Processo número 1023283-12.2019
3ª. Vara do Juizado Especial de Fazenda Pública desta Capital
Vistos.
Servidor público municipal, o autor passou a suportar, por força da entrada em vigor da Lei – SP de número 17.020/2018, a alíquota de 14% (catorze por cento), a título de contribuição previdenciária incidente sobre a totalidade de sua remuneração, de modo que se analisa aqui se a imposição dessa alíquota (que antes da referida lei era de 11%) é constitucional, o que significa dizer que se a analisará sob dois enfoques diferentes, embora em ambos esteja presente um exame da questão sob o aspecto da capacidade econômica do autor, sujeito passivo da exação.
Concedida a tutela provisória de urgência de natureza cautelar, cuja eficácia subsiste, não havendo, até a presente data, notícia quanto ao julgamento do recurso de agravo de instrumento interposto pela ré, MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO.
Citada, a ré contestou, requerendo de primeiro que se faça suspender o trâmite desta ação em cumprimento ao que decidiu o Supremo Tribunal Federal em incidente de repercussão geral. Argumenta, outrossim, com o existir ação coletiva, de modo que esta ação individual, cuja causa de pedir e cujo pedido são idênticos ao daquela, deve ser suspensa. E quanto ao mérito da pretensão, defendeu a constitucionalidade da Lei Municipal – SP de número 17.020/2018, que ao reformar o sistema de previdência dos servidores públicos da Prefeitura de São Paulo, majorou validamente a alíquota da contribuição previdenciária, com o objetivo de diminuir o “grave déficit” do sistema de previdência municipal.
Nesse contexto,
FUNDAMENTO e DECIDO.
Analisemos, inicialmente, se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário com agravo, sob número 875.958-GO, em que se determinou a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a majoração de alíquota previdenciária (de 11% a 14%), produz efeitos nesta demanda para determinar a sua suspensão.
É de rigor o exame, nesse contexto, do instituto da “repercussão geral”, sucessor da “arguição de relevância”, e que possui previsão na Constituição de 1988 a partir da Emenda de número 45, porquanto o artigo 102, parágrafo 3º., da Carta passou a ter a seguinte redação: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”. Note-se, porque de acentuado relevo, que a norma constitucional não prevê o poder de o Supremo Tribunal Federal suspender o trâmite das ações, no caso em que se reconheça a repercussão geral, tratada pela norma constitucional como uma forma de filtro, tal como acontecia na “arguição de relevância”.
Destarte, se consideramos o enunciado da norma constitucional que trata da “repercussão geral”, verificamos que sua natureza é apenas a de um filtro, ou melhor, a de um requisito prévio ao conhecimento do mérito do recurso extraordinário – e nada mais que isso.
Ocorre, entretanto, que o Código de Processo Civil de 2015 sobre-excedeu o limite da Constituição ao prever a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do recurso extraordinário, determinar a suspensão do trâmite de ações que tratem da mesma matéria jurídica que esteja em análise no recurso extraordinário, criando um efeito de vinculação que a norma constitucional não previu e não prevê.
Além disso, há que se interpretar o parágrafo 5º. do artigo 1035 com o parágrafo 6º. desse mesmo artigo, aliás como é curial que o intérprete faça, buscando extrair dos dispositivos legais que se relacionem um conteúdo e um alcance que harmonizem as normas.
Assim, o parágrafo 6º, ao tratar da hipótese em que a ordem de suspensão emanada do Supremo Tribunal Federal pode não se aplicar a determinado caso, prevê que “O interessado pode requerer, ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal de origem, que exclua da decisão de sobrestamento e inadmita o recurso extraordinário que tenha sido interposto intempestivamente, tendo o recorrente o prazo de 5 (cinco) dias para manifestar-se sobre esse requerimento” – a demonstrar que a suspensão que emana da aplicação do instituto da “repercussão geral” somente se pode aplicar ao processo que esteja em grau de recurso extraordinário (ou seja, que já tenha sido interposto, perante o tribunal de origem, o recurso extraordinário), na forma em que o artigo 1.029 do CPC/2015 regula a interposição desse tipo de recurso. De modo que, em não havendo recurso extraordinário ainda interposto, a suspensão determinada pelo Supremo Tribunal Federal não pode produzir efeitos sobre esse processo, nomeadamente quando esteja ainda a tramitar em primeiro grau e com medida liminar em vigor.
Três ordens de razão conduzem a que se interpretem os parágrafos 5º. e 6º. do artigo 1.035, deles extraindo esse conteúdo e esse alcance.
