CONFLITO DE INTERESSES ENTRE MÉDICO E OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE. LIBERDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO EM PRESCREVER O TRATAMENTO E A LIBERDADE PROFISSIONAL DA OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE DE GLOSAR A PRESCRIÇÃO OU DE A FAZER SUBMETIDA A UMA JUNTA MÉDICA. COLISÃO DE DIREITOS PRIVADOS QUE POSSUEM MATRIZ CONSTITUCIONAL. PREVALECENTE A LIBERDADE DA OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE

Processo número 1004114-97.2021
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital

Vistos.

O autor, (…), qualificado a folha 1, é médico e objetiva nesta demanda que ajuizou contra (…) que se declare a existência de relação jurídica para que se lhe reconheça o direito subjetivo a ter de parte da ré respeitada a sua autonomia médica profissional, nomeadamente para que se lhe reconheça o direito a poder prescrever cirurgias e materiais nela empregados sem que a ré possa glosar tais prescrições ou as fazer submetidas a uma junta médica, sustentando o autor que a ré, quando glosa as prescrições médicas ou quando as submete a uma análise em junta médica está a violar indevidamente a liberdade de atividade profissional do autor, fazendo tabua rasa de sua vasta experiência como médico especialista em Ortopedia e Traumatologia. Adotado o rito comum.

Negou-se a tutela provisória de urgência – e não se registra a interposição de recurso.

Citada, a ré contestou, defendendo a liberdade no exercício de sua atividade profissional, sobretudo porque fundada em dispositivos de lei e de contrato, os quais lhe reconhecem o direito de, nos casos de prescrição médica que considere insubsistente ou inconsistente, submetê-la a uma junta médica para análise e definição técnica, situação que é comum ocorrer e que se aplica a todos os médicos que prestam serviços a pacientes que mantenham com a ré contrato de plano de saúde, o qual prevê expressamente o poder de a ré colher posição de uma junta médica, como também o de glosar a realização de cirurgias quando a nota técnica, emitida pela junta médica, não indicar o mesmo tratamento prescrito, como sucedeu em algumas ocasiões envolvendo o autor, contra o qual não se está a aplicar um procedimento diferenciado, senão aquele que rigorosamente o mesmo aplicado a todos os médicos no que diz respeito à avaliação da prescrição de tratamentos cirúrgicos.

Réplica apresentada.

É o RELATÓRIO.

FUNDAMENTO.

A matéria que forma esta lide é exclusivamente jurídica, o que determina sobrevenha seu imediato julgamento.

Com efeito, a esfera jurídica do autor está submetida a um conflito de interesses que se caracteriza na colisão entre a sua liberdade profissional de médico em prescrever o melhor tratamento, segundo sua posição técnica, e a liberdade de atividade profissional da ré que, como operadora de plano de saúde firma contratos de plano de saúde com alguns pacientes do autor, liberdade de atividade negocial que se materializa quando glosa prescrições lavradas pelo autor, ou as faz submetidas a uma junta médica, sustentando o autor que a ré, ao fazê-lo, avança injustificadamente sobre a sua esfera jurídica de liberdade profissional, desrespeitando as suas prescrições. Há, pois, dois direitos subjetivos envolvidos na demanda e ambos fundam-se e se fundamentam na liberdade prevista em norma de matriz constitucional.

E quando há um conflito entre dois direitos subjetivos que, embora de natureza privada, contam com uma proteção constitucional, como no caso presente, a técnica a aplicar-se para a solução desse tipo de colisão entre direitos é o princípio da proporcionalidade com as suas formas de controle, mas em especial pela ponderação dos interesses em conflito segundo as circunstâncias extraídas da relação jurídico-material.

O mais destacado autor que tem tratado da colisão entre direitos fundamentais no campo do direito privado é o alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, e sua doutrina está exposta em seu livro “Direitos Fundamentais e Direito Privado”, que em boa parte segue a teoria construída por ROBERT ALEXY aplicada ao campo do direito público. Basicamente, afirma CANARIS, que, instalando-se um conflito entre direitos fundamentais privados e com previsão constitucional, há que se ponderar os interesses em conflito, definindo um mínimo razoável em favor de cada direito, de modo que não se esvazie o conteúdo de um direito fundamental em favor do outro, de modo que se deve estabelecer um parâmetro de proteção mínima.

No caso em questão, conquanto se reconheça o direito do autor em poder prescrever procedimentos e técnicas cirúrgicas conforme lhe pareçam as mais convenientes e necessárias segundo a sua livre convicção, isso não significa que o exercício desse direito seja absoluto, tanto quanto é absoluto o querer o autor que a ré não possa contrastar as suas prescrições médicas, pois que, como empresa que opera regularmente na área de planos de saúde, a ré possui a liberdade de reexaminar tais prescrições, seja para as fazer submetidas a uma junta médica, seja mesmo para glosar aquelas que entenda inconsistentes ou inconclusivas, ou mesmo equivocadas. E o fato de a ré assim o poder fazer não significa que esteja a desrespeitar a liberdade do autor, senão que está a exercitar algo que é imanente à sua liberdade profissional, tanto quanto lhe garantem as normas de nosso direito positivo.
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Importante observar que a Ciência Médica não é uma ciência exata a ponto de comportar uma só posição técnica como aquela que seja a única correta como via terapêutica a adotar-se. Há, pois, inúmeras situações para as quais há alternativas terapêuticas. Há técnicas, há procedimentos e existem posições médicas bastante divergentes entre si, situação, aliás, bastante normal àquele que exerce a medicina como é o caso do autor, que a exerce há dezoito anos. Assim, a ré, quando exerce o direito de liberdade para glosar prescrições do autor, como também para as submeter a uma junta médica, está legitimamente a exercer a sua liberdade imanente à exploração de seu negócio, que, aliás, é regulado por leis e atos normativos de uma agência reguladora, que garantem à ré o direito de não acolher as prescrições médicas, quando dispõe de uma nota técnica firmada por uma junta médica que contraindique o tratamento ou o procedimento prescrito.

Destarte, pretender o autor obliterar o direito da ré no poder glosar as prescrições médicas ou de as fazer submetidas a uma junta médica, é colocar a esfera jurídica da ré aquém de um mínimo razoável. E por isso é improcedente o pedido.

POSTO ISSO, JULGO IMPROCEDENTE o pedido, e assim este processo é extinto, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

Condeno o autor no reembolso à ré do que esta despendeu com despesas processuais, com atualização monetária desde o respectivo desembolso. Condeno o autor também em honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, devidamente corrigido.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 22 de setembro de 2021.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO