ENTRE CHIOVENDA E CARNELUTTI, FIQUE COM WALTER BENJAMIN

ENTRE CHIOVENDA E CARNELUTTI, FIQUE COM WALTER BENJAMIN
Valentino Aparecido de Andrade

Cedo se dão conta os estudantes de Direito de quão abstratas (e estéreis) são muitas das teorias jurídicas, porque a elas falta algo que os juristas que as elaboram não podem compreender, porque é comum que somente se preocupem com o que está no Direito, escapando-lhes o que apenas a Filosofia lhes poderia supeditar. Os juristas em geral se dão por satisfeitos em conhecer apenas o objeto de sua ciência, e são raros aqueles que percebem que o Direito não pode fornecer a solução completa a todos os problemas, na base dos quais muitas vezes estão aspectos não jurídicos. As teorias monista e dualista, criadas por CARNELUTTI e CHIOVENDA, e que ainda hoje alimentam no processo civil quase que a mesma polêmica de quando surgiram, são um exemplo de como o Direito muitas vezes opera com uma desarrazoada e fictícia abstração, o que é a causa direta de a utilidade de muitas das teorias jurídicas não poder ser percebida pelos operadores do Direito, malgrado os importantes efeitos práticos envolvidos.

CHIOVENDA e CARNELUTTI, com efeito, travaram a polêmica acerca da finalidade do processo civil, em cujo centro está o definir se essa finalidade é a de atuar a vontade concreta da lei (como propugnava CHIOVENDA), ou se o escopo do processo civil é a justa composição da lide (segundo a posição de CARNELUTTI). Como observa DINAMARCO:
“A grande diferença entre as duas teorias residia em que, enquanto para uma a norma do caso em concreto receberia da sentença o seu acabamento final e antes desta os direitos inexistiriam (Carnelutti), para a outra o ordenamento jurídico é composto de dois planos distintos (teoria dualista, Chiovenda) e os direitos e obrigações preexistem à sentença, sendo por ela revelados com vista à concreta realização prática determinada pela norma também preexistente” (“Instituições de Direito Processual Civil”, volume I, p. 145, 5a. edição, Malheiros editores).

DINAMARCO, aliás, cuidou anotar a insuficiência dessas teorias, observando que nenhuma delas examina o sistema processual por outros ângulos, além de não “investigar os substratos sociais, políticos e culturais que legitimam sua própria existência e o exercício da jurisdição pelo Estado”, acrescentando, com acuidade, que: “Atuar a vontade concreta da lei ou dar acabamento à norma de regência do caso são visões puramente jurídicas e nada dizem sobre a utilidade do sistema processual em face da sociedade”. (cf. página 145, obra mencionada).

Mas faltou explicar e demonstrar o que estava ausente na construção das teorias jurídicas, e porque elas falhavam. DINAMARCO não o pôde fazer porque a solução não está no Direito, mas na Filosofia. Precisamente em WALTER BENJAMIN.

Filósofo, sociólogo e ensaísta alemão, o genial WALTER BENJAMIN (1892-1940), em seus Escritos Reunidos, afirma que a história deve ser compreendida como um texto:
“Se nos dispomos a considerar a história como texto, podemos dizer sobre ela o que disse um autor moderno sobre um texto literário: o passado depositou nele imagens que seriam comparáveis às preservadas por uma chapa fotográfica. Somente o futuro dispõe de reveladores suficientemente fortes para fazer surgir a imagem com todos os seus detalhes. Muitas páginas de Marivaux ou de Rosseau atestam um significado que seus leitores contemporâneos não estavam aptos a decifrar completamente”.

Trata-se, pois, de compreender a história como um texto, ou como observa o filósofo SLAVOJ ZIZEK, apoiando-se em JACQUES LACAN e em sua teoria sobre o Sintoma, o significado da história é sustentado pela “metáfora do texto”, em que está presente uma “dimensão temporal invertida”, porque a significação dos fatos passados não vem do passado, mas do futuro, o qual, como observa WALTER BENJAMIN, funciona como uma espécie de máquina de revelação de uma imagem que foi construída no passado, mas que não podia se revelar com todos seus detalhes senão noutro momento, ou seja, no futuro:
“A propósito das Teses de Benjamin (…) podemos repetir a fórmula de Lacan: a revolução dá ‘um salto de tigre em direção ao passado’, não por estar em busca de uma espécie de apoio no passado, mas na medida em que esse passado que se repete na revolução ‘vem do futuro’ – já estava, ele mesmo, saturado da dimensão aberta do futuro”. (“O Sublime Objeto da Ideologia, p. 202-203, 1a. edição, Civilização Brasileira, 2004).

Pois bem, tal como se dá com a história, o processo civil também deve ser compreendido como um texto, cuja intelecção o juiz faz operando sobre fatos ocorridos no passado, cuja leitura é feita pelo juiz por meio de um “salto de tigre em direção ao passado”, porque o juiz na sentença afirma o que “terá sido”, não no sentido de que efetivamente foi assim, mas no sentido de que a compreensão dos fatos passados somente é possível no momento em que o juiz profere a sentença, quando está a analisar a lide e os fatos passados que a formaram sob uma outra perspectiva, criada pelo processo civil, já saturado de uma dimensão aberta pelo aspecto temporal que permeia o processo, atuando este como o aparelho revelador do que forma a lide em todos os seus detalhes.

Agora sim, com o que WALTER BENJAMIN nos ensina, a nós processualistas, podemos compreender que a finalidade do processo civil não está em atuar a vontade concreta da lide, ou de permitir fazer o acabamento final de um conflito de interesses, mas sim em operar como um engenhoso aparelho de revelação de uma imagem que, construída no passado, somente pode ter uma leitura com todos seus detalhes no momento em que a sentença é proferida.

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