PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
9ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO
DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO
Pelo meu voto, respeitado o entendimento da douta maioria, entendo configurada a efetiva e concreta divergência entre o v. Acórdão proferido neste processo e o v. Acórdão paradigma firmado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no tema 492, com vinculação obrigatória, porque em questão na causa a análise do conteúdo e alcance do direito constitucional à livre associação (CF/1988, artigo 5º., inciso XX), havendo, pois, conforme determina o artigo 1.041, parágrafo 1º., do CPC/2015, por realizar-se um juízo de retratação, para que prevaleça o v. Acórdão paradigma, o que conduz, no meu entendimento, “concessa venia”, a que se deva dar provimento ao recurso de apelação interposto pelos réus, com a declaração de improcedência à pretensão inicial, invertendo-se os encargos de sucumbência.
Pois bem. Tratando-se de um instituto novo em nosso ordenamento jurídico em vigor, criado pelo CPC/2015, e que se consubstancia no reexame de acórdão para o tornar consentâneo ao que terá decidido tribunal de superposição, é necessário fazer algumas observações, a justificar que se o aplique ao caso presente.
Destaquemos inicialmente o emprego do verbo “coincidir” no inciso I e do verbo “contrariar” no inciso II desse dispositivo legal. A princípio, seria de se esperar, por uma questão de lógica e para evitar algum problema de interpretação, que o legislador, em tendo se utilizado do verbo “coincidir” no inciso I, tivesse empregado uma forma de antônimo no inciso II, ou seja, com o uso da expressão “não coincidir”. Mas o texto legal fala em “contrariar”. Teria sido um equívoco do legislador, ou alguma intenção estaria aí presente, a desafiar o intérprete?
Se formos aos bons dicionários, como o Houaiss por exemplo, encontraremos como significados do verbo “coincidir”: ser concordante, combinar, afinar-se, enquanto para o verbo “contrariar” temos os seguintes significados: não atender a (algo); fazer diferente do desejado ou esperado; estar em desacordo com.
Se o inciso II do artigo 1.040 do CPC/2015 tivesse utilizado a expressão “não coincidir”, não haveria nenhuma dificuldade em considerar que o objetivo da norma foi o de dizer que se o acórdão não é concordante com o acórdão paradigma estabelecido pelo tribunal de superposição em termos de resultado, cabe o reexame. Mas o verbo empregado no referido dispositivo legal é “contrariar”, e há uma importante consequência que daí decorre, impondo uma distinção entre as situações possíveis.
A primeira é a de que pode ocorrer de a solução dada no acórdão não contrariar o paradigma, embora não seja coincidente o resultado do julgamento no recurso de apelação, como se dá, por exemplo, na hipótese de o tribunal de justiça ter interpretado a relação jurídico-material sob uma perspectiva diversa daquela que o tribunal de superposição terá realizado no acórdão paradigma – e é algo comum que esse tipo de situação processual ocorra.
Consideremos o seguinte exemplo, que é, aliás, um tema recorrente em nossa jurisprudência e que também diz respeito à matéria tratada nestes autos: a validez da cobrança de encargos por parte de associação de moradores em loteamento. O egrégio Supremo Tribunal Federal firmou tese a respeito, declarando a inconstitucionalidade da cobrança desse tipo de encargo quando o proprietário não terá querido associar-se e não o tenha feito. Ou seja, o egrégio Supremo Tribunal Federal alicerçou o acórdão paradigma na questão que radica no direito de associação, tratando, pois, de uma matéria que tem matriz constitucional.
É possível, contudo, que, o Tribunal de Justiça, no julgamento de um recurso de apelação, examine sob outra perspectiva a mesma relação jurídico-material, não sob o enfoque do direito de associação, mas sim sob a perspectiva da efetiva utilização dos serviços pelo proprietário de unidade em loteamento, em que se considera, não o direito de associação, mas a regra do Código Civil que veda o enriquecimento ilícito. Dir-se-ia que o acórdão do tribunal de justiça nesse tipo de situação não coincide com o acórdão paradigma, mas se poderá dizer que contraria esse paradigma? Não, é a resposta.
Destarte, em tendo utilizado o Legislador do verbo “contrariar”, quis dizer que o reexame do recurso de apelação somente pode ocorrer se esse acórdão tiver feito a análise da relação jurídico-material segundo a mesma perspectiva adotada pelo tribunal de superposição, mas deixando de aplicar o entendimento que esse tribunal de superposição adotou, sendo aí evidente que o acórdão proferido no julgamento de recurso de apelação terá contrariado o acórdão paradigma. Exatamente o que se configura neste caso em concreto, pois que o v. Acórdão divergente, embora tenha aplicado a regra legal que obsta o enriquecimento ilícito, também analisou o tema sob a perspectiva do direito constitucional à liberdade de associação, sendo imperioso reconhecer que há uma efetiva e concreta divergência em face do v. Acórdão paradigma, o que dá azo ao reexame, tal como determina o artigo 1041 do CPC/2015.
Poder-se-ia argumentar que o artigo 1.041 fala em “acórdão divergente”, com o que estaria o Legislador a abarcar as duas situações – a de não coincidir e a de contrariar a que se referem os incisos I e II do artigo 1.040. Mas também é necessário considerar a finalidade da norma em questão, que é a de submeter a um novo julgamento, ainda sede de recurso de apelação, o acórdão que tenha contrariado o acórdão-paradigma, ou seja, dele divergido, situação que é diferente daquela em que o acórdão, analisando a questão sob outra perspectiva, terá apenas não coincidido com o resultado do julgamento, mas esteado em um fundamento jurídico diverso daquele que alicerça o acórdão paradigma, de maneira que nessa situação não se pode dizer, tecnicamente ou mesmo segundo a realidade das coisas, que o acórdão proferido na apelação terá contrariado o acórdão paradigma. Haverá, sim, uma incoincidência entre os resultados em si, mas não quanto aos fundamentos fático-jurídicos, porque dissociados entre si.
De forma que a conclusão que se impõe é que apenas na hipótese em que o acórdão proferido em recurso de apelação tenha efetiva e concretamente divergido do acórdão-paradigma, e não na hipótese em que houve uma mera incoincidência quanto ao resultado do julgamento, é que se deverá aplicar a regra do artigo 1041 do CPC/2015, havendo nesse caso um novo julgamento do recurso de apelação.
Também é importante sublinhar que o campo cognitivo que se instaura no juízo de retratação, a teor do que determina o artigo 1.040, inciso II, do CPC/2015, não é igual àquele que se instaurou no momento em que se estava a julgar o recurso de apelação, o qual, aliás, é o recurso em nosso ordenamento jurídico em vigor que conta com o maior campo cognitivo possível, abarcando todas as questões de fato e de direito. No caso do juízo de retratação, não se está a renovar a discussão de toda a temática fático-jurídica com o qual o tribunal local lidou ao tempo em que examinou o recurso de apelação, senão que, ao levar a cabo um juízo de retratação, deve apenas perscrutar se há ou não coincidência entre as questões jurídicas tratadas no acórdão que proferiu e no acórdão paradigma emanado de um tribunal de superposição. Havendo coincidência entre as questões de direito que formam um e outro desses acórdãos, cabe ao tribunal local aplicar o juízo de retratação, adotando a mesma solução que foi dada pelo tribunal de superposição, o que atende à finalidade explicitada na “Exposição de Motivos ao CPC/2015”, quando a comissão afirma que, ao tempo em que vigorou o CPC/1973, ocorria uma situação indesejável, que era a de existirem indefinidamente posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito de uma mesma norma jurídica. A técnica do juízo de retratação foi ideada exatamente para garantir a segurança jurídica.
Ao contrário do que entendeu a douta maioria julgadora, “concessa venia”, não cabia neste caso em concreto senão que, identificando a coincidência da questão jurídica (a que versa sobre o direito constitucional à liberdade de associação), aplicar o juízo de retratação, para fazer prevalecer o que decidiu acerca dessa mesma questão jurídica o que decidiu o egrégio Supremo Tribunal Federal. Não se poderia, portanto, reexaminar as questões fáticas, porque não se trata de julgamento, ou de um novo julgamento do recurso de apelação, senão que da aplicação de uma novel técnica, que é a técnica de ajustar acórdão de um tribunal local acerca de uma questão jurídica àquilo que um tribunal de superposição terá decidido acerca dessa mesma questão jurídica.
Pudesse o tribunal local reexaminar todas as questões fáticas e de direito existentes no recurso de apelação, como as examinou ao tempo em julgou aquele recurso (o de apelação), teria o Legislador desatendido a finalidade que expressamente fixou na “Exposição de Motivos” ao CPC/2015, na medida em que não teria logado alcançar a prevalência do acórdão do tribunal de superposição, senão que estaria a alimentar ainda mais a indefinição e a insegurança jurídica. De resto, não haveria sentido em o CPC/2015 ter criado a técnica do juízo de retratação, se era seu objetivo ensejar que o tribunal local julgasse “duas vezes” o mesmo recurso de apelação, com perda de tempo e de dinheiro, e gerando apenas a insegurança jurídica.
Feitos esses comentários, verifica-se neste caso em concreto que, malgrado a autora-apelada tivesse estruturado a causa de pedir alicerçada apenas na questão do enriquecimento ilícito, os réus, ao contestarem o pedido fizeram incorporar à demanda a análise do direito constitucional de livre associação, o que determinou que o v. Acórdão divergente examinasse a lide também sob essa perspectiva, analisando-a, pois, sob o que prevê a norma constitucional do artigo 5º., inciso XX.
Portanto, como o v. Acórdão divergente analisou a lide sob a perspectiva da norma constitucional do direito à liberdade de associação, matéria que forma o núcleo do v. Acórdão paradigma, caracteriza-se a efetiva e concreta divergência, sendo de rigor proceder-se ao reexame do v. Acórdão divergente para o tornar consentâneo ao que o egrégio Supremo Tribunal Federal decidiu com a nota de vinculação obrigatória no tema 492, cuja ementa é a seguinte:
“É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei 13.465/2017, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos titulares de direitos sobre lotes em loteamentos de acesso controlado, que: (i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis”.
Destarte, realizando aqui um juízo de retratação, deve prevalecer o v. Acórdão paradigma, de modo que, declarada a inconstitucionalidade da taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano até o advento da lei federal 13.465/2017, reconhecendo-se no mesmo contexto que não há lei editada pelo município de Guararema que tenha regulado a matéria, daí decorre que, examinando a relação jurídico-material sob a perspectiva do direito constitucional de liberdade de associação, direito de liberdade que prevalece segundo o que decidiu o egrégio Supremo Tribunal Federal no v. Acórdão paradigma, é de rigor declarar-se a improcedência ao pedido inicial, dando-se provimento ao recurso de apelação interposto pelos réus, LEORNARDO CARNEIRO FILHO e MAGALI LAVRADOR CARNEIRO.
Pelo meu voto, portanto, com o respeito que é merecido pela douta maioria, nos termos do artigo 1.041, parágrafo 1º., do CPC/2015, alterando-se o v. Acórdão para o tornar consentâneo com o v. Acórdão paradigma, dava provimento ao recurso de apelação interposto pelos réus para, reformando a r. sentença, declarar-se improcedente a pretensão inicial.
Pelo meu voto também invertia os encargos de sucumbência, tal como foram estabelecidos na r. sentença, mas sem majorar os honorários de advogado em virtude de terem sido fixados quando ainda estava em vigor o CPC/1973.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
RELATOR