ELEVAÇÃO DE ALÍQUOTA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA APLICADA AOS SERVIDORES DA PREFEITURA DE SÃO PAULO.

INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL 17020/2018, POR OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA VEDAÇÃO AO CONFISCO”.

Os servidores públicos do município de São Paulo passaram a suportar, por força da entrada em vigor da Lei de número 17.020/2018, a alíquota de 14% (catorze por cento), a título de contribuição previdenciária incidente sobre a totalidade de sua remuneração, de modo que se analisa aqui se a imposição dessa alíquota (que antes da referida lei era de 11%) é constitucional, o que significa dizer que se a analisará sob dois enfoques diferentes, embora em ambos esteja presente um exame da questão sob o aspecto da capacidade contributiva do sujeito passivo da exação.

                   Como se sabe, a partir de 2017 a União Federal, instituindo um “regime de recuperação fiscal”, ao qual estados-membros e municípios poderiam aderir, impôs como condição que os entes públicos devedores da União elevassem a alíquota da contribuição previdenciária que cobram de seus servidores públicos. Assim é que Estados como o do Rio de Janeiro, e alguns municípios, editando lei, elevaram de 11% para 14% a alíquota da contribuição previdenciária. O município de São Paulo, em 2018, editando a Lei 17.020, fez o mesmo.

                   Importante lembrar que, em 1999, o governo Fernando Henrique Cardoso editara lei prevendo o aumento da alíquota da contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração dos servidores públicos, e a matéria foi examinada pelo Supremo Tribunal Federal, que por acentuada maioria de votos (9×2), reconheceu que a elevação da alíquota, no patamar proposto pelo governo federal, configurava um confisco, nomeadamente com base no argumento de que a soma entre o que o servidor público passaria a suportar com a nova alíquota da contribuição previdenciária e o que também suportaria a título de imposto de renda, a soma, pois, desses dois tributos chegaria a 47% (quarenta e sete por cento) da remuneração, e que isso caracterizaria o confisco, de modo que a modificação da alíquota foi àquela ocasião declarada inconstitucional.

                   Dissemos, ao início, que se analisaria aqui a elevação da alíquota de 11% para 14% a título de contribuição previdenciária sob dois enfoques diferentes. De fato, a análise deve se dar em face do princípio da igualdade, que, no caso de tributos, tem base no artigo 145, parágrafo 1º., da Constituição de 1988. Textualmente:

“§1º  Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

                                      O outro aspecto a ser examinado diz respeito ao princípio que veda o confisco em matéria tributária, que constitui expressa limitação que a Constituição de 1988 impõe ao poder de tributar, consoante está previsto no artigo 150, inciso  IV.

                                      Mas é de se enfatizar que esses dois aspectos de abordagem têm um ponto em comum, pois como observou ALIOMAR BALEEIRO:

Em razão de partirem da capacidade econômica, os dois princípios devem levar em conta os gastos necessários à aquisição e manutenção da renda e do patrimônio do contribuinte e de sua família, dados esses variáveis e pessoais. Mas um deles, o que veda o confisco, não compara para verificar se certo grau de justiça material foi razoavelmente incorporado pelo legislador”. (cf. “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, p. 538, 7ª. edição, Forense editora).

                                      Iniciaremos a análise acerca da constitucionalidade da majoração da alíquota instituída pela referida Lei municipal sob o aspecto do princípio da igualdade, o que equivale a dizer que se deve perscrutar se a alíquota elevada a 14% a título de contribuição previdenciária atende à garantia de que deva ser, a princípio, idêntica àquela aplicada a todo o conjunto de servidores públicos brasileiros, ou no caso de um discrímem, que um razão justa autorize uma alíquota diferente e maior, ou seja, que o sacrifício que se está a impor aos servidores da Prefeitura de São Paulo em decorrência de uma alíquota superior (ora de 14% sobre a sua remuneração mensal), deva ser considerado justo conforme as circunstâncias da realidade material subjacente. Perceberá o leitor que chegamos ao princípio constitucional da proporcionalidade, que, aliás, também será aplicado quando estivermos a considerar a matéria sob o enfoque do princípio que veda o confisco.

                                      Quando a Constituição da República de 1988 criou como uma categoria autônoma a “capacidade econômica do contribuinte” (artigo 145, parágrafo 1º.), ela, sem dúvida,  fez instituir uma “justiça tributária”, a impor ao intérprete considere sempre se a carga tributária imposta ao contribuinte pode ser considerada “justa”, ou seja, se o sacrifício que se lhe está a impor por meio de tributo é adequada e razoável,  conforme não apenas à sua própria capacidade econômica, mas também a outros aspectos, como, por exemplo, se o tributo está a ser exigido de todas as pessoas que estão na mesma condição jurídica, se o Poder Público não está a conceder isenções e favores, desobrigando de suportar a exação a quem não deveria desobrigar, o que implicando em perda de receita tributária gera, por óbvio, um aumento da carga de sacrífico daquele suportado pela exação. Destarte, quando se impõe um aumento de alíquota de um determinado tributo, todos esses aspectos devem ser sopesados pelo intérprete, conforme se lhe exige o princípio constitucional da isonomia, aplicado em matéria tributária.

                                      O aumento da alíquota da contribuição previdenciária, previsto na mencionada Lei, decorre indubitavelmente do objetivo da Prefeitura de São Paulo de satisfazer a condição que a União Federal impôs a todos os entes públicos que queiram se beneficiar do regime de recuperação fiscal, de modo que, contando com a ajuda da União Federal, a Prefeitura consiga fazer frente a um déficit orçamentário, que para o ano de 2018, superou um bilhão e quinhentos milhões de reais (apenas quanto ao déficit primário, ou seja, as receitas geradas por tributos de sua competência normativa). Assim, resulta evidente que a majoração da alíquota da contribuição previdenciária foi engendrada como uma forma de poder a Prefeitura de São Paulo atender à condição exigida pela União Federal, e com isso beneficiar-se do regime de recuperação fiscal.

                                      Mas é justo impor aos servidores um aumento na carga de sacrifício, fazendo com que suportem uma contribuição previdenciária que já era cobrada em patamar que não é baixo (de 11%),  que de resto é  o patamar máximo cobrado por outros entes públicos, para com a elevação da alíquota  gerar receita, diminuindo um rombo orçamentário gerado pelo próprio município? Evidentemente que não, sobretudo quando não cuidou a Prefeitura de São Paulo de realizar uma detida e minuciosa análise do que formam seus gastos, para explicitar quais são esses gastos, tudo para demonstrar  que, a despeito de a elevação da alíquota da contribuição previdenciária afetar diretamente a capacidade econômica de seus servidores, essa elevação da alíquota poderia justificar-se nas circunstâncias da realidade material subjacente.

                                      Contudo, não há na referida Lei municipal, a qual de resto cuida apenas de um regime jurídico de “previdência complementar”, nenhuma justificativa razoável à elevação da alíquota. Tivesse o município de São Paulo demonstrado por meio de cálculos atuariais e outros importantes dados financeiros e econômicos, e nesse caso  poder-se-ia ponderar as razões e motivos do Poder Público, em cotejo  com a garantia constitucional que é conferida ao sujeito passivo da exação no que toca à sua capacidade contributiva.  Mas conforme ficou dito, a Lei em questão não trata de nenhum daqueles aspectos, a bem evidenciar que não os levou em conta, quando deles deveria ter cuidado com atenção – com a atenção exigida em face de um direito fundamental que o contribuinte possui, de somente suportar uma carga tributária que se revele razoável e justa.

                                      O exame da capacidade contributiva também nos leva ao exame do aspecto relacionado ao confisco, porque a exemplo do que havia por suceder se a elevação da alíquota proposta em 1999 pelo governo federal tivesse conseguido fazer medrar, isto agora vem de ocorrer, porque a carga tributária que os servidores públicos da prefeitura de São Paulo passaram a suportar, depois que elevada a alíquota da contribuição previdenciária, supera um nível razoável, chegando próximo a 50% (cinquenta por cento), se somarmos o que passaram a pagar a título de contribuição previdenciária ao que já suportaram por força do imposto de renda, a bem caracterizar que a elevação da alíquota, implementada pela Lei 17.020, caracteriza evidente confisco, afetando, sem qualquer razão que o justifique, a renda dos servidores públicos do município de São Paulo, afetada em um nível bastante alto.

                                      A Constituição de 1988, em seu artigo 150, inciso IV, nos moldes em que diversas constituições fazem, acertadamente não estabelece um critério  para que se reconheça a existência de confisco em matéria tributária, concedendo ao juiz o poder de interpretar o caso em concreto, para poder decidir se o confisco caracteriza-se ou não. A aplicação do princípio da proporcionalidade, nomeadamente pela ponderação de interesses como forma de controle judicial, é aqui azado instrumento a adotar-se.

                                      Em casos extremos, como, por exemplo, quando a lei fixa uma alíquota de 100% (cem por cento) sobre o valor de um bem ou de um rendimento, não haverá dúvida de que o confisco estará caracterizado, salvo em situação excepcional, quando a finalidade do tributo for para se alcançar um fim extrafiscal.  Mas esse tipo de situação não é comum, sendo mais frequente ao juiz deparar-se com alíquotas não tão absolutas como essa (de 100%). Mas não há dúvida de que, afora o caso em que o tributo for aplicado com efeito extrafiscal, uma carga tributária de 50% sobre a renda que o sujeito passivo aufere deverá ser caracterizada como confisco, tal como reconheceu o Supremo Tribunal Federal em 1999.

                                      Com a elevação da alíquota da contribuição previdenciária, de 11% para 14%, e somado com o que suporta a título de imposto de renda, o servidor público dos quadros da Prefeitura de São Paulo está a sofrer uma carga tributária de aproximadamente cinquenta por cento sobre sua renda mensal, de modo que da renda mensal que esse servidor recebe quase metade dela será transferida, por meio de tributos, ao tesouro público, o que evidentemente configura o confisco.

                                      É certo que a Constituição de 1988 não fixa uma determinada alíquota que deva ser observada pelos entes públicos no instituírem contribuição previdenciária sobre a remuneração de seus servidores, como também não há uma limitação de alíquota, o que poderia conceder aos entes públicos o poder de fixarem a alíquota que entendessem adequada. Mas isso desde que a alíquota não possa caracterizar confisco. Destarte, como os servidores da prefeitura de São Paulo já suportaram a contribuição previdenciária no patamar de 11% (onze por cento), que é o patamar adotado pela imensa maioria dos estados-membros e municípios brasileiros, e que é o patamar que o Supremo Tribunal Federal, em 1999, reconheceu como razoável, não havia, como não há espaço de liberdade e de discricionariedade que legitime  a elevação da alíquota da contribuição previdenciária, elevação que é declarada como inconstitucional, seja pela violação ao princípio da igualdade, seja pela violação ao princípio da vedação ao confisco, seja sobretudo em função de se dever garantir eficazmente a capacidade contributiva de que está a suportar a exação.

                                      Como afirma THOMAS PIKETTY: “A tributação não é somente uma maneira de fazer com que os indivíduos contribuam para o financiamento dos gastos públicos e de dividir o ônus disso da forma mais justa possível; ela é útil, também, para identificar categorias e promover o conhecimento e a transparência democrática”. Mas isso somente pode ocorrer quando se respeitem as garantias fundamentais do contribuinte, o que passa pela atenta análise da capacidade contributiva sob os aspectos da isonomia e da vedação ao confisco.