“FRATELLI TUTTI”.
Valentino Aparecido de Andrade
Passou praticamente despercebida no Brasil a Encíclica “Fratelli Tutti”, escrita pelo Santo Padre FRANCISCO e publicada em 3 de outubro de 2020. Há uma boa razão para que não se desse publicidade a esse importante texto, e o leitor, ele próprio, descortinará essa razão.
“FRATELLI TUTTI” é uma expressão que foi utilizada por São Francisco de Assis quando, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs, propunha-lhes adotassem uma forma de vida que tivesse alicerce direto nos Evangelhos, ou seja, uma forma de vida sob a qual a felicidade pode ser conquistada bastando que um ame ao outro e o considere como seu irmão, tanto quando esteja longe, como esteja junto de si, ou seja, todos devem ser comportar como se fossem irmãos: “Fratelli Tutti”, e não como “sócios”: “O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade”.
Nesse texto, o Santo Padre FRANCISCO analisa, com acentuada percuciência, os problemas com os quais a nossa sociedade moderna e complexa lida “às sombras de um mundo fechado”, tratando de temas de relevo em especial no campo do Direito – e sobretudo do Direito positivo, quando destaca que, conquanto os direitos humanos devam ser universais, eles não são, no momento presente, “suficientemente universais”, porque não são iguais para todos, o que coloca em risco o conceito do direito fundamental que protege e deve proteger a dignidade humana.
Mas o ponto em que essa maravilhosa Encíclica deve ser objeto de uma especial atenção aos operadores do Direito está na profunda e sensível análise que o Santo Padre faz da liberdade econômica e dos momentosos efeitos que ela produz sobre as condições reais de existência de milhões de pessoas:
“Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido. Na realidade ‘enquanto o nosso sistema econômico-social ainda produzir uma só vítima que seja e enquanto houver uma pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal”.
Daí observar o Santo Padre: “(…) se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflito e violência”.
E chegamos assim ao tema jurídico da propriedade, propondo o Santo Padre que se deve repropor a análise de sua função social, o que obriga a todos, e em especial os operadores do Direito, a refletirem sobre o dever do Estado no sentido de que garanta a cada pessoa possa viver com dignidade, dispondo de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral, o que passa, destaca a Encíclica, por se extrair do direito fundamental à propriedade um conteúdo e um alcance que se harmonizem com o direito à dignidade humana, compreendendo-se que “O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática”.
Ouso supor que o Santo Padre, como bom argentino que é, terá pensado no Brasil, ao refletir sobre a imperiosa necessidade de se estabelecer um novo conteúdo do direito fundamental à propriedade, para o harmonizar com outros direitos fundamentais, dado que a nossa Constituição de 1988 terá antecipado o que essa Encíclica afirma, no sentido de que a propriedade atenderá à sua função social, como está expressamente previsto no artigo 5o., inciso XXIII, de nossa Constituição. Daí ter o Papa afirmado que é necessário dar relevância prática a essa norma constitucional.
Vem a propósito lembrar a observação de HEGEL sobre a importância da atividade de interpretação, aliás escrita quando estava a lecionar, já no final de sua vida, sobre o conceito filosófico da Religião: “(…) a interpretação não é mera explicação literal, senão que a elucidação do sentido (…). A mera interpretação literal consiste tão somente em por uma palavra conhecida em lugar de uma desconhecida: pelo contrário, a explicação exegética leva consigo outros pensamentos, mesmo quando objetiva ater-se aparentemente ao sentido. (…). É preciso indicar o sentido que encerram as palavras, porém tal indicação de sentido significa fazer chegar o sentido à consciência, às representações”. (tradução nossa, “El Concepto de Religión”, p. 92, Fondo de Cultura Economica, Mexico).
O que significa dizer que o operador do Direito, ao interpretar a norma constitucional que impõe se observe a função social da propriedade, não se limite a uma interpretação meramente literal, de maneira que busque compreender a razão que, encontrada na realidade material subjacente, permita-lhe extrair o sentimento que deve nortear a aplicação da norma.
A esta altura, certamente o atento leitor atinou a razão pela qual esta Encíclica terá tido pouquíssima divulgação nos meios de imprensa no Brasil.
Em tempo: a Encíclica é verdadeira e não foi escrita por MARX.