EXISTE A BOA-FÉ OBJETIVA?

DECLARAÇÃO DE VOTO – EM JULGAMENTO ESTENDIDO

Acompanho (com certa ressalva) o voto do ilustre Desembargador relator, desprovendo assim ao recurso de apelação interposto pela autora, de molde que seja mantida a r. sentença. Faço-o com base nos argumentos.

Considero necessário iniciar pelo exame do que se convencionou chamar em nossa doutrina e jurisprudência como “boa fé objetiva”, uma imprópria denominação dada ao vetusto princípio da boa-fé, que, em sendo essencialmente de natureza subjetiva, não comporta, por óbvio, que se o pudesse denominar de “boa-fé objetiva”, nome que surgiu em decorrência de se levar incorretamente em consideração uma determinada perspectiva da boa-fé, quando analisada apenas com base em um dos lados da relação jurídica, olvidando-se que, sob o plano lógico-jurídico, é impossível circunscrever a análise da relação jurídica, tomada exclusivamente com base em um dos polos dessa relação, que, como destaca CHIOVENDA, é sempre complexa, na medida em que compreende mais de um direito subjetivo de uma parte em referência à outra, envolvendo frequentemente uma pluralidade de direitos subjetivos recíprocos entre as partes (cf. Instituições de Direito Processual Civil, volume 1, p. 5, Saraiva, 1969).

Destarte, ainda quando se está a analisar se uma das partes que compõe a relação jurídica não tenha se comportado de modo que pudesse ter incidido em erro culposo, ou cuja conduta não se possa qualificar como indesculpável nas circunstâncias do caso em concreto, em uma análise que é feita segundo os que defendem exista a “boa-fé objetiva”, o que se está a analisar é sempre o conjunto da relação jurídica, envolvendo sua natural complexidade, o que significa dizer que se deve analisar o comportamento de ambas as partes, como é próprio ocorrer quando se está a tratar do velho, mas sempre renovado princípio da boa-fé, que experimentou ao longo do tempo uma importante evolução, na medida em que a sociedade se tornou mais complexa, incorporando-se à vida diária atividades que, por sua natureza e características, envolvem um determinado risco, o que fez com a jurisprudência passasse a ver o princípio da boa-fé sob novas perspectivas, ampliando seu campo de atuação, o que se deu entre nós especialmente nas relações de consumo, em virtude da especial proteção jurídica que o Legislador entendeu por bem conferir em favor do consumidor e que tem base tanto no princípio da igualdade, quanto no princípio da proporcionalidade.

Em verdade, poder-se-ia lobrigar que, em se tornando a sociedade cada vez mais complexa, no bojo, pois, de um fenômeno que é próprio à sociedade pós-moderna e que foi bem descrito pelo sociólogo e filósofo polonês, ZYGMUNT BAUMAN, por exemplo em sua obra “Legisladores e Intérpretes” em que trata do conceito por ele criado de “modernidade líquida” e aplicado de forma que é de acentuado interesse ao mundo do Direito, em que as normas legais parecem não mais atender à sua finalidade, porque a realidade material subjacente está a mover-se mais rapidamente do que o Legislador e os juízes poderiam ter previsto, é isso, pois, o que demonstra a necessidade cada vez presente de que o Direito positivo opere com as chamadas “cláusulas gerais”, como se dá em especial com o princípio da boa-fé, como observa o jurista alemão, KARL LARENZ em seu “Tratado de Derecho Civil Alemán”, sem tradução para a língua portuguesa:

“(…) Os mesmos autores da lei perceberam que somente com o método legal abstrato-generalizador pode conseguir-se realmente um alto grau de segurança jurídica e também de justiça global – dos conteúdos da regulação em geral -, porém frequentemente à custa da diferenciação exigida pela mesma multiplicidade de formas das relações vitais e, com isso, também em detrimento da justa decisão do caso particular. Por isso, o legislador tem intentado mitigar os inconvenientes do estilo legal abstrato-generalizador, ao acolher na lei também alguns módulos de valoração que recebem um conteúdo, isto é, as chamadas “cláusulas gerais”, que têm o caráter de linhas de orientação. Assim, o Código remete em algumas passagens a princípios ético-jurídicos, como a ‘boa-fé’ (…)”. (“Tratado de Derecho Civil Alemán, Parte General”, p. 33/34, Editorial Revista de Derecho Privado, tradução livre).

O que quer dizer que é a sede de equidade, ou seja, de alcançar-se a justiça do caso em concreto que é partilhada pelo Legislador com o juiz, o que justifica que se tenham conceitos gerais indeterminados como a da boa-fé, em cuja base está um pensamento orientado a valores, como o mesmo KARL LARENZ esclarece noutra fundamental obra, “Metodologia da Ciência do Direito”, esta sim amplamente conhecida no Brasil e que conta uma tradução feita a cargo da Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal:

“A necessidade de um pensamento ‘orientado a valores’ surge com a máxima intensidade quando a lei recorre a uma pauta de valoração que carece de preenchimento valorativo, para deliminar uma hipótese legal ou também uma consequência jurídica. Tais pautas são, por exemplo, a ‘boa-fé’, uma ‘justa causa’, uma ‘relação adequada (de prestação ou contraprestação), um ‘prazo razoável’ ou ‘prudente arbítrio’ (…)”.

É o que explica que o Código de Defesa do Consumidor tenha previsto a boa-fé como uma espécie de critério de valoração, como se fez em seu artigo 51, inciso IV, conferindo ao juiz o poder discricionário a ser utilizado para a compreensão das circunstâncias do caso em concreto, assim empregado para que se possa alcançar uma situação de equilíbrio entre as partes contratantes, aferida essa situação com base em uma detida análise das circunstâncias do caso em concreto, o que passa por um aspecto processual de relevo, que, em verdade, é o que está na base daquilo que a doutrina e a jurisprudência equivocadamente denominam de “boa-fé objetiva”, que nada mais é do que a aplicação da técnica da inversão do ônus da prova, quando exista motivos suficientes para que essa técnica possa ser aplicada.

Não é a boa-fé que é objetiva (ela jamais o pode ser). É simplesmente a aplicação da teoria da inversão do ônus da prova que permite ao juiz que, analisando uma relação jurídica de consumo, fazendo aplicar essa técnica, possa considerar suficiente não tenha tido o consumidor, autor da ação, incidido em erro culposo, ou cuja conduta possa ser desculpável, impondo então ao réu que se desincumba do ônus da prova, demonstrando não ter dado azo de qualquer maneira a que o fato pudesse ter ocorrido, tal como ocorreu. Ou seja, vistas as coisas de maneira apropriada, não se trata senão de aplicar a técnica da inversão do ônus da prova, não havendo sentido, lógico e jurídico, em se falar de “boa-fé objetiva”.

É o que se deve aplicar neste caso, pois, em que está configurada uma relação jurídica de consumo como objeto da lide, como corretamente a qualificou o juízo de origem, fazendo nesse contexto uma minudente e atenta análise dos dados extraídos da realidade material subjacente, ao concluir com base na prova produzida que a autora-apelante foi “de certa forma negligente em relação ao dever cautela no ato de conferir os dados do comprovante de pagamento do boleto” (sic, cf. folha 115).

Também correta a valoração feita pelo juízo de origem ao identificar uma falha no serviço prestado pelo réu-apelado, na medida em que as informações relativas à pessoa da autora, que deveriam ter sido mantidas sob sigilo, não o foram, não na exata medida em que se deveria esperar de um serviço de antifraude que os bancos devem sempre aperfeiçoar.

Tudo para dizer que entendo correta a valoração que o juízo de origem fez dos fatos, em um contexto em que cuidou bem aplicar a técnica da inversão do ônus da prova, dessa técnica extraindo um resultado que se mostra justo, consideradas as circunstâncias do caso em concreto.

Apenas a título de registro, não acedo ao que consta do respeitável voto do ilustre Desembargador relator, quando exclui o banco de responsabilidade pelo evento, responsabilidade que é de ser compartilhada com a autora pelas razões que constam da r. sentença.

É como voto, respeitosamente.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE