AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA E SUCESSÕES. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. DILAÇÃO PROBATÓRIA QUE SE REVELA IMPRESCINDÍVEL DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. SENTENÇA NULA. RECURSO PROVIDO.

RELATÓRIO
Cuida-se de ação de reconhecimento de união estável ajuizada por (…), tendo por objeto o reconhecimento de suposta união estável entre a autora e o falecido, (…), no período de 1986 a 2016.
Insurge-se a apelante contra a r. sentença, alegando ter havido uma inadequada valoração das provas produzidas, diversamente do que havia sucedido quando da primeira sentença proferida nos autos (sentença anulada pelo juízo “a quo” em virtude de ausência de citação de alguns dos requeridos), em que a existência de união estável por mais de trinta anos fora declarada e reconhecida.
Recurso tempestivo, dispensado o preparo em razão da gratuidade concedida a apelante. Contrarrazões pelos réus.

FUNDAMENTAÇÃO
Dá-se parcial provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, porque se declara nula a sentença em razão de caracterização de cerceamento de defesa, para assim garantir à autora, como exige o princípio do devido processo legal “processual” e “substancial”, a produção de provas em fase de instrução, a ser instaurada pelo juízo de origem.
De há muito enfatiza a doutrina a mudança de papel do juiz no processo civil moderno, em que não se mais admite a figura de um juiz passivo, mero receptor das provas que as partes tenham produzido, impondo-se a presença de um juiz que assuma um papel verdadeiramente ativo, que faça determinar a produção das provas que sejam necessárias a formar seu convencimento, ainda que as partes não as tenham requerido.
Aquela antiga e irreal distinção criada pela doutrina do processo penal quanto à “verdade”, quando se afirmava que no processo penal se buscava uma “verdade material”, enquanto o juiz do processo civil deveria se satisfazer com uma verdade apenas formal, essa distinção não mais subsiste. Com efeito, a verdade que o juiz deve buscar no processo civil é a mesma verdade e uma única verdade, que qualquer juiz tem por missão buscar, seja no processo civil, seja em qualquer tipo de processo.
A propósito, dizia Hegel que se prevalecesse a ideia de que é impossível o conhecimento da verdade, a Filosofia não poderia diagnosticar nenhum caso de inveracidade, de forma que “os conceitos de verdade, as leis morais nada mais serão do que opiniões e convicções subjetivas (…)”. Decerto também assim ocorreria com o processo civil, se dominante essa posição relativista. Fundamentalmente, a verdade que o processo civil busca atingir é a mesma verdade que a Ciência em geral almeja.
O que exige um juiz ativo na produção das provas no processo civil, de resto como é imposto pelo artigo 370 do CPC/2015.
Como observa DINAMARCO: “No processo civil moderno a tendência é reforçar os poderes do juiz, dando relativo curso aos fundamentos do processo inquisitivo. Ele tem o dever não só de franquear a participação dos litigantes, mas também de atuar ele próprio segundo os cânones do princípio do contraditório, em clima de ativismo judicial (…)”. Repudia-se o juiz Pilatos, que deixa acontecer sem interferir. Daí os poderes judiciais de direção e impulso do processo, a serem exercidos em benefício da tutela jurisdicional justa, tempestiva e efetiva”. (“Instituições de Direito Processual Civil”, vol. I, p. 253-254, 5ª. Edição, Malheiros editores).
No caso em questão, não há negar que a primeira sentença proferida – que declarara procedente o pedido –, essa sentença fez gerar na autora uma razoável expectativa de que, anulada aquela, uma nova sentença adotaria o mesmo entendimento, o que, contudo, não ocorreu. É certo que não havia nenhuma obrigação jurídico-legal de a magistrada, ao proferir a segunda sentença, adotar o entendimento que outro magistrado adotara na primeira sentença o que não infirma que a autora tivesse a expectativa de que assim pudesse ocorrer.
Destarte, quando a magistrada declara não ter encontrado nos documentos produzidos pela autora elementos de prova suficientes para que pudessem demonstrar a existência da união estável, essa situação processual deveria ter determinado que ela fizesse instaurar a fase de instrução, não apenas para dar à autora o pleno conhecimento de que não havia ainda provas suficientes, mas também para determinar, inclusive de ofício, as provas que pudessem gerar o convencimento da verdade acerca do que controvertido nos autos.
Importante observar que se trata de uma união estável que, segundo a autora, teria perdurado por mais de trinta anos, e a confirmar esse fato a autora trouxera declarações firmadas por pessoas que afirmam a existência da união estável, como, por exemplo, a declaração de folha 26.
De modo que, se dúvida havia, impunha-se ao magistrado um papel ativo na produção das provas que pudessem formar seu convencimento, tanto mais necessário quanto pelo fato de os réus, todos eles, terem contestado por “negativa geral”.
Poder-se-ia obtemperar que a autora, ela própria, requerera o julgamento antecipado da lide, mas também é necessário observar que essa conduta processual era natural nas circunstâncias em que fora criada uma razoável expectativa da autora em que se adotasse na novel sentença o mesmo entendimento firmado na sentença declarada nula, o que não sucedeu.
O juiz não está obrigado a produzir provas ainda que a parte as requeira, se considera essas provas impertinentes ou desnecessárias, e o mesmo se há concluir na hipótese em que a parte requeira o julgamento antecipado da lide, se o magistrado entende pela necessidade na produção de provas. Portanto, as providências que compõem a fase do julgamento conforme o estado do processo, a dizer, o julgamento antecipado da lide, a extinção anormal do processo e o saneamento, são providências que ficam sob a análise do juiz, que, sobre permitir que as partes possam produzir as provas necessárias, deve também considerar quais aquelas que, de ofício, deve determinar, tanto quanto seja necessário a que a tutela jurisdicional possa ser justa, entendendo-se como tal uma sentença que corresponda à realidade material subjacente.
Nas circunstâncias do caso em concreto, digo, nas circunstâncias especiais do caso em concreto, a dilação probatória é indispensável, e a sentença incidiu em cerceamento de defesa quando não possibilitou à autora a produção de provas, e ainda quando não as determinou de ofício, como se revela necessário no caso em questão.
Por tais razões, caracterizado o cerceamento de defesa e, nomeadamente, a ofensa ao princípio do devido processo legal “processual” e “substancial”, declaro nula a sentença, observando a necessidade de que se leve a cabo, em primeiro grau, o aprofundamento da causa a ocorrer na fase de instrução, o que impede a aplicação do artigo 1.013, parágrafo 3º., do CPC/2015.
Pois que, pelo meu voto, declaro nula a sentença, determinando se faça instaurar a fase de instrução, para a produção das provas necessárias ao convencimento do juízo de origem, seja aquelas que vierem a ser requeridas pelas partes, sejam aquelas que o juiz, ele próprio, entenda por bem as determinar de ofício.
Sem condenação em encargos de sucumbência.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR