Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito
Embora hoje com uma menor frequência, ainda se está a discutir acerca da coisa julgada inconstitucional. Falemos do tema, pois.
Especialmente em demandas ajuizadas por servidores públicos, alega-se que, nos casos em que o Supremo Tribunal Federal terá reconhecido determinado direito, essa posição deva sobrelevar a coisa julgada material, gerada em ações nas quais o mesmo direito fora antes negado. Invoca-se aí a aplicação da teoria da coisa julgada inconstitucional, preconizada no direito brasileiro por CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e HUMBERTO THEODORO JUNIOR.
Teoria que no Brasil teve gênese em manifestação doutrinária de JOSÉ AUGUSTO DELGADO, Ministro do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, mas ainda circunscrita ao campo das indenizações pagas pelo Estado. Sob color, pois, de que a coisa julgada não deve ser via para o cometimento de injustiças, defendia-se a tese da preeminência do predicado “justiça” quando em conflito com o da segurança jurídica, concluindo o insigne Ministro que os efeitos da sentença devem prestar homenagem absoluta aos princípios da moralidade, da legalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e do justo.
De forma mais sistemática e abrangente, tal teoria passou a ser defendida entre nós por CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e HUMBERTO THEODORO JUNIOR, o primeiro, contudo, de forma mais cautelosa, mas ambos os processualistas sustentando a possibilidade de se obliterar a coisa julgada quando em conflito com princípios e regras constitucionais.
Exatamente essa a teoria que se sustenta quando se busca afastar a coisa julgada material.
Mas é importante registrar que, mesmo aqueles autores que estendem mais radicalmente a teoria da coisa julgada inconstitucional, caso de HUMBERTO THEODORO JUNIOR, que a respeito do tema produziu interessante artigo (em co-autoria), sob o título “A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle” (RT, 795), mesmos esses autores obtemperam que no caso de não aplicação de uma lei ordinária por alegado motivo de ordem constitucional e que mais tarde vem a ser, tal motivo, afastado por mudança de orientação jurisprudencial, nesse caso, afirmam os processualistas, não se pode pretender afastar a coisa julgada. Textualmente:
“(…) No caso (…) de não aplicação da lei ordinária, por alegado motivo de ordem constitucional que mais tarde vem a ser afastado por mudança de orientação jurisprudencial, a ofensa que poderia ser divisada não é à Constituição, mas, sim, à lei ordinária a que a sentença não reconheceu eficácia. Não se pode, data venia, dizer que, na não-aplicação da norma infraconstitucional, tenha-se configurado uma negativa de vigência de norma constitucional, para declarar-se a própria sentença como inconstitucional e, ipso facto, nula”.
Daí a conclusão no sentido de que:
“A recusa de aplicar lei constitucionalmente correta representa, quando muito, um problema de inconstitucionalidade reflexa, o qual, porém, não é qualificado pela jurisprudência reiterada do STF, como questão constitucional. Disso decorre que a hipótese deva se submeter ao regime comum das ações rescisórias por ofensa à lei ordinária e não ao regime especial de invalidação ou rescisão das sentenças inconstitucionais”. (cf. artigo mencionado).
Devemos ter sempre em conta a preciosa e precisa lição de CHIOVENDA:
“A coisa julgada não é outra coisa que a res iudicata; (…) A res iudicata não é, com efeito, a sua vez, mais que a res in iudicium deducta, uma vez que foi iudicata; em outros termos, é o bem da vida (propriedade, servidão, herança, crédito, direito à divisão, separação pessoal, anulação de um fato jurídico, etc.) que é perseguido em juízo, uma vez que o juiz o tenha reconhecido ou negado, chegando assim a ser incontestável (…)”.[1] (tradução nossa).
Pois que como enfatiza CHIOVENDA, em vez de coisa julgada, nós melhor poderíamos dizer “bem julgado”, o que, em essência, constitui importante garantia inerente a um estado democrático de direito. Compreendemos, assim, o motivo de não se poder adotar a teoria da coisa julgada inconstitucional.
[1] Ensayos de Derecho Procesal Civil, v. III, p. 227-228.