UMA MAGISTRATURA DE NÚMEROS
Valentino Aparecido de Andrade
Sociedades complexas têm o mau vezo de dar soluções simplistas a problemas complexos, com o que iludem aqueles que precisam de uma solução concreta e efetiva a esses problemas. É o que explica o surgimento entre nós de uma “magistratura de números”.
Em vez de o Poder Público dotar a Justiça de um número suficientes de juízes, preparando-os adequadamente a pensar, e mais, deixá-los pensar, é mais simples fazê-los trabalharem mais, proferindo sentenças a torto e a direito, transformando-os em juízes autômatos, para os quais somente pode haver uma preocupação: a estatística. Não percebem os juízes que foram transformados em operários da Justiça, partes que integram uma engrenagem que funciona mesmo sem eles.
Sentenças são proferidas com açodamento, porque os juízes são obrigados a proferir um número determinado de sentenças mensalmente, e não importa se o processo estava ou não maduro para receber a sentença: o juiz terá que proferi-la. E como precisa proferir uma número cada vez maior de sentenças – como o operário precisa a cada dia vender mais barato a sua força de trabalho, a “mais-valia”, o juiz habitua-se a não pensar.
Institutos como os da súmula vinculante e da repercussão geral bem demonstram como o juiz tornou-se parte de uma engrenagem, que funciona mesmo que o juiz não esteja ali, senão que simbolicamente. Um tribunal fixa uma tese jurídica, torna-a obrigatória, e pronto, o juiz deve apenas executar a ordem, sem pensar nela.
Quando MARX escreveu o “Capital” no século XIX não poderia supor que, andando o tempo, os juízes, que àquele tempo integravam a burguesia, seriam transformados em um simples operário – um operário da máquina da Justiça, totalmente substituível, como qualquer operário.
E os dois, o juiz e operário, passam a ter algo em comum: devem executar rotineiramente seu trabalho, sem pensar nele. Devem confeccionar todos os dias um número certo de peças (ou de sentenças, no caso do juiz), e o que importa ao patrão é apenas o número do que é produzido, e não que o trabalhador reflita sobre o que está a produzir em termos de qualidade.
Como no caso do operário a “mais valia” é manipulada pelo patrão conforme seus interesses, pagando menos ao operário que é obrigado a produzir cada vez mais, no caso do juiz o fato de não poder pensar é o que forma essa “mais valia” de que se beneficiam os grupos interessados.