Processo número 1001779-42.2020
Juízo da 1ª. Vara Cível – Foro Regional de Pinheiros
Comarca da Capital
Vistos.
Insurge-se o autor, (…), qualificado a folha 1, em face da recusa da ré, (…), em custear o procedimento cirúrgico e o material que nela será utilizado, conforme prescrição do profissional que cuida do tratamento do autor, sustentando o autor que é ilegal essa recusa, ainda que esteada em junta médica que a ré instalou, porquanto há que prevalecer a prescrição. Adota-se o rito comum.
A tutela provisória de urgência foi a princípio concedida, mas depois revogada, conforme decidido a folha 414. Não se registra a interposição de recurso.
Citada, a ré contestou, defendendo a prevalência das cláusulas que preveem a cobertura médica, e aquelas que a excluem, alegando que o contrato prevê a possibilidade de, em havendo divergência de natureza científica ou técnica quanto à indicação de procedimentos e de emprego de materiais em cirurgia, pode a ré fazer instalar uma junta médica, do se desincumbiu, sendo que a junta médica constatou “a falta de pertinência de todos os procedimentos e materiais” solicitados pelo autor, o que justifica a recusa.
Réplica apresentada.
Saneado o processo, determinada a realização de perícia, que se materializou no laudo de folhas 533/551, complementado as folhas 574/579.
Encerrada fase de instrução, as partes apresentaram memoriais.
É o RELATÓRIO.
FUNDAMENTO e DECIDO.
Beneficiário de contrato de plano de saúde empresarial, o autor submetera-se a um procedimento cirúrgico com o objetivo de que houvesse a correção de uma deformidade em sua maxilo-mandibular, e como houvesse estivesse a apresentar, após aquele ato cirúrgico, dor, inchaço e inflamação na área operada, submeteu-se a uma avaliação com cirurgião especialista, o qual concluiu pela necessidade de que o autor se submetesse a uma nova cirurgia. O autor tivera o integral custeio pela ré do primeiro procedimento cirúrgico, mas assim não sucedeu com a segunda cirurgia, de modo que ajuizou esta demanda com o objetivo de que se declare existir a cobertura contratual, para que a ré custeie também o segundo procedimento cirúrgico, bem como todos os materiais que nela devam ser empregados.
A ré sustenta que o contrato prevê a possibilidade de instalar-se uma junta médica, quando há divergência quanto à indicação do procedimento, e a conclusão da junta médica considerou não haver a necessidade da segunda cirurgia, o que a conduziu a negar a cobertura contratual.
Observe-se porque de relevo que o autor obtivera no início desta ação a tutela provisória de urgência, mas se a revogou depois.
Não há matéria preliminar que penda de análise.
Quanto ao mérito da pretensão, pois.
Não controverte o autor, nos limites desta demanda, quanto à validez formal da cláusula contratual que concede à ré o direito de fazer instalar uma junta médica, quando se constata divergência de natureza científica ou técnica. Controverte, sim, quanto à validez do ato da ré que, esteado no parecer da junta médica, negou a cobertura contratual.
Havendo, pois, controvérsia fática quanto à pertinência de natureza médica quanto à realização do segundo procedimento cirúrgico, determinou-se a realização de perícia, a qual detalhou os principais aspectos que envolveram a patologia inicial, aquela instalada após o primeiro procedimento cirúrgico, analisando nesse contexto qual fora a indicação do profissional que prescrevera a segunda cirurgia, e cotejando essas razões técnicas com aquelas que a junta médica instalada pela ré apresentara, quando entendeu que não havia indicação clínica que pudesse justificar a necessidade da segunda cirurgia.
O perito cuidou procedeu a um exame clínico no autor, identificando o quadro que descreveu a folha 539, a partir do qual pôde cotejar as posições técnicas de ambas as partes.
Em seu exame clínico, e amparado pela documentação produzida, constatou o senhor perito que houve complicações pós-cirúrgicas, causadas sobretudo “pela ação e tônus musculares e pelo deslocamento e torque condilares”, quiçá, segundo o perito, por uma falta de fixação com justeza e precisão dos parafusos colocados na primeira cirurgia (folha 544).
Enfatizou o senhor perito que “o insucesso na cirurgia está baseado na recidiva da discrepância dento-esquelética”, e ainda, que o exame sugere existir um quadro de sinusopatia (folha 545).
Afastando existir alguma falha do profissional que realizou o primeiro procedimento cirúrgico, concluiu o senhor perito que o segundo procedimento cirúrgico é indispensável para retratamento da recidiva da discrepância maxilo-mandibular, de modo que está correta, na visão do perito, a prescrição apresentada pelo autor para que venha a se submeter a uma segunda cirurgia, na qual serão empregados os materiais prescritos, sendo estes indispensáveis, como o senhor perito afirmou a folha 546.
Diante desse quadro, acolhendo-se a posição do senhor perito, minudentemente exposta em seu laudo, amparada no resultado do exame clínico a que submeter o autor e também na documentação apresentada, julgo procedente o pedido, declarando inválido o ato da ré que recusou a cobertura contratual, tanto para o custeio da realização do segundo procedimento cirúrgico, quanto para o custeio do material que nessa cirurgia será empregado.
Quanto à análise jurídica desta demanda, devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje consolidada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas de direitos fundamentais, a serem compreendidos nesse contexto como imperativos de tutela, projetando efeitos sobre as relações jurídico-privadas, quando estas estão a ser interpretadas e aplicadas, de modo que o conteúdo e a extensão dos direitos fundamentais passam a atuar como importante material hermenêutico para a interpretação e aplicação de normas contratuais.
Destarte, com a necessária aproximação metodológica do Direito Civil ao Direito Constitucional, estabeleceu-se o entendimento de que no campo do direito privado deva ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de tutela e, assim, de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.
No caso em questão, perscruta-se se a esfera jurídica do autor não estaria sob uma ineficaz proteção, ou seja, aquém de um mínimo razoável e justo, na hipótese em que prevaleça a liberdade contratual em favor da ré, quando negou a cobertura contratual. Essa é a análise que é aqui feita, aplicando, como dito, o direito fundamental à saúde, previsto em nossa Constituição de 1988 em seu artigo 196, como um imperativo de tutela, atuando assim como material hermenêutico na interpretação e aplicação das normas contratuais que envolvem o autor e a ré.
A perícia, conforme enfatizado, constatou a pertinência e a necessidade de o autor submeter-se a um segundo procedimento cirúrgico, a partir do que devemos considerar que o artigo 196 da Constituição de 1988 garante ao paciente o melhor tratamento médico possível, o que evidentemente abarca o direito de se utilizar das técnicas médicas mais aprimoradas, e dos serviços de natureza médica, quando necessários e indispensáveis, como no caso em questão.
Esse é o conteúdo que se deve extrair desse direito fundamental, constituindo aqui um imperativo de tutela, funcionando como importante material hermenêutico, para que possamos interpretar as regras contratuais que vinculam o autor e a ré.
Sempre de relevo sublinhar que, com a aproximação do Direito Civil à Constituição, tornou-se óbvio que a liberdade contratual não é absoluta, pois que deve ceder passo quando imperativos de tutela projetam um conteúdo hermenêutico que influencia a interpretação de normas contratuais, afetando, em consequência, a liberdade contratual, que pode ser legitimamente coarctada, quando a intepretação das cláusulas contratuais isso impõe, como neste caso, porque se reconhece em favor do autor submeta-se ao segundo procedimento cirúrgico, indispensável para a correção da patologia que ora experimenta.
Sobreleva também considerar que a relação jurídico-material objeto desta demanda está sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, cujos princípios e regras robustecem o resultado da ponderação entre os interesses aqui em conflito.
POSTO ISSO, ponderando os interesses em conflito, entendo que a liberdade contratual, na medida em que a ré a invoca, colocaria, se prevalecente essa medida, a posição jurídica do autor aquém de uma proteção mínima, e por isso, interpretando as normas contratuais, e as aplicando diante dos argumentos que foram mencionados, decido deva prevalecer a posição jurídica do autor, de modo que lhe reconheço o direito a contar com a cobertura contratual tanto para que a ré custeie integralmente a realização da segunda cirurgia, quanto para que a ré custeie todo o material a ser utilizado nessa cirurgia, de modo que JULGO PROCEDENTE o pedido, concedendo a tutela provisória de urgência, agora sob a forma de tutela antecipada, de tal forma que comino à ré a obrigação de, em dez dias, autorizar a realização do procedimento cirúrgico, custeando-o integralmente, bem assim quanto ao material que nesse procedimento deva ser empregado. Recalcitrante, a ré suportará multa diária de R$20.000,00 (vinte mil reais). Declaro a extinção deste processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Condeno a ré a reembolsar o autor do quanto tenha despendido com a taxa judiciária e despesas processuais, com atualização monetária a partir do desembolso. Condeno a ré também no pagamento de honorários de advogado, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valora atribuído à causa, devidamente corrigido.
Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.
São Paulo, em 27 de maio de 2021.
VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO