Interessantes e atuais questões são analisadas no contexto da decisão, que abaixo se reproduz.
O caso: alegando a pandemia como um fato extraordinário e imprevisível, a locatária quer obter provimento jurisdicional que declare a extinção do vínculo do contratual, tendo pleiteado, e obtido, a concessão de uma tutela provisória de urgência que lhe permitiu proceder à entrega das chaves. A locadora, por sua vez, sustenta não haver prova de que a pandemia terá efetivamente produzido sobre a relação contratual os efeitos que a locatária afirma, ou não ao menos na extensão alegada, tendo por isso pedido que a tutela provisória de urgência fosse mantida, mas circunscrita a pôr fim à relação contratual, mas sem avançar sobre as causas da extinção dessa relação contratual e efeitos da avença, sobretudo para não se autorizar que a locatária seja dispensada de cumprir as cláusulas inerentes a encargos que decorrem da extinção do contrato.
São três os aspectos que estão em análise na decisão: um de conteúdo exclusivamente processual diz respeito à competência do foro regional em face do tipo de ação, com a análise da norma de direito local; o segundo aspecto, que também pe de direito processual, refere-se à natureza jurídica da tutela de urgência, dados os efeitos materiais produzidos no caso, sendo este o terceiro aspecto analisado, pois que se enfatizou a distinção entre a resolução e rescisão do contrato e quais efeitos podem decorrem de um e de outro institutos, na conformação que a eles deu o Código Civil de 2002. Destaca-se, aliás, que essa distinção foi sublinhada na Exposição de Motivos ao Código Civil de 2002, como consta relatório da lavra de MIGUEL REALE.
Abaixo o texto da decisão:
Vistos.
1. De primeiro, quanto à competência, é de se observar que, nos termos da Resolução 2/1976, do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em se tratando de ações de “despejo, renovatórias e negatórias de renovação de locação”, independentemente do valor atribuído à causa, a competência absoluta é do foro regional, e não do foro central desta Capital. A norma em questão é meramente exemplificativa, na medida em que do texto legal não consta todas as hipóteses de ação que têm origem e fundamento jurídico na relação jurídico-material de locação, abarcando-as todas elas por interpretação extensiva. Assim, independentemente do valor que se atribui, ou que se deve atribuir a esta causa, como o fundamento jurídico da demanda radica diretamente na relação de locação, a competência absoluta é desta Vara.
2. Como todo texto, uma decisão judicial deve ser submetida a interpretação, quando se busca determinar seu conteúdo e alcance, sobretudo quando exista dúvida sobre o resultado que se deve extrair da intelecção do texto. No caso da decisão proferida as folhas 141/142, não resta claro se a tutela provisória de urgência concedida em favor da autora teve finalidade meramente assecuratória, de mera proteção a um suposto direito subjetivo, ou se sua finalidade foi antecipar o provimento jurisdicional, em consequência de se ter identificado verossimilhança, ou melhor, convicção de que o direito subjetivo invocado pela autora existe.
Nesse contexto, sobreleva considerar a relação jurídico-material objeto da demanda, a causa de pedir, e nomeadamente o pedido, importante aspectos quando se está no terreno das tutelas provisórias de urgência, porque como ressalta a melhor doutrina determinados tipos de provimento jurisdicional não se harmonizam com a tutela antecipada, como se dá em especial com o provimento meramente declaratório, que por objetivar alcançar a certeza jurídica, apenas com o trânsito em julgado os efeitos desse tipo de provimento podem ser produzidos, ao tempo, pois, que a certeza jurídica pode ser obtida. O provimento constitutivo também é refratário à tutela antecipada, porque, modificada ou extinta uma determinada relação jurídica, seus efeitos podem se tornar irreversíveis no plano fático. Por isso é que a doutrina assinala que, nesses provimentos jurisdicionais (declaratório e constitutivo), o que se pode antecipar, ou conforme a melhor técnica, o que se pode proteger radica apenas em efeitos paralelos da relação jurídico-material objeto da lide.
No caso dos autos, a causa de pedir refere-se a experimentar a autora um acontecimento no mundo fático que deve se caracterizar, segundo a autora, como extraordinário e imprevisível, qual seja, a pandemia pelo “Covid”, que produziu momentosos efeitos sobre a relação jurídico-contratual e seu equilíbrio, de modo que a autora quer que se declare extinta a relação jurídico-contratual. Se consideramos uma interpretação literal do texto da decisão, conclui-se-á que a tutela provisória de urgência acolheu esse pedido, na medida em que autorizou a entrega das chaves, o que, no mundo fático-jurídico, produziu o efeito de extinguir a relação jurídico-contratual, efeito concretizado no ato praticado pela ré de recebimento das chaves. O que significa dizer que a relação jurídico-contratual está extinta.
Mas é necessário perscrutar e definir o que causou a extinção da relação contratual, se uma causa que caracterize o instituto da “rescisão”, ou da “resolução”, institutos que, no Código Civil de 1916, não apresentavam diferenças tão nítidas a ponto que o legislador, naquele código, tivesse as demarcado, falha que foi corrigida no Código em vigor, como cuidou destacar MIGUEL REALE na “Exposição de Motivos” ao Código de 2002: “Forçoso foi, por conseguinte, introduzir na sistemática do Código algumas distinções básicas como, por exemplo (…) resolução e rescisão dos contratos”. Será necessário definir, pois, em azado momento (em sentença), se a relação jurídico-material foi extinta por resolução ou por rescisão, com os efeitos daí decorrentes. Que a relação jurídico-material de locação está extinta, isso não mais se pode discutir, porquanto a decisão pela qual foi concedida a tutela provisória de urgência isso o determinou.
Teria sido concedida, pois, uma tutela provisória de urgência de natureza antecipada, dado que a relação contratual foi por ela declarada extinta? Não é a resposta, na medida em que não a decisão não definiu, nem o poderia, se é caso de resolução ou de rescisão, e que efeitos daí deveriam sobrevir. Pode-se afirmar, portanto, que o efeito projetado por aquela decisão é de proteção a um suposto direito subjetivo da autora, por se ter considerado juridicamente plausível a alegação de que a relação contratual experimentara importantes efeitos decorrentes da pandemia, um acontecimento tido como extraordinário e imprevisível.
Mas em sendo cautelar, e não antecipatória a decisão, surge uma relevante questão, que diz respeito a que efeitos essa decisão produz em termos de obrigações contratuais, porque não se pode ainda estabelecer que concretos e específicos a pandemia produziu sobre a relação contratual mantida entre as partes, e em que proporção tais efeitos sobrecarregaram a posição contratual da autora e da ré. É agir com açodamento dizer que a autora os tenha em maior grau, sem a produção de provas que amparem essa conclusão. Provas que por ora não foram produzidas, e nem o poderiam ter sido já que estamos em cognição sumária. Destarte, como não se pode estabelecer, sequer por meio da plausibilidade jurídica, que a autora tenha, ela sozinha ou em maior grau, experimentado efeitos na relação contratual decorrentes da pandemia, identifico razão no que obtempera a ré, no sentido de que, extinta a relação contratual, além da multa, outros encargos derivados do fim do contrato seriam exigíveis, tanto quanto a multa, esta reduzida de metade, conforme a mencionada decisão. Assim, acolho, em parte, a argumentação da ré no sentido de obrigar a autora a proceder ao depósito de metade do valor relativo aos demais encargos expressamente previstos para a hipótese de extinção contratual. Mantenho, em parte, a decisão pela qual foi concedida a tutela provisória de urgência, mas a seu conteúdo cuido acrescer que a tutela provisória de urgência concedida é de natureza cautelar, e não antecipatória, e que, extinta a relação contratual, obriga-se a autora a proceder ao depósito de metade de todos os valores que decorrem da extinção da relação contratual, previstos na avença, tratando-se de uma consequência lógica, dado que, incidente a multa, os demais encargos também se podem exigir, com a ressalva de que se trata de um efeito decorrente da tutela cautelar concedida. Providencie a autora, em dez dias, ao depósito desses valores, discriminando-os.