ENSAIO SOBRE A EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE.

SUMÁRIO: I – A QUESTÃO TERMINOLÓGICA. II. O CONTRADITÓRIO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO. III. REGIMES DE DEFESA E DE CONTROLE NO PROCESSO DE EXECUÇÃO. IV. CAMPO COGNITIVO E PROCEDIMENTO.

 

I. A QUESTÃO TERMINOLÓGICA.

Há, com efeito, figuras jurídicas tão polêmicas que a controvérsia que as envolve inicia-se já pela denominação que se lhes possa dar, com reflexos até mesmo no campo que os lingüistas chamam de “formação de palavras”. É o caso da exceção de pré-executividade, mais comumente denominada pelos processualistas brasileiros como objeção de pré-executividade, ou ainda como exceção de preexecutividade, assim aglutinada e sem hífen. É a controvertida figura que constitui objeto deste ensaio.

De primeiro, convencionemos adotar, nos limites deste estudo, a denominação mais apropriada segundo as regras da Língua Portuguesa e consubstanciadas no Formulário Ortográfico do Brasil, que exigem o emprego do hífen nos vocábulos formados pelo prefixo “pre” de origem latina (“prae”), que significa uma posição de anterioridade ou de antecedência, com acento próprio (“pré”) imposto por conta de sua pronunciação (com o “e” aberto), e sem aglutinação com o segundo elemento (no caso, “executividade”).1

Exceção aqui entendida como uma forma processual de defesa de mérito, de acordo com o uso que nos foi legado pelo Direito Romano, que nesse campo – o da defesa –, cedo compreendeu a necessidade de permitir-se ao demandado não apenas o direito de opor-se ao fundo do direito, negando-o, mas também o de atacar a organização formal do processo.

Assim é que o instituto da “exceptio” aparece no processo romano da época clássica (em um processo de caráter privado, pois) como resultado do elastério da função do pretor, que passou a conceder ao demandado a possibilidade de intentar contra o demandante uma pretensão contrária por via da “exceptio”, sem a necessidade de propor uma nova ação.2 A propósito, observa IHERING que não há como investigar-se o móvel dessa flexibilidade dos mecanismos de defesa, se ela se originou do receio de que fosse obliterada a simplicidade do processo com a acumulação de ações, ou se ela obedeceu a uma consideração moral ou de política legislativa.3

Daí a opção por denominar-se o instituto aqui em estudo como exceção de pré-executividade, a explicitar incontinenti que se cuida de uma forma de defesa antecipada do devedor, a ser utilizada quando se trata de alegar que infundada a execução proposta, entendida em seu sentido substancial (direito material).

A infirmar a razão daqueles que, como BARBOSA MOREIRA, acoimam a terminologia adotada (exceção de pré-executividade), pretextando que não é possível conceber-se a existência de um “processo pré-executivo”.4 É que pela exceção de pré-executividade realiza-se não um controle da legitimidade formal dos atos executivos processuais (sob o prisma da relação jurídico-processual), senão que por ela o devedor submete ao juiz o controle da subsistência da pretensão material executiva (a “anspruch” de que falam os civilistas alemães), questão logicamente antecedente à da validez formal do processo, a justificar, assim, a adequação do prefixo “pré”, com ele indicando que se está a provocar, no processo, a análise de uma questão (a da executividade material), que é anterior à da existência da relação jurídico-processual.

Destarte, que denominação mais adequada poderia ser utilizada para designar a defesa do executado que, sob a forma de uma questão prejudicial (“quaestio praejudicialis”), alega que infundada a pretensão material executiva que lhe é dirigida e que é objeto de um processo de execução, senão que a denominando exceção de pré-executividade?

Superada a questão terminológica, perscrutemos agora acerca das matérias que podem ser validamente veiculadas por meio da exceção de pré-executividade, que faz instaurar no âmbito do processo de execução um legítimo e eficiente controle de subsistência da pretensão material executiva.

Advirta-se, por oportuno, que como se trata de um ensaio, evidentemente que algumas das críticas e soluções apresentadas podem não se revelar definitivas, nomeadamente em face da inexistência de regulação legal, como ocorre no Brasil.

II. O CONTRADITÓRIO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO.

Ao tempo em que descortinada a autonomia da ação, foram os processualistas conduzidos ao paroxismo de negarem qualquer relação possível entre o processo e o direito material. Coube a CARNELUTTI, gênio versátil, a tarefa de apontar o equívoco dessa idéia, demonstrando como eram mais próximas do que se poderia lobrigar as relações entre o processo e o direito material nele subjacente, desencadeando a emblemática fase do instrumentalismo, com reflexos sobre vários institutos que se localizam em área limítrofe entre o direito material e o direito processual (caso da prescrição, por exemplo).

Mas os efeitos dessa nova visão do processo ficaram durante muito tempo rigorosamente circunscritos ao processo de conhecimento, e nomeadamente à ação de provimento declaratório, base de experimentos dos processualistas, que preocupados apenas com o valor da “segurança jurídica”, acabaram por obstar que aqueles efeitos tivessem uma dimensão adequada, não permitindo, por conseqüência, que o processo se tornasse um efetivo instrumento de tutela do direito material.

É nesse contexto que se engendrou a teoria que buscou demonstrar a distinção ontológica entre os processos de conhecimento e de execução, como se extrai da posição de LIEBMAN, influenciada pelos ideários do liberalismo, que defendiam uma posição de neutralidade do juiz no processo de conhecimento – neutralidade, contudo, que não deveria existir no processo de execução, para o qual, por conseqüência, o princípio do contraditório não era de aplicar-se:

A função jurisdicional consta fundamentalmente de duas espécies de atividades, muito diferentes entre si: de um lado, o exame da lide proposta em juízo, para o fim de descobrir e formular a regra jurídica concreta que deve regular o caso; de outro, as operações práticas necessárias para efetivar o conteúdo daquela regra, para modificar os fatos da realidade de modo a que se realize a coincidência entre a regra e os fatos. Por conseguinte, a natureza e os efeitos dos atos relativos diferem profundamente; na cognição a atividade do juiz é prevalentemente de caráter lógico: ele deve estudar o caso, investigar os fatos, escolher, interpretar e aplicar as normas legais adequadas, fazendo um trabalho intelectual, que se assemelha sob certos pontos de vista, ao de um historiador, quando reconstrói e avalia os fatos do passado. (…) Na execução, ao contrário, a atividade do órgão é prevalecentemente prática e material, visando produzir na situação de fato as modificações aludidas acima (tanto assim que esta atividade é confiada em parte aos órgãos inferiores do aparelhamento judiciário).5

Com base nessa suposta distinção, concluía a doutrina processual que o contraditório não existia no processo de execução, e que eventual controvérsia provocada pelo devedor somente poderia manifestar-se em novo processo de cognição de caráter incidente: nos embargos à execução.

Pode-se perceber, sem dificuldade, que esse posicionamento teve origem na prevalência da idéia, também capitaneada por LIEBMAN, de que não havia lide no processo de execução:

A execução tem sempre objetivo unívoco: satisfazer o direito do exeqüente; objetivo que poderá deixar de ser atingido unicamente na medida em que a execução resultar infrutífera.

“Desse modo, objeto do processo de execução não é a lide, que já foi resolvida; é o pedido do exeqüente para a realização das atividades necessárias à efetivação da regra sancionadora formulada no título executório”.6

Para melhor compreender as conseqüências desse posicionamento, que sustentava a inexistência de lide no processo de execução, podemos partir da tese desenvolvida pela doutrina tradicional de que deveria haver uma necessária relação dialética entre os processos de conhecimento e de execução, o que, contudo, não significava pudesse haver, segundo a doutrina tradicional, a reunião no processo de conhecimento de atividades cognitivas e executivas, ou que no processo de execução fosse dado ao juiz o poder de julgar. A dizer: a lide deveria ser antes examinada e decidida no processo de conhecimento, restando ao processo de execução a tarefa de tão-somente implementar materialmente o que naquela sede (cognição) ficara definitivamente decidido.

Com isso, estreitaram-se os limites do processo de execução, tido como um processo sem contraditório, sem julgamento, e conseqüentemente, sem jurisdição – e por sobre isto é que se eclipsou seu desenvolvimento científico, segundo preciso diagnóstico de CARNELUTTI:

A verdade é que a noção de execução processual tem sido até agora muito menos elaborada que a da cognição; o processo executivo não tem de modo algum importância menor que o processo cognitivo, mas o nível a que chegaram em relação a ele a técnica e a ciência é notavelmente inferior; o que se deve ao fato de que a função processual se tem diferenciado historicamente antes em relação à cognição que em relação à execução; até pouco tempo tinha-se ignorado inclusive que o processo cognitivo e o processo executivo fossem duas espécies do mesmo gênero. (…)”.7

Apenas recentemente é que o processo de execução ganhou consistência metodológica, claro está quando os processualistas passaram a se preocupar mais acentuadamente com a questão da efetividade da tutela jurisdicional. Mas, paradoxalmente, um verdadeiro avanço somente ocorreu a partir da prevalência da idéia de que o processo de execução pode e deve, em muitas vezes, ser dispensado, de modo que se reúnam, em um só processo, as atividades cognitivas e executivas.

Como se cada processo cedesse ao outro seu núcleo mais aprimorado: o processo de conhecimento, seu contraditório; o processo de execução, sua natural tendência à implementação prática do direito material.

De fato, a aproximação do processo de execução com o processo de conhecimento proporcionou que este último se tornasse mais efetivo, ao dotar o juiz do poder de exercer atividades cognitivas e executivas conjugadas em um só processo (no de conhecimento), como decorrência da utilização das técnicas da tutela de emergência e da mandamentalidade (CPC, artigos 461 e 644), com evidente economia de tempo. E como enfatizava IHERING, as exigências de verdadeira justiça não se medem somente pelo que é dado em termos de provimento jurisdicional, mas também pelo tempo em que é dado.8

Sob o enfoque do processo de execução, a maior contribuição recebida do influxo causado pela aproximação metodológica com o processo de conhecimento tem como fonte o fato de ao processo de execução ter sido dada posse dos princípios fundamentais do Direito Processual Civil, até então reservados ao processo de conhecimento. O que fez com o processualista se desse conta do elementar: que o princípio do devido processo legal também é de ser aplicado ao processo de execução.

Um dos primeiros passos nesse caminho foi o de admitir-se a existência do contraditório no processo de execução. Reconheceu-se, com efeito, que o contraditório é uma exigência política e, por conseqüência, que o sistema jurídico-constitucional nega legitimidade ao provimento quando seus destinatários não tenham sido admitidos a participar de sua preparação, com as influências lícitas que cada um possa trazer no contexto do exame da lide em juízo, como destaca DINAMARCO, precursor dessa posição no direito brasileiro.9

Afinal, como sublinha LUHMANN, uma das mais surpreendentes características dos processos judiciais é que neles a ação é contraditória, isto é, que neles se permite uma ação dirigida contra a dos outros: “Cada parte dá ao outro como que um salvo-conduto para a oposição, sem que com isso se influencie a solução do conflito. Nessa medida o princípio da igualdade das partes é um princípio fundamental do processo jurídico”.10

À vista disso, como negar ao demandado, sem que ocorra violação ao princípio do devido processo legal, a oportunidade e o mecanismo azados para que possa questionar a subsistência da pretensão material que contra si é exercida no processo de execução, nomeadamente quando se sabe que nesse tipo de processo o juiz atua com medidas de acentuado poder lesivo, como se dá com a penhora, hoje difundida por vários meios, alguns de questionada constitucionalidade?11

III. REGIMES DE DEFESA E DE CONTROLE NO PROCESSO DE EXECUÇÃO.

É curial, portanto, que ao executado deva-se conceder a possibilidade de utilização de adequado mecanismo processual que lhe permita contrapor-se à execução, seja para alegar que infundada ou insubsistente a pretensão material, seja para acoimar a validez formal do processo, que se lhe fez instaurado. Esses são os dois regimes de defesa e de controle de subsistência da pretensão material executiva e da regularidade formal do processo, cuja presença no processo de execução o princípio do devido processo legal impõe (CF, artigo 5º., inciso LIV).

Regimes que, de resto, provêm da célebre distinção alcançada por ADOLF WACH quando descortinou a autonomia da ação processual, logrando demonstrar a separação conceitual entre direito material e processo. Distinção, contudo, que no processo de conhecimento não foi bem compreendida em seus efeitos, porquanto a partir dela os processualistas defenderam uma autonomia absoluta do processo, revelando um injustificado desinteresse pela solução da lide (de direito material) nele subjacente.12 Somente a frutuosa fase instrumentalista é que permitiu superar esse palmar equívoco.

No caso do processo de execução, as coisas se passaram de forma diferente, mas não sem menor prejuízo. Com efeito, enquanto no processo de conhecimento desprezava-se injustificadamente o direito material, no processo de execução este sobrelevava em dimensão maior do que a adequada, porquanto com isso se suprimia do executado o direito de defesa. É que se desenvolveu a falsa idéia de que a execução tenderia sempre à satisfação do credor, como se não houvesse possibilidade de o direito do credor não existir. A esse respeito, observa OVÍDIO BAPTISTA: “A pretendida identidade entre execução e processo executório parte da suposição de que o processo executivo seja apenas uma série coordenada de atos materiais, cujo desenvolvimento pudesse ter curso inexorável”.13

Natural, nessas circunstâncias, que se eliminasse do processo de execução o contraditório.

Admite-se como verdadeiro o fato de que na grande maioria dos casos revela-se subsistente a pretensão material veiculada em processo de execução, especialmente em face da necessidade imposta por lei de que o credor se faça apresentar, desde o início do processo, munido de título executivo. Mas ainda assim a hipótese em que a pretensão material executiva seja, por diversas causas, infundada, não pode ser excluída.14 Considere-se apenas e singelamente a hipótese de pagamento.

A custo, pois, é que se compreendeu a necessidade de distinguir-se no processo de execução o direito processual de proceder do direito substancial de agir, tal como sucede no processo de conhecimento. A dizer: é imperioso atinar com a distinção entre a ação processual e o direito substancial, como direitos subjetivos distintos que são, mas que mantêm entre si uma relação indissociável que é caracterizada no processo, entendido este como um instrumento de tutela dos diversos direitos materiais, quando efetivamente existentes. A respeito, CELSO NEVES:

De outro lado – é, ainda, magistério de Liebman – a ação é verdadeiro direito instrumental, enquanto a lei garante a prolação, pelo órgão jurisdicional, de um provimento que tenha por objeto a demanda proposta, determinado, em seu conteúdo, pelo maior ou menor fundamento da própria demanda. Já o fato de que o demandante tenha razão e deva, portanto, obter o que pediu não consubstancia, no processo, um novo e diverso direito, mas, isto sim, uma qualificação particular da ação que, além de existente, resultará fundada – ou infundada, no caso contrário”.15

Perscrutemos, em paralelo, o que se dá com o processo cautelar, cujo objeto não é apenas o direito processual radicado na utilidade do provimento jurisdicional a obter-se no processo principal, mas também o direito substancial de agir, questão, contudo, que se situa em plano distinto e anterior ao do plano processual.

Tudo considerado para concluir-se que não há, nesse particular, nenhuma diferenciação de regime entre os processos de conhecimento, de execução e cautelar, visto que em todos impera a distinção entre a pretensão substancial e o direito processual de ação.

Na doutrina italiana, a distinção entre a pretensão material executiva e ação processual foi de há muito desenvolvida, nomeadamente por ENRICO REDENTI, malgrado assente em uma incorreta premissa, que é aquela de afastar a possibilidade de julgamentos de mérito no processo de execução. Com efeito, sob color da existência de títulos executivos de formação extrajudicial, sustentava o conhecido processualista italiano que a ação executiva em sentido substancial era autônoma e separada da ação processual, porque bastava considerar, segundo ele, a possibilidade de prescindir-se do processo de conhecimento para a execução desses títulos,16 o que não deixa de corresponder à realidade, mas a uma realidade apenas parcial. É que do fato de a lei prever a possibilidade de se suprimir o processo de conhecimento para a execução de alguns créditos, consubstanciados em títulos executivos extrajudiciais, não advém a conclusão de que se possa eliminar o contraditório no processo de execução, senão que apenas se comprova que, de fato, a pretensão material executiva é distinta da pretensão processual. Mas essa distinção também existe quando o processo de conhecimento precede o de execução, visto que aqui igualmente existem as duas pretensões (material e processual), como, aliás, o próprio REDENTI reconheceu.17

O que nos indica que no processo de execução há o exercício de uma pretensão à tutela jurídica, que é um conceito pré-processual dissociado do conceito de pretensão processual.18

Pretensão material que pode, portanto, revelar-se infundada, a despeito da validez do processo de execução, a robustecer a necessidade de que se criem dois regimes de defesa à disposição do executado, como de há muito é adotado pelo direito italiano, embora prevendo para ambos os regimes a utilização dos embargos de devedor como veículo processual, resultado, sem dúvida, da vetusta tendência de obstar qualquer expressão de contraditório no processo de execução.

Assente, hoje, que o princípio do devido processo legal aplica-se ao processo de execução, tem-se daí a impossibilidade de se eliminar o contraditório nesse tipo de processo, nomeadamente em face dos momentosos efeitos que dele são projetados e que atingem a esfera jurídica do demandado.

É chegada a hora, pois, de a doutrina conviver pacificamente com a idéia de que o executado pode, no bojo do processo de execução, controverter sobre a subsistência da pretensão material, antes de discutir, em embargos, a validez da relação jurídico-processual. Precisamente para esse tipo de discussão, autorizada pelo princípio do devido processo legal, é que se presta a exceção de pré-executividade.

IV. CAMPO COGNITIVO E PROCEDIMENTO.

Malgrado tenha LIEBMAN sido o principal processualista a rejeitar a existência do contraditório no processo de execução, dele partiu o critério mais seguro para identificar-se o campo cognitivo da exceção de pré-executividade. Mas não se imagine encontrar esse critério nas obras por ele produzidas acerca do processo de execução,19 que não se o encontrará.

Com efeito, ao escrever sobre o tema da coisa julgada, campo em que demonstrou a sua insuperável capacidade de processualista, afirma LIEBMAN:

A respeito deles [referindo-se aos efeitos da coisa julgada], não se pode, todavia, distinguir, como para o processo de conhecimento, entre provimentos sobre o processo e sobre o mérito: todos eles provêem sobre a ação executória, não para declará-la fundada ou infundada (tema este estranho e logicamente antecedente à execução), mas porque tendem a satisfazê-la progressivamente”.20

Mais claro impossível. Cuidando dos efeitos da coisa julgada no processo de execução, admite LIEBMAN que há um tema que é estranho e logicamente antecedente ao processo de execução e que diz com o declarar-se a execução fundada ou infundada. O que equivale a reconhecer que há questões que se referem não ao processo de execução (sob o enfoque da relação jurídico-processual), mas à pretensão material executiva, questões, pois, que se relacionam ao direito material e que por isso são estranhas à relação jurídico-processual, porquanto logicamente antecedentes à existência do processo. Para aqueles que censuram a utilização da denominação “exceção de pré-executividade”, argumentando que não se concebe a existência de um processo pré-executivo, está aí, nas palavras de LIEBMAN, a justificativa que buscavam.

Na doutrina brasileira, coube a PONTES DE MIRANDA a primazia de, baseado na doutrina italiana (especialmente na obra escrita por CARLO FURNO sob o título “Disegno Sistematico delle Opposizioni nel Processo Esecutivo”), sustentar a existência da figura da exceção de pré-executividade, azada a permitir ao juiz a verificação, no processo de execução, da efetiva existência de carga suficiente de executividade material, quando a tanto provocado pelo devedor. Iniciava-se assim no direito brasileiro a desmistificação do dogma de que não há contraditório no processo de execução, o que a doutrina brasileira principia por sistematizar, agora com maior segurança, como é dado extrair da novel lição de OVIDIO BAPTISTA:

Insinua-se nas concepções modernas da ação executiva, cada vez mais com maior intensidade, a consideração de que o respectivo processo, longe de estar privado de cognição, contém elemento às vezes relevante de conhecimento, não apenas tendente a corrigir eventuais imperfeições da relação processual, mas em determinados casos, objetivando até mesmo “a totale e definitiva eliminazione del processo esecutivo” (Furno, Disegno Sistematico, p. 16), de modo que a proposição dos embargos do devedor nem sempre será necessária para que o executado impeça o desenvolvimento da demanda executiva, ainda que essa reação oposta pelo executado seja uma autêntica defesa de mérito, modo quando ele – no interregno entre a citação e a penhora – demonstra cabalmente que o documento exibido pelo credor não é título executivo ou lhe falta, evidentemente, legitimidade ad causam. (…) Tem-se verificado, na verdade, que os limites de cognição do Juiz da execução, que deveria limitar-se às defesas processuais, ou como lhes chama o direito italiano, defesas contra atos executivos e não defesa de mérito contra a execução, tem-se alargado para permitir que o executado, nos autos do processo executivo, suscite determinadas exceções que digam respeito ao meritum causae. O próprio Liebman, ao mostrar que o órgão executivo realiza em certa medida algum julgamento, afirma que lhe cabe determinar a existência do título executivo, para impedir o prosseguimento da execução se constatar que o título executivo inexiste. A existência de cognição interna à demanda executiva apenas confirma sua jurisdicionalidade, pois não poderá haver jurisdição onde o julgamento seja inexistente. Supor que o resultado da ação executiva seja invariavelmente o de sua procedência, com um desfecho único, significaria render-se à teoria concreta da ação, confundindo ação processual com ação material.”.21

Delineado dessa forma o campo cognitivo da exceção de pré-executividade, que abarca as questões que se referem à pretensão material executiva, antecedentes à da validez da relação jurídico-processual, provocadas pela defesa do executado e que não exijam para seu deslinde dilação probatória, em face do restritivo campo cognitivo do processo de execução, que não concede ao juiz uma cognição plena e exauriente, existente apenas nos embargos de devedor.

Daí adotar-se no caso da exceção de pré-executividade o que a doutrina denomina de “sumarização da cognição”, a exigir a apresentação de defesa do executado, provocando o contraditório, que no processo de execução é sempre eventual.

Destarte, para as matérias que possam ser conhecidas de ofício (de ordem pública), como as que se referem aos pressupostos processuais e às condições da ação, sobre não se serem matérias relacionadas à pretensão material e não estarem submetidas à preclusão, tem-se a desnecessidade da utilização da exceção de pré-executividade para que o juiz delas conheça, bastando que o executado se valha de uma simples petição, sem forma ou figura de juízo.

Em abono, considere-se ainda o disposto no artigo 794 do nosso Código de Processo Civil em vigor, que regula as hipóteses de extinção da execução (material), e não do processo de execução. São exatamente essas hipóteses – de extinção da relação jurídico-material – que dão lugar à exceção de pré-executividade.

O que se expôs aqui nos autoriza concluir que apenas as matérias relacionadas à pretensão material executiva é que podem ser validamente veiculadas por exceção de pré-executividade, a ser oposta dentro do prazo de vinte e quatro horas, aberto com a citação. Frise-se que essas matérias, todas de conteúdo patrimonial, não podem, por sua natureza, ser conhecidas de ofício, a exigir que o devedor as argua, instalando o contraditório em processo de execução, mas ainda sem o risco da preclusão, porquanto em nosso Código de Processo Civil em vigor os embargos à execução podem versar não apenas sobre questões relacionadas à validez da relação jurídico-processual, mas também sobre a pretensão material executiva (CPC, art. 741), o que dispensa o devedor do ônus de invocá-las previamente, em exceção de pré-executividade, podendo fazê-lo em embargos de devedor.

Melhor seria, “de lege ferenda”, que a nossa Legislação Processual expressamente regulasse a figura da exceção de pré-executividade, de modo que se deixasse de considerá-la uma defesa excepcional, submetendo-a, assim, ao regime da preclusão.

1 Apud Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões Vernáculas, in verbete “Pos (ou post)”, p. 241, Editora Caminho Suave , 1981, São Paulo.

2 Cf. Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, v. 1, p. 335, Saraiva, São Paulo, 1969.

3 O Espírito do Direito Romano, v. IV, p. 38, editora Alba, Rio de Janeiro, 1943.

4 Exceção de pré-executividade: uma denominação infeliz. Revista Forense, v. 351, julho-setembro/2000, p. 585-586, Rio de Janeiro, 2000.

5 Processo de Execução, p. 37, 3ª edição, Saraiva, São Paulo, 1968.

6 Processo de Execução, p. 48.

7 Instituições do Processo Civil (tradução por Adrián Sotero De Witt Batista), v. I, p. 125, Servanda, Campinas, 1999.

8 O Espírito do Direito Romano, v. IV, p. 37.

9 Cf. Execução Civil, p. 119, 4ª edição, Malheiros, São Paulo, 1994.

10 Niklas Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, p. 85 e 87-88, Editora Universidade de Brasília.

11 Falo aqui da penhora “on line”, que não está prevista em Lei e que é objeto apenas de previsão em convênios celebrados pelo Banco Central do Brasil com alguns Tribunais.

12 Cf. Cândido Rangel Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, p. 450, RT, São Paulo, 1987.

13 Curso de Processo Civil, v. 2, p. 32, 5ª edição, RT, São Paulo, 2002.

14 Cf. Enrico Redenti, Diritto Processuale Civile, v. 3, p. 193, Giuffrè editore, Milão, 1999.

15 Estrutura Fundamental do Processo Civil, p. 109, Forense, Rio de Janeiro, 1997.

16 Diritto Processuale Civile, v. 3, p. 185.

17 Cf. Diritto Processuale Civile, v. 3, p. 185-186.

18 Cf. Celso Neves, Estrutura Fundamental do Processo Civil, p. 83.

19 Refiro-me às obras “Embargos do Executado” e “Processo de Execução”, publicadas no Brasil pela Editora Saraiva.

20 Eficácia e Autoridade da Sentença, p. 62, 3ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1984.

21 Curso de Processo Civil, v. 2, p. 35/36, 5ª edição, RT, São Paulo, 2002.