A JUSTIÇA ELEITORAL, O DIREITO E A DEMOCRACIA
Valentino Aparecido de Andrade
Durante muito tempo, sobretudo durante os governos militares (1964-1985), a Justiça Eleitoral foi considerada como uma espécie de apêndice na estrutura da justiça brasileira, porque não havia um quadro próprio de juízes eleitorais e o temas não pareciam ser jurídicos. Os juízes eleitorais, com efeito, eram juízes oriundos da justiça estadual que, acumulando funções, exerciam o cargo de juízes eleitorais durante um certo período de tempo, recebendo uma gratificação que, no começo, era irrisória, e viam o exercício da jurisdição eleitoral como um fardo, como uma função meramente administrativa e desimportante, o juiz transformado em um autômato, a quem cabia a tarefa de assinar títulos de eleitor e outros burocráticos documentos relativos às eleições. Basta consultar os livros de nossa história e se poderá constatar o papel totalmente insignificante que a Justiça Eleitoral desempenhou tanto durante os governos militares, quanto no período chamado de “redemocratização” e que se conclui em 1985.
Importante observar que a Constituição de 1988 não modificou essa situação, como se pode constatar da pequena importância que o texto constitucional dá à Justiça Eleitoral, regulada em três dispositivos (artigos 118-121), e que, a rigor, reproduzem o que o Código Eleitoral dispõe em seus artigos 12 a 41. Também é de relevo observar que o Código Eleitoral é de 1965, ou seja, um diploma legal engendrado e colocado em vigor durante o governo militar.
Mas andando o tempo, a Justiça Eleitoral passou a assumir uma relevância cada vez maior no Brasil, mas isso não se deveu a algum fenômeno interno na estrutura da própria justiça brasileira. O que provocou esse aumento de relevância radica em um fenômeno externo à essa estrutura. Trata-se, pois, de um fenômeno cuja origem está na Democracia e na sua relação com o Direito.
Como observa o jusfilósofo italiano, RAFFAELE DE GIORGI, “As reais possibilidades da democracia decorrem do fato de que todos os temas da comunicação podem tornar-se temas da política; que todas as decisões da política encontram-se submetidas ao direito”. (“Direito, Democracia e Risco – vínculos com o futuro”).
E acrescenta o ilustra jusfilósofo italiano, baseando-se sobretudo nos ensinamentos de NIKLAS LUHMANN: “o sistema político opera em condições que são determinadas por sua própria estrutura. Essas condições podem irritar a opinião pública que, por sua vez, se transforma, muda, de acordo com as suas próprias condições que, a seu tempo, constituem uma fonte contínua de irritação para a política. São esses os espaços em que se pode produzir democracia na sociedade moderna”.
O que explica a relevância que a Justiça Eleitoral passou a ter nos últimos anos no Brasil. Processos judiciais que antes eram julgados pela Justiça Comum passaram a ser da competência dos juízes e tribunais eleitorais, como ocorreu com muitos processos em que se apurava e ainda se apura a existência de “caixa 2” no mundo da política. Juízes que antes viam a função na justiça eleitoral como um “fardo”, começaram a enxergar o poder que a Justiça Eleitoral possui, porque é dentre as Justiças aquela que está mais próxima da política. E aqui é que começa o perigo.
Como adscreve RAFFAELE DE GIORGI, tanto o sistema político quanto o sistema jurídico operam dentro de suas respectivas estruturas, e no caso do Direito isso significa dizer que há sempre uma distinção prévia a que os juízes estão obrigados a respeitar, que é a distinção entre o que é direito e o que não é direito, o que explica, por exemplo, que o uso jurídico das desigualdades não coincida necessariamente com o uso que se faça dessas igualdades fora do Direito, por exemplo no campo da política. Muitos outros temas, sobretudo políticos, são e devem ser tratados de modo específico pelo Direito.
As relações acentuadamente próximas entre o Direito e a Política que formam o núcleo da atuação da Justiça Eleitoral tornam-se delicadas porque na raiz dessas relações está a Democracia. Cabe à Justiça Eleitoral, a seus juízes e tribunais, o extremo cuidado de saberem que devem operar apenas dentro da estrutura que forma o direito positivo, o qual se lhes impõe a necessária observância à distinção entre o que é direito e o que não é direito – e quando olvidam dessa distinção, confundindo o que é Direito com o que é Política, colocam em risco a democracia. Todo o cuidado é pouco nesse espinhoso campo de relações institucionais.
Há, pois, a urgente necessidade de que venha a se pensar em uma restruturação em nível constitucional da Justiça Eleitoral, com a criação de uma estrutura condizente com a real importância dessa Justiça, adotados princípios e regras que são aplicados a todas as Justiças no Brasil, com destaque para o princípio do juiz natural, a ser rigorosamente respeitado nos processos de competência da Justiça Eleitoral, o que hoje não ocorre, isso para falar de apenas um dos graves e importantes temas com os quais essa reforma constitucional deve lidar.