COVID E PLANO DE SAÚDE. COBERTURA CONTRATUAL

CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE. COBERTURA INTEGRAL A TRATAMENTO MÉDICO PRESCRITO PARA GRAVE QUADRO CLÍNICO, DECORRENTE DE COMPLICAÇÕES DA COVID-19. ALEGAÇÃO DA OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE DE QUE NÃO HOUVE NEGATIVA À COBERTURA CONTRATUAL. GLOSA NA CONTA HOSPITALAR QUE, SÓ POR SI, COMPROVA A NEGATIVA À COBERTURA CONTRATUAL.
AUSÊNCIA DE CONTROVÉRSIA FÁTICA SOBRE A EXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO PARA A INTERNAÇÃO. TRATAMENTO MÉDICO REALIZADO EM HOSPITAL DA REDE CREDENCIADA.
RELAÇÃO JURÍDICO-MATERIAL QUE SE DISTINGUE EM FACE DE SEU OBJETO – A PROTEÇÃO À SAÚDE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 196 DA CF/1988 COMO MATERIAL HERMENÊUTICO. GARANTIA AO PACIENTE DO ACESSO AO MELHOR TRATAMENTO MÉDICO POSSÍVEL, SOBRETUDO EM SITUAÇÃO DE URGÊNCIA. PREVALÊNCIA DA POSIÇÃO JURÍDICO-CONTRATUAL DO USUÁRIO DO PLANO, E QUE FOI OBRIGADO A ARCAR JUNTO AO HOSPITAL COM O PAGAMENTO DE TERAPIAS, EXAMES E INSUMOS GLOSADOS EM RAZÃO DE UMA INDEVIDA NEGATIVA DE COBERTURA CONTRATUAL PELA RÉ. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE QUE, NO CASO EM QUESTÃO, É DE SER CONSIDERADO COMO DE PROTEÇÃO, CONSIDERADA A GRAVIDADE DO QUADRO CLÍNICO DO AUTOR E A URGÊNCIA NO TRATAMENTO MÉDICO A QUE FOI SUBMETIDO.
MANTIDA A SENTENÇA QUE, JULGANDO PROCEDENTE O PEDIDO, CONDENOU A RÉ NO REEMBOLSO INTEGRAL DOS VALORES DESPENDIDOS PELO AUTOR COM O TRATAMENTO MÉDICO.
RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MAJORADOS.

RELATÓRIO
(…), invocando a validez e eficácia de um contrato de plano de saúde celebrado com a ré, (…), sustenta que, em se tratando de um contrato de plano de saúde, deve-se considerar a cobertura contratual de modo que lhe propicie o tratamento médico adequado a seu quadro de saúde, à época dos fatos em muito agravado em decorrência de complicações advindas do contágio da Covid-19, que levou o autor a permanecer longo período internado (de 16/04/2021 a 27/05/2021), inclusive na UTI, com quadro de “dessaturação importante”, insuficiência respiratória grave e dependente de ventilação mecânica, o que a ré, contudo, desconsiderou, quando, embora tenha autorizado a internação em hospital credenciado a sua rede, glosou indevidamente da cobertura contratual o custeio de determinados exames, insumos e terapias prescritos durante o período de internação do autor, conforme fatura emitida pelo nosocômio, argumentando o autor que se deve considerar como injustificada a recusa pela ré ao custeio de tais despesas, buscando obter, pois, provimento jurisdicional para que se declare existir a cobertura contratual, obrigando-se a ré a reembolsar-lhe o valor despendido com o tratamento médico, com incidência de correção monetária e dos juros de mora.
A r. sentença, reconhecendo o dever jurídico-legal da ré em custear o tratamento a que o autor submeteu-se, julgou procedente o pedido, condenando-a a reembolsar ao autor a importância por ele despendida, no montante de R$ 24.345,62 (vinte e quatro mil trezentos e quarenta e cinco reais e sessenta e dois centavos), com atualização monetária desde o respectivo desembolso, e acrescido de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação.
Recurso de apelação interposto pela ré, que pede a reforma da r. sentença para que seja afastada a obrigação quanto à restituição de valores, fundamentando sua pretensão recursal com base na alegação de que não houve negativa de cobertura ao tratamento a que o autor fora submetido, e que em momento algum recebera solicitação quanto ao reembolso.
Recurso tempestivo, preparado e respondido.

FUNDAMENTAÇÃO
Registre-se, à partida, que as partes não divergem sobre os documentos colacionados aos autos para o fim de comprovar o custeio de determinados exames, insumos e terapias prescritos e empregados durante o período que o autor permaneceu internado, inclusive em UTI, para o tratamento de grave quadro de saúde em decorrência de complicações advindas do contágio da Covid-19. De resto, a documentação apresentada pelo autor, ora apelado, constituída por relatório médico, notas fiscais eletrônicas e recibo, confirma o tratamento, a cobrança que lhe foi direcionada pelo nosocômio, com a discriminação de todos os itens faturados (insumos, exames, terapias e honorários médicos), e, por fim, o desembolso do valor a que a peça inicial refere-se.
Igualmente não divergem as partes a respeito de a internação do autor ter sido autorizada pela ré e efetivada em hospital pertencente a sua rede credenciada – e esse aspecto, por certo, é deveras relevante para a conclusão que se seguirá.
Com efeito, a compasso com a inafastabilidade da garantia de acesso à tutela jurisdicional adequada e efetiva que constitucionalmente é assegurada ao autor, o que, só por si, desconstituiria como óbice a que o autor tivesse o mérito de sua pretensão apreciada em juízo a necessidade de que demonstrasse a existência de prévia solicitação à ré no âmbito administrativo, muito menos de que tivesse essa pretensão sido por ela efetivamente resistida por meio da negativa expressa à cobertura contratual do tratamento prescrito, os fatos tal como expostos, tanto na petição inicial, como na sucinta defesa apresentada pela ré, somados à prova documental produzida por ambas as partes, permitem, infenso a qualquer dúvida, concluir que realmente houve a negativa de custeio, pela ré, de determinados exames, insumos, terapias prescritos e empregados durante o período de internação do autor.
Isso porque, como destacado, além de não haver controvérsia a respeito, a existência de autorização da ré para a internação do autor encontra-se sobejamente comprovada pelo documento de fls. 56/58, e as partes igualmente não divergem sobre essa internação ter sido efetivada em hospital pertencente à rede de credenciados da ré.
Somando-se a isso, temos ainda que, além dos relatórios médicos juntados as fls. 33/35, que descrevem detalhadamente o tratamento a que o autor submeteu-se em referido nosocômio, as notas fiscais digitalizadas as fls. 37/39 discriminam exatamente os insumos, as terapias e os exames prescritos e empregados no tratamento do autor, não se revelando crível que a cobrança dos valores que nelas estão estampados tivesse sido direcionada ao autor por um equívoco do hospital, quando o autor, beneficiário de plano de saúde operado pela ré, tinha tido a sua internação autorizada no mesmo nosocômio, o qual por ser credenciado à rede da ré era habituado aos procedimentos necessários à emissão de autorizações de custeio não só junto à apelante, mas a outras operadora que junto a ele atuam.
As cobranças foram, assim, direcionadas ao autor porque a ré da cobertura contratual glosou os itens faturados, como se deve concluir diante das circunstâncias da realidade material subjacente. Assim não fosse, não teria a ré se insurgido contra a pretensão.
Importante observar que a demanda diz respeito a um conflito entre posições jurídicas que se instalou no bojo de um contrato de plano de saúde, em que há uma particularidade que distingue esse tipo de contrato, que, conquanto regido por normas infraconstitucionais que formam diplomas legais como são o Código Civil e as normas de regulação emanadas da ANS – Agência Nacional de Saúde, é nomeadamente regido esse específico tipo de contrato por uma norma que possui matriz constitucional: a do artigo 196 da Constituição de 1988, de modo que ao julgamento de demandas em que se discute acerca da cobertura contratual em plano de saúde, a referida norma constitucional atua como um importante material hermenêutico. E sob esse prisma, pois, que se deve examinar o que decidiu a r. sentença.
Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidas nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica do autor não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevalecesse a liberdade contratual em favor da ré, quando invoca a exclusão do custeio do tratamento prescrito, notadamente para as hipóteses em que procedimentos ou medicamentos não façam parte de conhecido rol estabelecido em ato normativo da agência reguladora (ANS).
Essa é a análise que é de ser feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem as partes.
Importante destacar, mais uma vez, que a documentação apresentada com a peça inicial não foi objeto de controvérsia nos autos, dado que a ré, tanto em sua contestação quanto nas razões do recurso de apelação em julgamento, não a contrastou; e essa documentação, de resto, demonstra cabalmente a realização dos procedimentos médicos.
Digno de nota que a Ciência Médica tem evoluído de modo considerável nos últimos tempos, descobrindo e revelando novos medicamentos, procedimentos e técnicas, inclusive de diagnóstico, cuja eficácia vem sendo confirmada por consistentes estudos científicos, publicados em autorizadas revistas científicas. Surgem, portanto, com acentuada frequência, novas descobertas na área da Medicina, que passam a ser incorporadas aos tratamentos médicos, tão logo os estudos são publicados nessas revistas científicas, fonte de consulta frequente pelos médicos em geral, que, conhecendo desses estudos, adotam novos medicamentos, materiais e novéis procedimentos no tratamento de seus pacientes.
Impor ao paciente que se submeta, sem mais, ao conhecido rol de procedimentos da agência reguladora, negando a cobertura contratual, quando o médico que preside o tratamento prescreve determinado tratamento como indispensável ao controle de um quadro grave de saúde, como sucedeu no caso, é colocar a esfera jurídica do paciente (usuário do plano de saúde) aquém de uma proteção mínima razoável.
A Ciência Médica não é, obviamente, uma ciência estática, senão que mui dinâmica, aspecto que sempre deve ser considerado quando se interpretam normas que prevejam a cobertura contratual, pensadas e firmadas essas normas em um determinado tempo e para um determinado estágio da Medicina, sem poder legitimamente obstar que se incorporem, e que se devam incorporar novas técnicas e procedimentos médicos, quando comprovadamente eficazes. A intepretação de normas desses tipos de contrato deve ser feita nomeadamente considerando esse imanente aspecto ditado pela evolução científica.
O artigo 196 da Constituição de 1988 garante, pois, ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas. Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam as partes contratantes.
Destarte, havendo um procedimento, exame, medicamento ou material que tem sido prescrito, comprovada sua eficácia, tanto assim que indicados por orientação médica, daí resulta que, desobrigar a ré de propiciar ao autor o acesso a esse tratamento é colocar a esfera jurídica desse paciente aquém de uma proteção jurídica mínima e razoável, o que, sobre não se harmonizar com o espírito e finalidade do contrato firmado entre as partes (que é o de propiciar o melhor tratamento médico disponível), desconsidera que essa proteção, porque imposta pelo artigo 196 da Constituição da República, constitui um imperativo de tutela, associado como deve ser ao princípio de uma proteção jurídica mínima.
Cumpre registrar que a negativa de cobertura sequer poderia amparar-se em um ato normativo emanado da agência reguladora. Para tanto, duas ordens de argumentos devem ser aqui consideradas.
O primeiro argumento é de que não cabe à ANS estabelecer, com força normativa incidente sobre contratos, quais tratamentos médicos, materiais e medicamentos podem ou não ser excluídos automaticamente. Se olharmos com a atenção devida ao que estatui a lei federal 9.961/2000, sobretudo a seus artigos 3º. e 4º., veremos que a ANS avança indevidamente além de suas atribuições institucionais quando define que determinado procedimento não possa, em um caso específico, estar ou não abarcado na cobertura de um contrato de plano de saúde. Suas funções institucionais são outras, e aliás buscam manter um equilíbrio entre consumidores e as operadoras do plano de saúde, sem poder interferir diretamente em favor de uma ou outra posição contratual. De resto, o interesse público não justificaria uma intervenção dessa natureza sobre um contrato de natureza privada.
O segundo argumento é de que ainda que autorização legal houvesse à ANS para, normativamente, regular que medicamentos e procedimentos podem, de modo geral, ser excluídos, isso não poderia, como não pode elidir a análise do caso em concreto, ou seja, a análise das cláusulas contratuais, as quais, como ora se enfatiza, devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com imperativos de tutela, atuando estes como importante material hermenêutico. E por óbvio, a ANS deve se curvar a normas constitucionais, tanto quanto as operadoras do plano de saúde.
Com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor do autor seja tratado de acordo com a melhor técnica médica possível, e dentro da cobertura contratual.
De relevo observar que o egrégio Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria de votos, mas sem dotar de efeito vinculante a sua decisão, que a lista de procedimentos fixada pela agência reguladora é, em tese, taxativa, com o que aquele Tribunal de superposição quis enfatizar que se devam considerar as circunstâncias de cada caso em concreto, cabendo aos juízes e tribunais ponderar as posições jurídicas em conflito com base nessas circunstâncias e são elas que, efetivamente, permitem definir qual a posição jurídica que deve prevalecer, e qual aquela que deverá, no caso em concreto, ser sacrificada, em uma análise que deve levar em consideração sobretudo a gravidade da doença e a urgência no procedimento prescrito.
Destarte, a r. sentença, com inteira razão, reconheceu ao apelado o direito de reembolsar-se do que despendera para o custeio do referido tratamento, devendo prevalecer, pois, a condenação que impõe à apelante no pagamento ao apelado quanto ao valor indicado, com a incidência de correção desde o momento do desembolso dos valores, e também dos juros de mora, contados, como devem ser, desde a citação, encargos corretamente fixados na r. sentença.
Ante o exposto, com o acréscimo dos fundamentos expostos, mantenho a r. sentença para, assim, negar provimento ao recurso de apelação interposto pela ré.
Mantenho igualmente a condenação dos encargos de sucumbência tal como feita na r. sentença, cuidando apenas de, por força do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015, majorar os honorários de advogado, agora elevados a 12% (doze por cento) sobre o valor da condenação, devidamente corrigido.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
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