LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO. AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE APLICADO SOBRE A LEI FEDERAL 14.181/2021 E DECRETO 11.150/2022. INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA QUANTO À RESTRIÇÃO A DETERMINADOS TIPOS DE CRÉDITO”.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS EM CONTEXTO DE UM SUPOSTO SUPERENDIVIDAMENTO. SENTENÇA QUE DECLAROU IMPROCEDENTES OS PEDIDOS.

APELO DA AUTORA EM QUE AFIRMA TER SUPORTADO INDEVIDO CERCEAMENTO DE DEFESA, NA MEDIDA EM QUE NÃO PUDERA PRODUZIR PROVA INDISPENSÁVEL À COMPREENSÃO DA LIDE EM TODOS SEUS ASPECTOS, PUGNANDO PELO RECONHECIMENTO DE NULIDADE FORMAL DA R. SENTENÇA SOB ESSE ARGUMENTO, E TAMBÉM PELO FATO DE ELA NÃO ABARCAR O EXAME DE TODAS AS PRETENSÕES FORMULADAS.

APELO SUBSISTENTE. CERCEAMENTO DE DEFESA QUE SE CONFIGURA E QUE IMPLICA EM NÃO TER A AUTORA-APELANTE CONTADO COM A GARANTIA A UM PROCESSO JUSTO. CONTROVÉRSIA FÁTICA ACERCA DA SITUAÇÃO FINANCEIRA DA AUTORA-APELANTE QUE EXIGE UM APROFUNDAMENTO NA ANÁLISE DESSE TEMA, O QUE PASSA PELA PRODUÇÃO DA PROVA REQUERIDA PELA AUTORA-APELANTE, PROVA QUE É PERTINENTE, TANTO QUANTO É NECESSÁRIA AO DESIMPLICAR DA QUESTÃO FÁTICO-JURÍDICA, QUE, ALIÁS, É NUCLEAR NO CONTEXTO DA DEMANDA.

CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE QUE DEVE SER EXERCIDO SOBRE A LEI FEDERAL 14.181/2021 E DO DECRETO QUE A REGULAMENTOU, DE NÚMERO 11.150/2022, DIPLOMAS LEGAIS QUE, MODIFICANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, FIZERAM CRIAR O CONCEITO JURÍDICO-LEGAL DE “SUPERENDIVIDAMENTO” COMO UM FORMA DE FAZER APLICADO O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO EM QUE O CONSUMIDOR ESTEJA COM SUA ESFERA DE DIGNIDADE ATINGIDA PARA ALÉM DO QUE SE POSSA CONSIDERAR RAZOÁVEL, SEGUNDO AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO EM CONCRETO, CRIANDO EM FAVOR DO CONSUMIDOR O DIREITO MATERIAL-PROCESSUAL DE CONTAR COM UM PROVIMENTO JURISDICIONAL QUE, EQUACIONANDO COM EQUILÍBRIO A SITUAÇÃO, PERMITA QUE O CONSUMIDOR POSSA SATISFAZER SUAS OBRIGAÇÕES, SEM QUE COM ISSO COMPROMETA SEU MÍNIMO EXISTENCIAL, CUJO CONTEÚDO ESTÁ ABARCADO PELO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA.

AUSÊNCIA DE JUSTA RAZÃO, A DIZER, DE PROPORCIONALIDADE QUE JUSTIFIQUE TENHA O LEGISLADOR, POR MEIO DE UM MERO DECRETO DE REGULAMENTAÇÃO, EXCLUÍDO DETERMINADAS OPERAÇÕES, COMO, POR EXEMPLO, A DE OPERAÇÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO, DAQUILO QUE É NECESSÁRIO AFERIR ACERCA DE UM SUPOSTO COMPROMETIMENTO DO MÍNIMO EXISTENCIAL.

RESTRIÇÃO QUE É DESPROPORCIONAL, NA MEDIDA EM QUE COLOCA A POSIÇÃO JURÍDICA DO CONSUMIDOR EM INJUSTIFICADO DESEQUILÍBRIO, ALÉM DE NÃO HAVER JUSTA RAZÃO PARA QUE SE EXCLUÍSSE QUALQUER TIPO DE DÍVIDA, JÁ QUE O QUE SE QUER PROTEGER É A DIGNIDADE HUMANA DO CONSUMIDOR, DE MANEIRA QUE NÃO HÁ SENTIDO EM EXCLUIR DETERMINADAS OPERAÇÕES BANCÁRIAS, CRIANDO UM INJUSTO DISCRÍMEN EM FAVOR DE CERTOS CREDORES.

RESTRIÇÃO, DE RESTO, QUE NÃO ESTÁ PREVISTA NA LEI, NÃO CABENDO AO DECRETO COMO MERO INSTRUMENTO REGULADOR CRIAR AQUILO QUE A LEI NÃO CRIOU.

APELO SUBSISTENTE. SENTENÇA FORMALMENTE NULA. SEM A FIXAÇÃO DE ENCARGOS DE SUCUMBÊNCIA.

RELATÓRIO
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença que julgou improcedentes pedidos formulados no contexto do que se alega como um quadro de superendividamento, alegando a autora que ocorreu injustificado cerceamento de defesa, visto que não pôde produzir prova para demonstrar que seu mínimo existencial estará seriamente afetado, caso não possa contar com a repactuação das dívidas, sustentando, pois, formalmente nula a r. sentença, seja por esse motivo, seja ainda por outro, o de o juízo de origem não ter analisado todas as pretensões formuladas na demanda.
Recurso tempestivo, dispensada a autora do preparo em razão da gratuidade. Resposta apresentada.
FUNDAMENTAÇÃO
É de rigor o provimento a este recurso de apelação, porque é formalmente nula a r. sentença.
Nulidade que decorre do cerceamento de defesa. Com efeito, a alegação de que existe um quadro de superendividamento é, por natureza, uma questão fático-jurídica, o que significa dizer que o magistrado deve propiciar à parte a produção de todas as provas que tenham por finalidade demonstrar o grau de comprometimento do mínimo existencial, aferido com base no montante das dívidas. Diante desse tipo de controvérsia, a técnica do julgamento antecipado, salvo excepcional, excepcionalíssima situação, não pode ser aplicada.
Como não pode neste caso, em que a autora, em pormenorizada peça inicial, descreveu as vicissitudes pelas quais atravessa, geradas por dívidas em montante que, em tese, está a colocar a sua dignidade como pessoa humana afetada, de maneira que, diante desse quadro fático, não há como suprimir da autora o direito à produção das provas, que, aliás, ela requereu a tempo e modo.
Não se olvide que se trata de uma relação jurídica de consumo a relação material subjacente a esta lide, e especial sistema de proteção que é concedido pelo Código de Defesa do Consumidor estendeu seus efeitos naturalmente ao campo processual, em que a garantia a um processo justo é ainda mais reforçada.
Como se configura o cerceamento de defesa, porque o processo não está em condições de receber sentença, havendo, pois, a imperiosa necessidade de que o juízo de origem, proferindo decisão de organização e saneamento do processo, permita à autora a produção de provas acerca de sua situação financeira e de aspectos que a ela dizem respeito de perto, basta, pois, esse cerceamento de defesa para que se considere formalmente nula a r. sentença, prejudicado o exame da outra alegação da autora-apelante, a de que a r. sentença teria deixado de analisar todos as pretensões formuladas na demanda.
A despeito de se declarar formalmente nula a r. sentença, é necessário avançar até a análise de um outro importante tema, porque ele terá efeitos ao tempo em que a nova sentença estiver a ser produzido. É que se deve aqui, neste preciso momento, exercer o controle difuso de constitucional, colocando sob essa análise a lei federal 14.181/2021 e o decreto que a regulamentou, o decreto de número 11.150/2022, diplomas legais que criaram o conceito jurídico-legal de “superendividamento”, criando mecanismos de ordem prática para que o Poder Judiciário implemente a proteção ao consumidor, quando em questão a sua dignidade como pessoa humana.
Princípio constitucional que protege a esfera de dignidade do consumidor que, como todo princípio jurídico, é um mandamento de otimização, o que significa dizer que seu conteúdo é extraído conforme as circunstâncias do caso em concreto, o que, aliás, reforça, também por essa perspectiva, o direito processual da autora-apelante a que possa produzir as provas que requereu.
Assim, não há nenhuma razão que justifique tenha o Legislador, por meio de um mero decreto de regulamentação, criado o que a Lei não criou. Falo, pois, da exclusão de determinadas operações bancárias daquilo que se deve considerar no processo civil de repactuação de dívidas em contexto de superendividamento. Com efeito, se a alegação da autora é de que a dimensão das dívidas que contraiu supera o que se possa considerar como razoável, se essa dimensão está, segundo ela, a afetar a sua dignidade como pessoa humana, colocando-a em condição de penúria se tiver que saldar todas as dívidas nos moldes em que hoje estão, não há sentido lógico-jurídico que justifique o Legislador tenha criado um regime de discrímen em favor de determinados credores, para não os submeter ao processo civil de repactuação em contexto de superendividamento. Irrelevante o tipo da dívida, sua natureza, porque se ela afeta ou pode afetar o mínimo existencial do consumidor, não há razão para se excluir uma determinada dívida apenas por sua natureza.
A exclusão feita pelo Legislador em um mero decreto é, só por si, inconstitucional, porque evidentemente se sobre-excedeu no referido decreto a sua finalidade de apenas regulamentar o que a lei fixou, mas essa inconstitucionalidade também está na substância do que legislado no decreto, criando em favor de determinados credores um regime de discrímen que colocou a autora-apelante em situação de evidentemente desequilíbrio, não fosse também o fato de que a exclusão de determinadas operações é desproporcional, porque ela diminui consideravelmente o espaço de aplicação do princípio constitucional de proteção à dignidade humana.

Por meu voto, pois, dá-se provimento a este recurso de apelação, declarando formalmente nula a r. sentença, com a apreciação, outrossim, em regime difuso, da constitucionalidade da lei federal 14.181/2021 e do decreto que a regulamentou, o de número 11.150/2002, declarando-se, pois, a inconstitucionalidade com efeitos circunscritos a este caso em concreto da exclusão feita no referido decreto quanto a determinadas operações para a aferição do que se deve considerar como mínimo existencial, dívidas que também devem ser aferidas no contexto do que se alega como um quadro de superendividamento.
Não se fixam encargos de sucumbência.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR