições de receber sentença neste momento, assim sucederá, como sucederá a seu tempo com a ação conexa, sem o risco de que surjam decisões conflitantes ou contraditórias.
Quanto ao mérito da pretensão.
Eis o fato: em 25 de março de 2021, o réu, uma pessoa nacionalmente conhecida por sua vida ligada ao esporte, e mais recentemente em virtude de sua vida política, foi entrevistado em um programa que é veiculado pela plataforma “Youtube”, que é um importante canal de comunicação surgido com a “Internet”, conquistando um público que, em muitos casos, supera números impressionantes. O programa em que a entrevista do réu foi veiculada tem o nome de “Na Lata com (…)”, que vem a ser o nome da apresentadora desse programa. Durante a entrevista, o réu disse, textualmente: “Sobre a (…) eu não tenho nada a falar. Não falo sobre mulher de programa. Dane-se. Ela já me processou, pode processar de novo. É uma mulher desqualificada, tanto que virou o que virou por 30 segundos com o (…). Ou você acha que foi por amor?”.
É em face do conteúdo dessa entrevista, quanto às parte reproduzida literalmente, que a autora sustenta ter sido gravemente ofendida em seu honra, intimidade e dignidade, buscando obter nesta demanda dois provimentos jurisdicionais: um de natureza cominatória, para que se obste ao réu profira novas ofensas desse jaez ou semelhantes a ele; o segundo provimento é de natureza condenatória, pretendendo a autora que o réu repare o dano moral.
O réu não nega o conteúdo da entrevista, mas obtempera que se deva considerar que ele estava a ser entrevistado na condição de um senador da República, gozando de uma imunidade parlamentar, e que por isso não pode ser civilmente responsabilizado pelo teor da entrevista, aduzindo, outrossim, que a expressão “garota de programa”, que admite ter falado, é uma expressão que possui um duplo sentido e que um dos sentidos aplica-se ao caso da autora e não tem feição ofensiva, dado que, exercendo a autora a atividade profissional de apresentadora de programa de televisão, isso justificaria que o réu a ela se referisse como uma “garota de programa”, no sentido de que ela apresenta programa de televisão. Ambas as alegações, contudo, não subsistem.
Com efeito, embora o réu ocupe o cargo de senador da república, e possa ter, nalgumas passagens da entrevista, feito referência a temas que dizem respeito à vida política, não foi nessa condição que foi entrevistado, bastando que se considere o tipo de programa em que a entrevista foi dada, um programa de natureza popular, cujo público, ao menos em sua grande maioria, não tem interesse em temas da vida pública, de modo que a entrevista foi dada em razão de o réu ser uma pessoa cuja trajetória na televisão brasileira o tornou uma pessoa conhecida, seja como repórter, seja como apresentador de televisão, e não propriamente como senador ou mesmo como político. E se considerarmos o perfil dos entrevistados nesse programa, constataremos que a condição que deu azo a que o réu fosse entrevistado não se deve à sua vida política, mas sim a de se tratar de uma pessoa ligada à televisão e conhecida como tal.
De resto, ainda que pudéssemos considerar que o réu é senador da República, o contexto da entrevista, no que diz respeito ao que o réu disse da autora, não possui evidentemente nenhuma relação, sequer indireta, com o mandato de senador ou com a vida política do país. O conteúdo do direito subjetivo concedido pela Constituição de 1988 a todo parlamentar – o direito à imunidade por opiniões, e atos – deve ser interpretado de acordo com a finalidade para a qual esse instituto existe e é protegido em nossa já longa história constitucional, que é a de proteger o parlamentar por suas opiniões e atos quando guardem uma relação, ainda que indireta com o exercício do mandato popular, justificando nessa hipótese que se traga o conteúdo da opinião ou do ato para o campo do direito público, protegendo o parlamentar adequadamente, para que ele possa ter condições adequadas para o desempenho de sua importante função pública. Quando a opinião ou a fala não guarda nenhuma relação, sequer indireta, com o exercício do mandato de senador, a proteção não se aplica, nem se justifica que se a pudesse aplicar, como neste caso.
Observa PONTES DE MIRANDA: “Sem liberdade de pensamento, sem liberdade de emiti-lo (liberdade da palavra de opinião), não há Poder Legislativo que possa representar, com fidelidade e coragem, os interesses do povo”. (“Comentários à Constituição de 1967”, tomo III, p. 5, RT). Portanto, para que a imunidade possa ser aplicada é necessário considerar a finalidade para qual ela existe, que é a de a proteger o interesse público, não podendo ser invocada quando essa finalidade não está presente, o que torna necessário, como sublinha PONTES DE MIRANDA, saber-se onde principia a imunidade e até onde ela vai, firmando a regra de que a imunidade somente se refere ao que se profere, ou se escreve, no exercício da função, como são os discursos no recinto parlamentar, nos pareceres e votos proferidos, nas opiniões emitidas no desempenho de comissões parlamentares, em discursos de caráter público, feitos no recinto parlamentar ou fora dele, concluindo PONTES DE MIRANDA que se a manifestação de opinião não foi em função da função, a imunidade não se aplica.
A mesma lição colhe-se noutro insuperável juspublicista, o português, MARCELO CAETANO, que nos é bastante caro sobretudo pelas cristalinas lições de Direito Constitucional que, ao residir no Brasil, deixou-nos, como fez, com mão segura de mestre, ao tratar do instituto da imunidade parlamentar:
“O membro do Congresso não pode ser demandado ou condenado no foro civil ou no foro criminal por palavras, opiniões e votos emitidos no exercício do mandato (Constituição, art. 32).
“Note-se que não é durante o exercício, mas no exercício, isto é, na medida em que as opiniões e votos emitidos dentro ou fora do recinto parlamentar decorram do desempenho das suas funções. Os fatos que, noutras circunstâncias, seriam criminosos são, neste caso, justificados pelo exercício regular do direito de opinar e de votar, senão pelo estrito cumprimento do dever de fazê-lo (Código Penal, art. 19, III).”. (Direito Constitucional, voluma II, p.183, Forense, 1978).
Convém sublinhar que o artigo 32 da Constituição de 1969, ao qual MARCELO CAETANO refere-se em seu ensinamento, possui a mesma redação do artigo 53 da Constituição de 1988, salvo pequena modificação de estilo, de modo que se deve concluir que o conteúdo e o alcance que se devem extrair do artigo 53 ora em vigor coincidem, em sua exata medida, ao que uma consolidada doutrina interpretava da norma da Constituição de 1969, na esteira do que se firmou a nossa jurisprudência constitucional.
Pois qual a relação que existe ou que se possa estabelecer entre o mandato do réu como senador da República e a vida profissional ou pessoal da autora? Obviamente que nenhuma relação há ali, o que significa dizer que o conteúdo da entrevista não está sob o regime da proteção da imunidade parlamentar, e o réu, portanto, não se pode beneficiar da imunidade parlamentar, tendo dado a entrevista na condição de uma pessoa comum, sujeita assim às normas legais que fixam a responsabilidade civil.
Quanto ao significado que se deve dar à expressão “garota de programa”, ou “mulher de programa”, é evidente que o réu a utilizou com o intuito de ofender a honra, a intimidade e a dignidade da autora, exprimindo e querendo fosse esse o mesmo sentido que o telespectador ou ouvinte tivesse, associando a trajetória da autora a uma forma de prostituição, como o réu, ele próprio, cuidou de explicitar quando, logo em seguida ao uso da expressão “mulher de programa”, veementemente afirma que a autora é uma “mulher desqualificada” e que teria se tornado uma pessoa conhecida apenas em virtude de um relacionamento amoroso com um cantor internacionalmente famoso. Não há dúvida, portanto, com qual sentido específico o réu empregou a expressão “garota de programa”, ou “mulher de programa”, emprestando ao termo um sentido de indiscutível carga ofensiva.
Não tivesse o réu a intenção de utilizar desse sentido ofensivo ligado à expressão “mulher de programa”, não teria, no mesmo contexto, feito referência a um episódio da vida pessoal e da intimidade da autora, quando revela a clara e inequívoca intenção de atribuir à autora a prática de uma conduta que se caracteriza ou se pode caracterizar como ligada à prostituição, tudo de molde que que o objetivo do réu fosse alcançado, que era a de ofender a honra, a intimidade e dignidade da autora, depreciando a sua conduta pessoal para a menoscabar também em sua capacidade profissional.
O emprego pelo réu da expressão “mulher de programa”, associado às palavras de forte cariz depreciativo que lhe seguiram, adquire, portanto, um significado explicitamente ofensivo, e, aliás, com carga acentuadamente ofensiva.
E esse caráter ofensivo não pode ser lenificado em razão de a autora ser uma pessoa pública, como se o fato de a autora ser uma pessoa nacionalmente conhecida, tanto quanto o é o réu, escusasse este das ofensas que contra ela praticou, como se houvesse em favor do réu uma espécie de salvo conduto jurídico para ofender a autora, sem que esta pudesse defender-se ou exigir seus direitos, apenas por se tratar de uma pessoa pública.
É certo que a jurisprudência brasileira tem lenificado o regime de proteção jurídico-legal quando se trata de críticas e opiniões feitas contra pessoas públicas, adotando o entendimento de que é imanente à exposição pública estar sujeito a críticas e que por isso a caracterização do dano moral deve sempre considerar esse aspecto. Mas há que se considerar que as decisões judiciais que adotam esse entendimento cuidam sempre de enfatizar a rigorosa necessidade de se examinarem as circunstâncias do caso em concreto, bem assim o conteúdo da crítica ou da fala, condição indispensável para que se defina se o direito de liberdade de expressão está ou não presente.
Daí porque se deve levar em consideração que não é o fato de se tratar ou não de uma pessoa pública que forma o núcleo da razão pela qual se deve abrandar o regime de proteção, senão que o que forma esse núcleo está no conteúdo da fala ou da opinião, e se esse conteúdo pode justificar-se racionalmente como uma crítica dentro de uma justa medida que é imposta pelo conteúdo e alcance do direito à liberdade de expressão. Se os limites desse direito são em muito extrapolados (como no caso presente), não se justifica um regime de discrímen, retirando da pessoa conhecida o direito à proteção de sua honra, intimidade e dignidade. É necessário destacar, pois, que como sucede em qualquer regime jurídico de discrímem, deve haver uma razão justa que legitime esse regime excepcional, o que não se dá neste caso, porquanto não se pode caracterizar a entrevista concedida pelo réu, no trecho em que se refere à pessoa da autora, como o exercício de uma mera crítica como alega o réu, senão que se configura, “quantum satis”, ter havido de parte do réu uma inequívoca ofensa à honra, dignidade e intimidade da autora, evidenciando-se que o réu sobre-excedeu quaisquer limites que poderiam caracterizar a essência e a natureza de uma crítica.
Nessas circunstâncias, suprimir da autora o direito à proteção legal de sua honra, intimidade e dignidade apenas porque é uma artista, seria impor-lhe um gravame totalmente injustificado, como se fosse justificado aplicar-lhe uma absoluta “capitis deminutio” no que diz respeito ao importante ao regime de proteção constitucional que é conferido quanto à intimidade, honra e dignidade de qualquer pessoa no Brasil.
A propósito em especial desse regime jurídico-constitucional de proteção, é necessário observar que devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, a tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas do Direito Civil. Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
E o aplicar normas constitucionais como imperativos de tutela em face do conteúdo e alcance de normas do Direito Civil conduz a que se considere nomeadamente a questão do dever de proteção estatal consoante a doutrina firmada pelo mesmo CLAUS-WILLELM CANARIS, que enfatiza que não se trata de considerar as normas constitucionais como se irradiassem efeitos indiretos sobre as relações de natureza jurídica privada, mas sim como imperativos de tutela que devem garantir um proteção razoável aos direitos privados, havendo por se reconhecer, portanto, que há um dever de proteção que objetiva garantir a eficácia dos direitos privados, cabendo ao Estado, por meio do Poder Judiciário, implementar essa proteção, seja pela via da reparação civil, seja pela punição de natureza penal.
É por meio da aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade, designadamente pela ponderação entre os interesses em conflito em um caso em concreto, que se analisa se o dever de proteção deve ou não ser aplicado, o que passa pela extração do conteúdo dos direitos subjetivos envolvidos em um conflito de interesses, percorrendo-se um iter lógico, cuja primeira etapa cognitiva radica no definir se existem ou não os direitos subjetivos invocados.
Com efeito, o réu invoca o direito de liberdade de expressão e de crítica para contrastar o direito subjetivo da autora quanto à proteção de sua honra, intimidade e dignidade, o que torna necessário perscrutar se esses dois direitos subjetivos existem; e, se existirem, qual posição jurídica deve prevalecer, apuradas as circunstâncias do caso em concreto.
Quanto ao direito subjetivo que a autora invoca, revela-se ele indisputável, porquanto o artigo 5º., inciso X, da Constituição de 1988, garante e protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, erigindo-os como um direito individual de matriz constitucional, contando com a proteção que é fixada por normas do Direito Civil e Penal. Esses direitos formam, segundo a denominação que é empregada pelo conhecido constitucionalista brasileiro, JOSÉ AFONSO DA SILVA, o “direito à privacidade”, que, segundo ele, abarca todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p,. 183, RT).
E, na esteira do consagrado constitucionalista, a privacidade há que ser entendida como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem isso poder ser legalmente sujeito” (obra mencionada, p. 183). Destarte, a proteção à esfera de inviolabilidade do indivíduo deve abranger o “modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo” – como enfatiza JOSÉ AFONSO DA SILVA.
Inquestionável, portanto, que a autora possui a proteção jurídico-constitucional que lhe é conferida em extensão tal que abarca todos os fatos e dados que são ínsitos à sua vida privada e profissional, como também à sua imagem, tanto pública, como privada.
Quando alguém expõe ou divulga fatos da vida íntima de alguém, sem autorização de seu titular, viola o direito à privacidade, como fez o réu, que ao revelar em uma entrevista (e sobretudo em uma entrevista que contou com expressiva audiência), um fato que é da ordem da exclusiva intimidade da autora, violou-lhe o direito subjetivo de privacidade, não sendo de molde que escuse essa conduta trate-se a autora de uma pessoa conhecida ou ainda que se trate de um fato verdadeiro ou não, porque sobreleva considerar que esse fato está inserido na proteção jurídica à intimidade da autora, cabendo apenas à autora a decisão soberana de o divulgar ou não – e é exatamente por isso que se revela impertinente a prova testemunhal que o réu quer produzir, porque se trata da prova de um suposto fato que é ínsito à intimidade da autora, e como tal protegido constitucionalmente, interessando apenas à autora e estando apenas sob seu alvedrio o divulgar ou não.
Independentemente de a autor ser uma pessoa conhecida ou não, o fato que o réu divulgou ao conhecimento público é um fato que está abrangido pelo direito à privacidade, cuja única titular é a autora, e a ela negar essa proteção jurídica, apenas porque se trata de uma pessoa famosa, é colocar a sua proteção aquém de um mínimo razoável.
Importante enfatizar que o direito de liberdade de expressão que a Constituição de 1988 confere não se configura quando a opinião ou a crítica avança sobre fato que diz respeito à esfera de intimidade de outrem, designadamente quando a divulgação de um suposto fato surge em um contexto marcadamente ofensivo, como o que se revela presente na entrevista que o réu concedeu. A liberdade de expressão, que a Constituição de 1988 a todos garante, é de ser exercida dentro de limites razoáveis inerentes a exprimir uma opinião, e a conduta do réu sobre-excedeu, em muito, tais limites.
Destarte, não há o direito subjetivo que o réu invoca quanto à liberdade de expressão, diante do tom e sentido marcadamente ofensivos de que se utilizou ao se referir à vida pessoal e profissional da autora, caracterizando-se, portanto, ato ilícito.
Daí decorre que inexiste conflito entre direitos neste caso, porque o único direito que se configura e que merece toda a proteção jurídica é o direito à privacidade que é reconhecido em favor da autora, vítima de grave ofensa pública praticada pelo réu, que se valeu de um programa com expressiva audiência para alcançar seu objetivo, que era o de ofender a vida pessoal e profissional da autora.
Ratifico, pois, o conteúdo do que decidido as folhas 38/44, destacando que há prova suficiente a demonstrar que o conteúdo da entrevista concedida pelo réu tivera uma finalidade ofensiva e de toda injustificada, menoscabando a autora em importantes predicados pessoais e profissionais, demonstrando o réu, outrossim, um evidente escárnio quando, além das ofensas que fazia, explicitava não ter qualquer receio de que viesse a ser processado novamente pela autora, revelando ainda mais fortemente o caráter ofensivo que era seu único objetivo naquele trecho de sua entrevista.
De maneira que é procedente a pretensão, cominando ao réu a obrigação fixada nos exatos termos da decisão de folha 43, inclusive quanto ao patamar da multa ali fixada, que, de resto, revelou-se azado em razão de não se ter notícia de que o réu tenha recalcitrado, o que demonstra que a finalidade da multa está sendo atendida.
É procedente também o pedido cumulado: o da reparação por dano moral, dado o caráter marcadamente ofensivo. A reparação por dano moral, em casos como este, não tem e nem deve ter uma relação imediata com uma ideia patrimonial. Assim, fixo a reparação por dano moral em R$100.000,00 (cem mil reais), condenando-se o réu a pagar esse valor à autora, com incidência de correção monetária a partir desta data, adotados para esse cômputo os índices da Tabela Prática do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, incidindo também juros de mora a contar da citação e calculados segundo o artigo 406 do Código de Processo Civil. Justifico que se imponha uma condenação em um valor que não é usual em ações desta natureza, porque se há considerar sobretudo o universo do público atingido pela entrevista, tendo a autora comprovado que o vídeo da entrevista do réu foi visto por mais de oitocentos mil pessoas, elemento que obviamente deve ser utilizado como critério na quantificação do valor da reparação por dano moral.
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTES os pedidos, de forma que, reconhecido existir ato ilícito e praticado pelo réu, condeno-o a reparar o dano moral suportado pela autora nas circunstâncias retratadas nos autos, dano moral que é da ordem de R$100.000,00 (cem mil reais), com incidência de correção monetária e juros de mora, condenando-se o réu, outrossim, nos exatos termos da decisão proferida as folhas 43/44, inclusive quanto à multa para a hipótese de recalcitrância quanto ao provimento cominatório, transmudando em tutela provisória de urgência de natureza antecipada aquela que fora concedida sob a feição cautelar. Assim, este processo é extinto, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Condeno o réu no reembolso à autora do que esta despendeu com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária desde o respectivo desembolso. Condeno o réu também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, devidamente corrigido.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 13 de agosto de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO