APARELHOS IDEOLÓGICOS DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

APARELHOS IDEOLÓGICOS DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
Valentino Aparecido de Andrade

Tomo aqui de empréstimo o conceito criado por ALTHUSSER, o de “aparelhos ideológicos do Estado”, para demonstrar ao leitor como em nosso processo civil a ideologia assumiu um papel central, ocupando um espaço que coloca em verdadeiro risco o nosso Estado de Direito. Os juízes brasileiros, com efeito, obedecem às súmulas e teses vinculantes não porque elas são boas e corretas, senão que as observam e as cumprem apenas porque são obrigatórias, assim impostas pela lei, o que faz com que os juízes, sem se darem conta disso, acabam transformados em autômatos, em um fenômeno que é descrito por PASCAL, um dos autores em quem ALTHUSSER baseou-se na construção de seu conceito.

Como observa SLAVOJ ZIZEK em sua obra “O Sublime Objeto da Ideologia”, BLAISE PASCAL percebeu como a interioridade de nosso raciocínio é determinada por uma “máquina externa”, para além daquilo que podemos perceber ou controlar:
“Pois não devemos nos enganar sobre nós mesmos: somos tanto autômato quanto mente. (…) As provas convencem apenas a mente; o hábito fornece as provas mais sólidas e aquelas em que mais se acredita. Ele dobra o autômato, que inconscientemente leva a mente consigo”. (BLAISE PASCAL, Pensamentos, Martins Fontes, 2001).

Há ainda um outro pensador que foi de fundamental importância a ALTHUSSER, e de que também devemos no valer: MARX, que, em sua conhecida obra “O Capital”, cunhara a mais completa e consistente definição de Ideologia, ao se referir não propriamente ao que a forma, senão que o que dela resulta. Escreveu MARX: “Disso eles não sabem, mas o fazem”. Ou seja, para que possamos compreender como a Ideologia atua em um determinado contexto, é necessário que identifiquemos qual a máscara pela qual se faz escondida a própria Ideologia. Como observa ZIZEK na referida obra:
“A máscara não esconde simplesmente o verdadeiro estado de coisas; a distorção ideológica está inscrita em sua própria essência. (…). Deparamos então com o paradoxo de um ser que só pode reproduzir-se na medida em que seja desconhecido e desconsiderado: no momento em que o vemos ‘tal como realmente é’, esse ser se dissolve no nada, ou em termos mais exatos, transforma-se em outro tipo de realidade. (…)”.

Se olharmos com atenção ao que ocorre com os juízes, quando são obrigados a observarem as súmulas e teses vinculantes, percebemos com nitidez como o Legislador brasileiro maneja a Ideologia, e como com ela faz que os juízes, ainda que tenham de alguma maneira consciência da distância entre a máscara ideológica e a realidade social, aceitam a máscara, e a fazem aplicada. O mecanismo é simples. Basta convencer os juízes de que o princípio da segurança jurídica é primordial no Estado de Direito, e que antes de os juízes pensarem sobre um determinado tema jurídico, os Tribunais já o pensaram, e chegaram a um consenso, extraindo da norma um sentido que eles, os juízes, não poderiam jamais ter alcançado. Ou seja, os Tribunais pensaram antes e melhor que os juízes, e por isso não cabe ao juízes o “saber”, mas apenas o fazer. E assim nas súmulas e teses vinculantes a ideia de Justiça está alcançada de antemão, dispensando os juízes de pensarem sobre ela. Aí, portanto, a ilusão a que os juízes são levados por meio da Ideologia.

Na base desse fenômeno, está o convencimento que o Legislador impõe aos juízes de que a única verdadeira obediência é a “externa”. ZIZEK descreve como funciona esse mecanismo no campo da Religião, mas que pode ser perfeitamente aplicado aos juízes e a obediência “externa” que o Legislador se lhes impõe:
“A única verdadeira obediência, portanto, é ‘externa’: a obediência por convicção não é uma verdadeira obediência, porque já é ‘mediada’ por nossa subjetividade – isto é, não estamos realmente obedecendo à autoridade, mas apenas seguindo nosso julgamento, que nos diz que a autoridade merece ser obedecida, na medida em que é boa, sábia e benevolente …. Mais ainda do que à nossa relação com a autoridade social ‘externa’, essa inversão se aplica a nossa obediência à autoridade interna da crença; foi Kierkegaard que escreveu que acreditar em Cristo por considerá-lo sábio e bom é uma terrível blasfêmia – ao contrário, é somente o próprio ato de crer que pode permitir-nos discernir sua bondade e sabedoria. Decerto devemos buscar razões racionais capazes de consubstanciar nossa crença, nossa obediência aos mandamentos religiosos, mas a experiência religiosa crucial é que essas razões só se revelam àqueles que já acreditam – encontramos razões que confirmam nossa crença porque já cremos; não cremos por haver encontrado um número suficiente de boas razões para crer”.

Está a finalidade para a qual o CPC/2015 por seu artigo 926 estatui que: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Essa é a fonte da ilusão que é criada na consciência dos juízes, porque eles são conduzidos a crer que se os tribunais uniformizaram a sua jurisprudência, basta essa razão para que eles, os juízes, acreditem que assim deva ser, e não há razão para se desconfiar de que as súmulas e teses vinculantes não estão senão que a revelar o “melhor direito”.

Poderiam os juízes, eles próprios, chegar à mesma interpretação que está consubstanciada em uma súmula ou tese vinculante, mas eles, antes de qualquer coisa, creem que assim deva ser, porque o sistema isso os obriga. Portanto, creem cegamente nas súmulas e teses vinculantes não porque entendam que teriam boas razões para isso; creem simplesmente porque, como são juízes, já acreditam naquilo em que querem crer, como se assim fosse necessário. A propósito, ZIZEK encontrou em “O Processo” de KAFKA um trecho em que esse mecanismo da ilusão (e da Ideologia) não poderia ser melhor descrito:
“Não concordo com essa opinião – disse K., balançando a cabeça. – Pois se adere a ela, é preciso considerar como verdadeiro tudo o que o porteiro diz. Que isso, porém, não é possível, você mesmo fundamentou pormenorizadamente.
– Não – disse o sacerdote. – Não é preciso considerar tudo como verdade, é preciso apenas considerá-lo como necessário.
– Opinião desoladora – disse K. – A mentira se converte em ordem universal”.

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