Apelação nº 1136532-23-2021.8.26.0100
Apelante: MOMENTUM EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA
Apelado: DANIEL MINORU OKODA
VOTO Nº 647
DECLARAÇÃO DE VOTO – EM JULGAMENTO ESTENDIDO
Circunscrevo-me a analisar a questão jurídica sobre a qual se formou a divergência, dado que, quanto às demais questões tratadas no processo e no recurso de apelação, acompanho o voto do ilustre Desembargador Relator.
A divergência, com efeito, radica quanto ao inconformismo da ré-apelante quanto a que se lhe reconheça o direito a ser indenizada pela taxa de fruição que, segundo enfatiza em seu recurso, possui base na “Lei do Distrato”, como é conhecida a Lei Federal 13.786/2018, a aplicar-se no caso de rescisão de contrato de compromisso de compra e venda, bastando se considere o fato de o adquirente ter exercido a posse sobre o imóvel que adquiriu, independentemente de ter ou não havido qualquer tipo de construção no imóvel, ou mesmo tenção de que o fizesse.
Entendo se deva analisar de primeiro acerca da validez da “Lei do Distrato”, em especial de seu artigo 32-A da lei federal 6.766/1979 (com a nova redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018), que regula a forma e valores que seriam restituídos na hipótese de rescisão contratual pleiteada pela pelo adquirente.
Com efeito, prevê o artigo 32-A da lei federal 6.766/1979, com a redação que lhe foi dada pela lei federal 13.786/2018:
“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II – o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III – os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV – os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V – a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
§ 1º O pagamento da restituição ocorrerá em até 12 (doze) parcelas mensais, com início após o seguinte prazo de carência:
I – em loteamentos com obras em andamento: no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias após o prazo previsto em contrato para conclusão das obras;
II – em loteamentos com obras concluídas: no prazo máximo de 12 (doze) meses após a formalização da rescisão contratual.
§ 2º Somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado, nos termos do art. 32 desta Lei.
§ 3º O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”.
Entendo que essa norma legal, sobretudo ao dispor sobre a taxa de fruição, deve ser considerada como abusiva, por colocar, sem justa razão, em desvantagem exagerada o adquirente de bem imóvel objeto de contrato de compromisso de compra e venda, o que está em evidente descompasso com o regime jurídico-legal de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, lembrando que essa proteção tem matriz constitucional.
Daí porque se há reconhecer que o conteúdo e o alcance da regra do artigo 32-A da lei federal 6.766/1979 criaram um injustificado regime de discrímem em favor das incorporadoras e administradoras de bens imóveis, colocando os adquirentes em uma posição contratual desvantajosa além de um limite razoável, a ponto de se poder afirmar que essa norma, criada pela lei federal 13.768/2018, teve por objetivo obnubilar na prática as vantagens que os consumidores haviam, com muita luta, obtido quando conseguiram que fosse aprovado o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal que, aliás, vem enfrentando, dia-a-dia, um hercúleo desafio quando quanto a manter a integralidade de seu texto, tal como fora ideado e colocado em vigor a partir de 1990. Recentemente, surgiu a lei que se tornou conhecida como “A Lei do Superendividamento” (lei federal 14.181/2021), que, a pretexto de querer proteger o consumidor, em verdade o desprotege, submetendo-o a medidas que são de interesse exclusivo do credor, como se dá com o plano de pagamento embutido no “processo de repactuação de dívidas”.
E o mesmo sucedeu com a “Lei do Distrato”, como assim se tornou conhecida a lei federal 13.786/2018, que fez acrescer à lei do parcelamento do solo urbano o artigo 32-A, suprimindo garantias que de há muito tinham sido reconhecidas em favor dos adquirentes de bens imóveis objeto de contratos de compromisso de compra e venda, nomeadamente quanto aos valores que lhes devem ser restituídos nas hipóteses de rescisão do contrato.
Trata-se, pois, do mesmo fenômeno que fez surgir a “Lei do Endividamento”, que é apenas o solapar o alicerce do Código de Defesa do Consumidor, o que comprova quão acertado estava MARX em sua percuciente observação quanto à relação que existe e que deve ser percebida pelos operadores do Direito entre a infraestrutura e a superestrutura, e como aquela (a infraestrutura), de natureza essencialmente econômica, busca a todo momento afetar a superestrutura jurídica, materializada no direito positivo, como ocorre com leis econômicas, produzidas por quem defende um Estado absolutamente liberal.
Leis que reproduzam a base econômica, impactando a superestrutura naquilo que se mostre necessário para que prevaleça a base econômica, e não os direitos subjetivos que, incorporados ao direito positivo, integram a superestrutura jurídica de um país. Recordemos do que escreveu LOUIS ALTHUSSER a respeito:
“Qualquer pessoa pode compreender facilmente que esta representação de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois ‘andares’ da superestrutura, é uma metáfora, muito precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica. Como todas as metáforas, esta sugere, convida a ver alguma coisa. O quê? Pois bem, precisamente isto: que os andares superiores não poderiam ‘manter-se’ (no ar) sozinhos se não assentassem de fato na sua base.
A metáfora do edifício tem portanto como objetivo representar a ‘determinação em última instância’ pelo econômico. Esta metáfora espacial tem por efeito afetar a base de um índice de eficácia conhecido nos célebres termos: determinação em última instância do que se passa nos ‘andares’ (da superestrutura) pelo que se passa na base econômica”. (“Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”, tradução por Joaquim José de Moura Ramos, p. 26-27, Editorial Presença – Portugal – Livraria Martins Fontes – Brasil).
O que justifica a tática empregada recentemente em alguns diplomas legais no Brasil, tática que consiste em solapar as garantias reconhecidas aos consumidores em normas legais que compõem a superestrutura jurídica, mas não por meio da revogação dessas normas legais, o que se revelaria bastante difícil de se alcançar, senão que pela criação de normas que esvaziam de sentido e de função as normas de proteção a direitos, como se dá em especial com a “Lei do Distrato”, que, a pretexto de regular a atividade econômica dos empreendimentos imobiliários, aniquilou em verdade o direito dos adquirentes, previstos no Código de Defesa do Consumidor, colocando esses adquirentes em uma posição desproporcional, ou seja, aquém de um mínimo razoável de proteção jurídica.
Considere-se, outrossim, como um risco imanente ao negócio em questão a possibilidade de o adquirente do imóvel pretender rescindi-lo por um variegado conjunto de razões, sobretudo econômicas, e naturalmente as incorporadoras têm plena consciência desse risco, que não é assim imprevisível (o que justifica que o contrato seja denominado de “um compromisso de compra e venda”), e o embutem de algum modo no preço final que cobram dos adquirentes, não sem quererem também justificar a validez da cobrança da taxa de fruição pela previsão formal no contrato de que os adquirentes estão autorizados, desde que receberam a posse do lote, de nele construir, o que nem sempre ocorre (como no caso presente).
Trata-se, em essência, de uma cláusula abusiva por gerar em favor das incorporadoras uma excessiva vantagem, na medida em que, na hipótese de rescisão do contrato, retomam a posse do lote, podendo comercializá-lo a um novo adquirente, além de se dever considerar, para além de se tratar de um risco imanente ao negócio como observado, que as parcelas mensais que são cobradas do adquirente em função do contrato compensam de algum modo a transferência da posse do lote durante o tempo em que o contrato está a produzir seus efeitos.
De resto, não se pode olvidar da natureza jurídica do contrato que foi firmado entre partes – um contrato de compromisso de compra e venda –, e a transferência da posse ao adquirente deve ser compreendida em função do que as partes estão a contratar, que é a possibilidade de que, pagas todas as parcelas, a propriedade seja transferida ao adquirente. A transferência da posse do lote não constitui o objetivo principal do contrato, senão que parte de sua implementação fático-jurídica, enfatizando-se que essa transferência de posse é de interesse tanto do adquirente quanto é da incorporadora, a qual deixa, obviamente, de responsabilizar pelo lote a partir do momento em que transfere a sua posse, continuando a receber as parcelas que têm por objetivo não a transferência de uma simples posse, mas da propriedade do lote, sendo essa, portanto, a precípua finalidade do contrato e o que caracteriza a sua natureza jurídica, de maneira que não se pode justificar seja cobrada uma taxa de fruição, que se poderia legitimar fosse outra a natureza jurídica do contrato, que não a de transferir a propriedade do lote, e não a sua mera posse, o que bem evidencia a abusividade da cláusula que prevê a cobrança de uma taxa de fruição de posse.
Compreendendo com perfeição a realidade material subjacente, e o verdadeiro objetivo da “Lei do Distrato”, cuidou o juízo de origem reconhecer a nulidade de pleno direito da cláusula contratual, para garantir à ao apelada apelado o justo direito a receber, em restituição, 8075% (oitenta setenta e cinco por cento) dos valores pagos pela aquisição do bem imóvel, excluídos os valores pagos a título de corretagem, restituição que é de ser feita em parcela única, tornando prevalecente, como sói deveria suceder, a proteção jurídica a que fez a o apeladaapelado, cujo direito subjetivo foi corretamente reconhecido pela r. sentença.
Além desse aspectoRepare-se ainda, o expressivo fato observado no Voto do i. Relatorque fez instalar a divergência, qual seja, o fato de que, malgrado a transferência da posse, não se fez nada construir no imóvel, esse fato também é de relevo observar para que a taxa de fruição, não fosse a sua invalidez, não pudesse ser cobrada no caso presente.
Por meu voto, portanto, com o respeito que é merecido à divergência, acompanhando ao Voto do eminente Relator, nego provimento a este recurso de apelação interposto pela requerida para, assim, manter, em seu integral conteúdo, a r. sentença.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
5º Juiz