Direito a um processo justo

Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

 

Embora tenha entrado em vigor em 2009, a lei 12.153, a lei que instituiu o juizado especial de fazenda pública, tem enfrentado problemas decorrentes de uma equivocada interpretação de parte de uma grande quantidade de juízes.

 

Um dos aspectos olvidados diz respeito ao direito a um processo justo, que vem sendo indevidamente sacrificado quando se permite que uma causa seja processada em um inadequado sistema processual, recebendo uma sentença de improcedência quanto ao mérito da pretensão, porque o juiz não autoriza, nem pode autorizar a produção de determinado tipo de prova.

 

Importante ressaltar que, no sistema do juizado especial de fazenda pública, a coisa julgada material forma-se com a mesma essência e dimensão  do que acontece nas ações que se processam sob o Código de Processo Civil de 2015, o que significa dizer que, declarado improcedente o pedido e em se formando a coisa julgada material, o autor não pode mais discutir a matéria.

 

Daí a especial atenção que o juiz deve dedicar ao direito a um processo justo, o que o obriga a zelar pela observância quanto ao sistema processual que esteja sendo adotado, advertindo o autor, em momento oportuno, que a causa poderá receber uma decisão de extinção anormal, diante da limitação cognitiva ou probatória do sistema processual.

 

Na prática, contudo, o que se vem observando é um frequente descaso nesse tipo de análise. Demandas são mantidas em um inadequado sistema processual, e o que é pior, em lugar de receberem uma sentença de extinção anormal, recebem uma sentença em que se analisa o mérito da pretensão, quando isso não poderia ocorrer em face da limitação cognitiva ou probatória do sistema adotado, fazendo gerar contra o autor a coisa julgada material.

 

Reproduzo aqui sentença proferida em uma situação dessas. O autor buscava obter um benefício de caráter assistencial (direito ao auxílio-aluguel), e a controvérsia fática tornou-se significativa, quando o Poder Público alegou não haver prova quanto a existir uma vulnerabilidade financeira do autor. Essa questão fática impunha a necessidade da produção de prova pericial, que, pelas circunstâncias de seu objeto, não poderia se limitar a um mero exame técnico – e o processo foi extinto anormalmente, por inadequação instrumental (de sistema processual), o que permite que o autor busque, por azado sistema, que a sua pretensão possa ser examinada quanto a seu mérito. Essa solução atende ao direito a um processo justo, na medida em que não suprime o autor de buscar a tutela jurisdicional por adequado sistema processual.

 

“Conforme enfatizado a folha 47, a esta demanda deve-se aplicar o conjunto de regras e princípios estatuídos pela lei federal 12.153/2009.
Nesse contexto, é de rigor observar-se que se revelou na demanda aquilo que antes se lobrigara: uma significativa complexidade fática, para o desimplicar da qual se mostra indispensável produzir prova pericial, por uma modalidade que não pode se limitar a um mero exame técnico. Com efeito, o autor, ele próprio, tratou de requerer que se realize um estudo social, pelo qual se apure a sua condição financeira, bem assim das pessoas com as quais o autor reside, de modo que se confirme, se o caso, existir ou não uma situação de vulnerabilidade financeira. Importante enfatizar, como já se fizera antes no início desta ação, que a simplicidade, princípio nuclear neste específico sistema processual, impõe determinadas limitações, sobretudo quanto aos meios de prova, que não são todos aqueles que se podem adotar para ações regidas por outros sistemas processuais. A prova pericial, em especial, somente pode ser produzida sob a forma de um mero exame técnico, porque é essa a única modalidade em que a simplicidade possa ser atendida, e a compasso com ela, a celeridade no julgamento da causa.
Tenha-se em conta, sobretudo, que o autor possui o direito a um processo justo, e seria sacrificar injustamente esse direito manter-se a demanda que ajuizou em um sistema processual que não lhe permitirá produzir a prova de que necessita, para comprovar o fato constitutivo do direito que invoca. Ressalte-se que a cognição que se realiza neste sistema processual é exauriente, no sentido de que, formada a coisa julgada material, ela obsta que a pretensão seja discutida noutra ação.
Tudo considerado, este sistema processual é inadequado ao exame do mérito da pretensão, e por isso este processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, nos termos do artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil, por inadequação de ação (rectius: sistema).
Sem condenação em encargos de sucumbência.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença”.