A primeira razão está no conteúdo do próprio parágrafo 6º, nomeadamente por ter se referido a “recurso extraordinário que tenha sido interposto”, a bem evidenciar que a intenção do Legislador foi de circunscrever a suspensão apenas dos processos nos quais já exista recurso extraordinário interposto e em processamento.
A segunda razão decorre de considerarmos que o artigo 1.035 integra a “Seção II” (artigos 1.029/1.041), a que trata do recurso extraordinário e do recurso especial, o que nos permite concluir que se trata de regras que se aplicam apenas a processos nos quais exista recurso extraordinário já interposto e em processamento, justificando que para esses processos o Supremo Tribunal Federal, órgão ao qual a Constituição de 1988 prevê a competência (derivada) para seu julgamento, possa determinar a suspensão, e não de processos que não estejam nessa específica situação.
A terceira razão é a mais relevante, porque diz respeito ao princípio constitucional do devido processo legal, “processual” e “substancial”. Pois a Constituição de 1988, ao prever o direito de ação, constitucionalmente assegurado ao todos, garantiu um efetivo acesso à Justiça, o que passa pelo reconhecimento do juiz natural, que é o juiz ao qual a causa deva ser inicialmente levada a exame, para que profira sua decisão de acordo com o poder jurisdicional de que a nossa Constituição o dota, a qual também estabelece o direito ao duplo grau de jurisdição, o que significa devam existir recursos, inclusive com efeito suspensivo, mas para os quais se deve também observar o devido processo legal. Assim, ampliar o instituto da “repercussão geral”, mais do que isso, transmudar a sua natureza jurídica de mero filtro a mecanismo de vinculação obrigatória, é violar o devido processo legal “processual”.
Mas não apenas o devido processo legal “processual”, senão que igualmente o devido processo legal “substancial” resta violado, se permitirmos que a interpretação do parágrafo 5º. do artigo 1.035 reconheça ao Supremo Tribunal Federal o poder de suspender todo tipo de processo, e não apenas aqueles nos quais já exista recurso extraordinário interposto. Além de se considerar gravosa além de uma justa medida essa interpretação, dado que estaria a ampliar, além do razoável, a norma constitucional do artigo 102, parágrafo 3º., a ponderação entre os interesses em conflito, de um lado o do litigante que possui o direito ao juiz natural, e doutro o do Estado, essa ponderação não autoriza que se possa sacrificar, além de uma justa medida, o direito do autor de ter a sua demanda examinada pelo juiz de primeiro grau, sobretudo quando busca obter uma tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada.
Destarte, exercendo o controle difuso de constitucionalidade que a Constituição de 1988 garante a todos os juízes brasileiros, e pelas razões expostas, decido não observar a suspensão determinada pelo Supremo Tribunal Federal, por entender que a norma do artigo 1.035, parágrafo 5º., na forma como foi interpretada por aquele Tribunal, é inconstitucional.
Portanto, continuo a examinar a lide objeto deste processo, não sendo óbice a isso que exista uma ação coletiva, dado que a jurisprudência é firme no sentido de que a ação coletiva não gera litispendência sobre a ação individual.
Quanto ao mérito da pretensão.
Como se sabe, a partir de 2017 a União Federal, instituindo um “regime de recuperação fiscal”, ao qual estados-membros e municípios poderiam aderir, impôs como condição que os entes públicos devedores da União elevassem a alíquota da contribuição previdenciária que cobram de seus servidores públicos. Assim é que Estados como o do Rio de Janeiro, e alguns municípios, editando lei, elevaram de 11% para 14% a alíquota da contribuição previdenciária. O município de São Paulo, em 2018, editando a Lei 17.020, fez o mesmo.
Importante lembrar que, em 1999 o governo Fernando Henrique Cardoso, também propusera, por lei, que houvesse o aumento da alíquota da contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração dos servidores públicos, e a matéria foi examinada pelo Supremo Tribunal Federal, que por acentuada maioria de votos (9×2), reconheceu que a elevação da alíquota, no patamar proposto pelo governo federal, configurava um confisco, nomeadamente com base no argumento de que a soma entre o que o servidor público passaria a suportar com a nova alíquota da contribuição previdenciária e o que também suportaria a título de imposto de renda, a soma, pois, desses dois tributos chegaria a 47% (quarenta e sete por cento) da remuneração, e que isso caracterizaria o confisco, de modo que a modificação da alíquota foi àquela ocasião declarada inconstitucional.
Dissemos, ao início, que se analisaria aqui a elevação da alíquota de 11% para 14% a título de contribuição previdenciária sob dois enfoques diferentes. De fato, a análise deve se dar em face do princípio da igualdade, que, no caso de tributos, tem base no artigo 145, parágrafo 1º., da Constituição de 1988. Textualmente:
“§1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
O outro aspecto a ser examinado diz respeito ao princípio que veda o confisco em matéria tributária, que constitui expressa limitação que a Constituição de 1988 impõe ao poder de tributar, consoante está previsto no artigo 150, inciso IV.
Mas é de se enfatizar que esses dois aspectos de abordagem têm um ponto em comum, pois como observou ALIOMAR BALEEIRO:
“Em razão de partirem da capacidade econômica, os dois princípios devem levar em conta os gastos necessários à aquisição e manutenção da renda e do patrimônio do contribuinte e de sua família, dados esses variáveis e pessoais. Mas um deles, o que veda o confisco, não compara para verificar se certo grau de justiça material foi razoavelmente incorporado pelo legislador”. (cf. “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, p. 538, 7ª. edição, Forense editora).
Iniciaremos a análise acerca da constitucionalidade da majoração da alíquota instituída pela referida Lei municipal sob o aspecto do princípio da igualdade, o que equivale a dizer que se deve perscrutar se a alíquota elevada a 14% a título de contribuição previdenciária atende à garantia de que deva ser, a princípio, idêntica àquela aplicada a todo o conjunto de servidores públicos brasileiros, ou no caso de um discrímem, que um razão justa autorize uma alíquota diferente e maior, ou seja, que o sacrifício que se está a impor aos servidores da Prefeitura de São Paulo em decorrência de uma alíquota superior (ora de 14% sobre a sua remuneração mensal), deva ser considerado justo conforme as circunstâncias da realidade material subjacente. Perceberá o leitor que chegamos ao princípio constitucional da proporcionalidade, que, aliás, também será aplicado quando estivermos a considerar a matéria sob o enfoque do princípio que veda o confisco.
Quando a Constituição da República de 1988 criou como uma categoria autônoma a “capacidade econômica do contribuinte” (artigo 145, parágrafo 1º.), ela, sem dúvida, fez instituir uma “justiça tributária”, a impor ao intérprete considere sempre se a carga tributária imposta ao contribuinte pode ser considerada “justa”, ou seja, se o sacrifício que se lhe está a impor por meio de tributo é adequada e razoável, conforme não apenas à sua própria capacidade econômica, mas também a outros aspectos, como, por exemplo, se o tributo está a ser exigido de todas as pessoas que estão na mesma condição jurídica, se o Poder Público não está a conceder isenções e favores, desobrigando de suportar a exação a quem não deveria desobrigar, o que implicando em perda de receita tributária gera, por óbvio, um aumento da carga de sacrífico daquele suportado pela exação. Destarte, quando se impõe um aumento de alíquota de um determinado tributo, todos esses aspectos devem ser sopesados pelo intérprete, conforme se lhe exige o princípio constitucional da isonomia, aplicado em matéria tributária.
O aumento da alíquota da contribuição previdenciária, previsto na mencionada Lei, decorre indubitavelmente do objetivo da Prefeitura de São Paulo de satisfazer a condição que a União Federal impôs a todos os entes públicos que queiram se beneficiar do regime de recuperação fiscal, de modo que, contando com a ajuda da União Federal, a Prefeitura consiga fazer frente a um déficit orçamentário, que para o ano de 2018, superou um bilhão e quinhentos milhões de reais (apenas quanto ao déficit primário, ou seja, as receitas geradas por tributos de sua competência normativa). Assim, resulta evidente que a majoração da alíquota da contribuição previdenciária foi engendrada como uma forma de poder a Prefeitura de São Paulo atender à condição exigida pela União Federal, e com isso beneficiar-se do regime de recuperação fiscal.
Mas é justo impor aos servidores um aumento na carga de sacrifício, fazendo com que suportem uma contribuição previdenciária que já era cobrada em patamar que não é baixo (de 11%), que de resto é o patamar máximo cobrado por outros entes públicos, para com a elevação da alíquota gerar receita, diminuindo um rombo orçamentário gerado pelo próprio município? Evidentemente que não, sobretudo quando não cuidou a Prefeitura de São Paulo de realizar uma detida e minuciosa análise do que formam seus gastos, para explicitar quais são esses gastos, tudo para demonstrar que, a despeito de a elevação da alíquota da contribuição previdenciária afetar diretamente a capacidade econômica de seus servidores, essa elevação da alíquota poderia justificar-se nas circunstâncias da realidade material subjacente.
Contudo, não há na referida Lei municipal, a qual de resto cuida apenas de um regime jurídico de “previdência complementar”, nenhuma justificativa razoável à elevação da alíquota. Tivesse o município de São Paulo demonstrado por meio de cálculos atuariais e outros importantes dados financeiros e econômicos, e nesse caso poder-se-ia ponderar as razões e motivos do Poder Público, em cotejo com a garantia constitucional que é conferida ao sujeito passivo da exação no que toca à sua capacidade contributiva. Mas conforme ficou dito, a Lei em questão não trata de nenhum daqueles aspectos, a bem evidenciar que não os levou em conta, quando deles deveria ter cuidado com atenção – com a atenção exigida em face de um direito fundamental que o contribuinte possui, de somente suportar uma carga tributária que se revele razoável e justa.
O exame da capacidade contributiva também nos leva ao exame do aspecto relacionado ao confisco, porque a exemplo do que havia por suceder se a elevação da alíquota proposta em 1999 pelo governo federal tivesse conseguido fazer medrar, isto agora vem de ocorrer, porque a carga tributária que os servidores públicos da prefeitura de São Paulo passaram a suportar, depois que elevada a alíquota da contribuição previdenciária, supera um nível razoável, chegando próximo a 50% (cinquenta por cento), se somarmos o que passaram a pagar a título de contribuição previdenciária ao que já suportaram por força do imposto de renda, a bem caracterizar que a elevação da alíquota, implementada pela Lei 17.020, caracteriza evidente confisco, afetando, sem qualquer razão que o justifique, a renda dos servidores públicos do município de São Paulo, afetada em um nível bastante alto.
A Constituição de 1988, em seu artigo 150, inciso IV, nos moldes em que diversas constituições fazem, acertadamente não estabelece um critério para que se reconheça a existência de confisco em matéria tributária, concedendo ao juiz o poder de interpretar o caso em concreto, para poder decidir se o confisco caracteriza-se ou não. A aplicação do princípio da proporcionalidade, nomeadamente pela ponderação de interesses como forma de controle judicial, é aqui azado instrumento a adotar-se.
Em casos extremos, como, por exemplo, quando a lei fixa uma alíquota de 100% (cem por cento) sobre o valor de um bem ou de um rendimento, não haverá dúvida de que o confisco estará caracterizado, salvo em situação excepcional, quando a finalidade do tributo for para se alcançar um fim extrafiscal. Mas esse tipo de situação não é comum, sendo mais frequente ao juiz deparar-se com alíquotas não tão absolutas como essa (de 100%). Mas não há dúvida de que, afora o caso em que o tributo for aplicado com efeito extrafiscal, uma carga tributária de 50% sobre a renda que o sujeito passivo aufere deverá ser caracterizada como confisco, tal como reconheceu o Supremo Tribunal Federal em 1999.
Com a elevação da alíquota da contribuição previdenciária, de 11% para 14%, e somado com o que suporta a título de imposto de renda, o servidor público dos quadros da Prefeitura de São Paulo está a sofrer uma carga tributária de aproximadamente cinquenta por cento sobre sua renda mensal, de modo que da renda mensal que esse servidor recebe quase metade dela será transferida, por meio de tributos, ao tesouro público, o que evidentemente configura o confisco.
É certo que a Constituição de 1988 não fixa uma determinada alíquota que deva ser observada pelos entes públicos no instituírem contribuição previdenciária sobre a remuneração de seus servidores, como também não há uma limitação de alíquota, o que poderia conceder aos entes públicos o poder de fixarem a alíquota que entendessem adequada. Mas isso desde que a alíquota não possa caracterizar confisco. Destarte, como os servidores da prefeitura de São Paulo já suportaram a contribuição previdenciária no patamar de 11% (onze por cento), que é o patamar adotado pela imensa maioria dos estados-membros e municípios brasileiros, e que é o patamar que o Supremo Tribunal Federal, em 1999, reconheceu como razoável, não havia, como não há espaço de liberdade e de discricionariedade que legitime a elevação da alíquota da contribuição previdenciária, elevação que é declarada como inconstitucional, seja pela violação ao princípio da igualdade, seja pela violação ao princípio da vedação ao confisco, seja sobretudo em função de se dever garantir eficazmente a capacidade contributiva de que está a suportar a exação.
Como afirma THOMAS PIKETTY: “A tributação não é somente uma maneira de fazer com que os indivíduos contribuam para o financiamento dos gastos públicos e de dividir o ônus disso da forma mais justa possível; ela é útil, também, para identificar categorias e promover o conhecimento e a transparência democrática”. Mas isso somente pode ocorrer quando se respeitem as garantias fundamentais do contribuinte, o que passa pela atenta análise da capacidade contributiva sob os aspectos da isonomia e da vedação ao confisco.
Afirma ALIOMAR BALEEIRO: “podemos fixar que perante o Direito Tributário a transferência para o Tesouro Público, do total ou de parte do patrimônio, sem base legal, constitui a figura constitucionalmente proibida, a que se dá o nome juris de “Confisco”. (apud RUY BARBOSA NOGUEIRA, Direito Tributário Aplicado, p. 161, nota 12).
Poucos sabem que o genial romancista português, EÇA DE QUEIROZ, no início de sua carreira no jornalismo, e aproveitando de sua formação jurídica em Coimbra, tratou de impostos, em artigos que foram publicados no “Distrito de Évora”, edições de fevereiro a abril de 1867. Um desses artigos quadra perfeitamente com a situação dos autos, dado que a ré justifica a majoração da alíquota para combater o déficit público, situação muito semelhante àquela que levou EÇA a escrever o quanto segue:
“Despede-se de tudo generosamente, para dar à mãe pátria. Despede-se sem mágoa, com nobre alegria. Mas será justo que este sacrifício seja para cobrir as prodigalidades dos governos? Que se tire um pedaço do pão do pobre, para dar mais uma farda a um embaixador? Que se onerem os gêneros de consumo, a carne, o sal, o azeite, o arroz, o pão, para que no mundo oficial haja mais aparatos reluzentes e mais transformações feéricas.
“É necessário ver a aplicação dos tributos; pedem-se em nome da Pátria, sejam para salvar a Pátria. Que o fisco venha a tirar o pão das mãos necessitadas, para o esmigalhar ao vento do desperdício e da prodigalidade, isso não. Falam em repartição dos tributos; mais que na sua repartição, é necessário pensar na sua aplicação. É talvez um nobre pensamento que leva assim a onerar a fortuna popular: vê-se a grande cova do déficit e trata-se de a cobrir com os dinheiros perdidos, com os dinheiros do imposto, com os emolumentos, com tudo o que possa fazer vulto, número e peso. Compreende-se esse sentimento.
“Mas se, depois de arrancada a migalha do povo, se vir que ela nem se percebe na cova do déficit?
“Tratar de saldar o déficit, é impossível. Justificar o aumento das despesas com os vários ministérios, não é fácil. De maneira que pedir impostos, ou é para cobrir o déficit, ou a despesa – ou é para uma impossibilidade, ou para uma injustiça”. (“EÇA E OS IMPOSTOS”, textos coligidos por SÉRGIO VASQUES, Almedina).
Exatamente o que está a referida Lei a provocar: um acentuado e injusto aumento na alíquota da contribuição previdenciária dos servidores da Prefeitura de São Paulo, para cobrir o déficit que essa mesma Prefeitura, com seus gastos desordenados ou quando menos, não bem organizados, fez ela própria gerar. Mas entre buscar diminuir seus gastos e aumentar impostos, a Prefeitura escolheu o que lhe era mais fácil e cômodo, buscando se apropriar da renda de seus servidores, e mais, sem sequer realizar um prévio cálculo atuarial, pelo qual pudesse justificar não tivesse outra opção que não a de impor a majoração de alíquotas.
Tal como se configura, a majoração na alíquota da contribuição previdenciária configura confisco – e por isso é inconstitucional, e por isso o autor deve ser desobrigado de a suportar.
POSTO ISSO, JULGO PROCEDENTE o pedido, declarando existir e se configurar confisco na majoração, de 11% a 14%, da alíquota da contribuição previdenciária prevista na Lei – SP de número 17.020/2018, pelo que, ilegal esse confisco, o autor não suportará essa majoração, acolhida a pretensão que nesse sentido aqui formula, transformando-se em tutela provisória de urgência de natureza definitiva a tutela antes concedida sob a forma cautelar. Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Quanto a encargos de sucumbência, prevalece a regra do artigo 55 da Lei federal de número 9.099, de modo que, em não se tendo caracterizado a prática pela ré de ato de litigância de má-fé, não se lhe pode impor o pagamento de qualquer encargo dessa natureza, sequer honorários de advogado.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 25 de outubro de 2019.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO