VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. CONCEITO E SUA APLICAÇÃO A UM CASO EM CONCRETO

Apelação 1004434-28-2021
Voto 3725

DECLARAÇÃO DE VOTO DIVERGENTE

Com todo o respeito que é deveras merecido ao voto do eminente Desembargador Relator, de seu conteúdo divirjo por entender se deva reconhecer em favor da autora-apelante o direito material que invoca, com a procedência parcial aos pedidos de reparação por danos moral e material. E o faço pelas razões seguintes.

A primeira dessas razões, na ordem de importância, está a compreensão do conceito jurídico de “violência obstétrica”, formado a partir da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (“Convenção do Belém do Pará de 1994”), mas formado nomeadamente depois que o Brasil foi condenado no caso “Alyne Pimentel x Brasil”, julgado pelo Comitê das Nações Unidas para a Eliminação das Discriminação contra as Mulheres”, julgamento que ocorreu em 2011, quando o organismo internacional condenou o Brasil, responsabilizando-o por não ter prestado o atendimento médico adequado desde o início das complicações da gravidez de Alyne.

Esse julgamento, com efeito, fez incorporar ao Direito positivo brasileiro o conceito de “violência obstétrica”, demarcando-o de modo a diferenciá-lo do conceito de “erro médico”, na medida em que na raiz do conceito de violência obstétrica está o conceito sociológico de discriminação contra a mulher e a necessidade de o sistema jurídico-legal estabelecer uma proteção adequada à mulher diante desse tipo de situação, sobretudo diante de pressões psicológicas que possam surgir no contexto de atendimentos médicos em geral.

Assim, enquanto o que caracteriza o erro médico está na inadequada utilização de uma técnica da Ciência Médica, no caso da violência obstétrica o que a caracteriza não está no emprego dessa técnica, senão que no existir um tratamento discriminatório contra a mulher, ocorrido no contexto de um atendimento médico em geral.

Cuido observar, pois, que a causa de pedir desta demanda não se refere em nenhum momento à ocorrência de erro médico, diversamente, pois, do que consideraram o juízo de origem e o ilustre Desembargador Relator. A demanda versa sobre uma suposta violência obstétrica, alegando a autora-apelante ter sido discriminada em diversos momentos pela médica-apelada.

Essa distinção entre o conceito de “violência obstétrica” e o de “erro médico” conduz-se à segunda razão pela qual entendo deva divergir do voto do ilustre Desembargador Relator, e que diz respeito às consequências que se devem extrair, já no campo do processo civil, em decorrência do ônus da prova e da técnica de sua inversão. Agiu com acerto, pois, o juízo de origem em juridicamente qualificar como de consumo a relação jurídico-material objeto da lide, e não se há negar que exista mesmo essa relação de consumo. Sucede, contudo, que a demanda não versa sobre erro médico, senão quanto a uma alegação de que existiu violência obstétrica, porque, segundo a autora-apelante, teria sido vítima de discriminação pela médica, ora ré-apelada, durante o atendimento médico que antecedeu o parto, durante esse procedimento médico e logo após sua conclusão.

Destarte, em não se tratando de alegação de erro médico, não se pode aplicar ao caso o regime de responsabilidade civil subjetiva, que é próprio de ser aplicado apenas aos casos de responsabilidade por erro médico. Daí decorre, “concessa venia”, o equívoco em que incidiu o juízo de origem (e também o ilustre Relator), na medida em que se tratando de responsabilidade civil envolvendo alegação de violência obstétrica, e não erro médico, o regime de responsabilidade civil não é o mesmo, e isto é dizer, deve ser aplicar o regime de responsabilidade objetiva, na medida em que se deve aplicar a técnica da inversão do ônus da prova, seja por se deve considerar a autora-apelante como hipossuficiente, seja porque a condenação do Brasil pelo organismo internacional justifica que se inverta o ônus da prova nesse tipo de matéria, atribuindo-se, assim, ao médico e ao hospital a prova de que não tenham praticado discriminação de qualquer espécie à mulher, no caso, à autora, a quem caberia apenas comprovar o nexo de causalidade, do que ela se desincumbiu produzindo importante testemunho de quem estivera no mesmo quarto da autora logo após o parto e que confirmou a discriminação no tratamento dispensado pela médica-apelada à autora, totalmente desconsiderada pela médica-apelada naquele importante e delicado momento logo após o nascimento da criança.

A propósito das provas e do nexo de causalidade, há que se observar o desacerto do juízo de origem em não ter querido ouvir o companheiro da autora-apelante na condição de informante, dando a esse testemunho o valor que pudesse merecer. O juízo de origem, depois de reconhecer que o companheiro estava impedido, não aceitou a obtemperação da patrona da autora no sentido de que se tratava de um relato de significativa importância, visto que a alegação da autora também estava em ter sido discriminada em razão de não ter podido contar com a presença de seu companheiro durante o atendimento médico. Especialmente porque deveria o juízo de origem ter feito aplicar a técnica da inversão do ônus da prova, deveria ele ter valorado a necessidade daquele relato na condição de mero informante.

A terceira ordem de razão decorre dos efeitos que se devem projetar a partir da aplicação da técnica da inversão do ônus da prova em favor da autora, que, em tendo comprovado o nexo de causalidade, seja pelo relato da testemunha, seja pelo laudo psicológico, está no ônus que incumbia às rés, médica e hospital, de infirmarem o que o nexo de causalidade provado nos autos revelava, ou seja, de que as alegações da autora não correspondiam à realidade material subjacente, e as rés desse ônus não se desincumbiram, senão que em especial a médica-apelada em seu depoimento pessoal referiu-se a fatos que comprovam a discriminação suportada pela autora. Refiro-me, em especial, ao que disse a médica-apelante em seu depoimento pessoal, quando mencionou diálogo informal havido com o anestesista logo após o parto e ocorrido ainda na sala de cirurgia, na frente, pois, da autora, quando acerca de um prosaico assunto (a fabricação em casa de pão), disse a médica-apelada que se deveria ter cuidado com o peso exatamente para não “ficar como a autora”. Acerca desse depoimento pessoal, fica aqui o registro de que o juízo de origem a rigor não formulou nenhuma pergunta à médica-apelada, limitando-se a, passivamente, ouvir seu relato, deixando, pois, de formular perguntas que eram importantíssimas, sobretudo depois do que a médica, ela própria, dissera sobre a forma como havia tratado a autora. Houve, naquele depoimento pessoal, praticamente uma confissão da médica-apelada.

Quanto ao resultado do que apurou o órgão de classe da médica, o Conselho Regional de Medicina, convém atentar para o fato de aquela análise prender-se apenas a um suposto erro médico, quando não a queixa da autora perante aquele órgão administrativo não concernia ao erro médico, mas a como havia sido tratada pela médica. Não há, no relatório final do procedimento administrativo, nenhuma palavra quanto à discriminação, mas apenas ao erro médico.

Extraio a conclusão, pois, de que as rés não se desincumbiram do ônus da prova, não infirmando assim o que a autora comprovara acerca do nexo de causalidade, e que, em se tratando de regime de responsabilidade civil objetiva, aplicada a técnica da inversão do ônus da prova, daí se deve chegar à conclusão de que se deva reformar a r. sentença, condenando as rés na reparação à autora, tanto quanto ao dano moral, quanto material, observando, contudo, que o valor pretendido pela autora a título de reparação por dano moral, no patamar de cinquenta mil reais, revela-se desarrazoado, tanto quanto desproporcional, entendendo, pois, deva ser fixada a reparação por dano moral em vinte mil reais. Enquanto ao patamar da reparação por dano material, não há que censurar o valor pretendido pela autora, da ordem de R$3.814,76, comprovados nos autos. Observo que se deve estabelecer um regime de solidariedade passiva entre as rés. E quanto aos honorários de advogado, entendo devam ser fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor total da condenação, devidamente corrigido, sem a aplicação do artigo 85, parágrafo 11, do CPC/2015, em razão de os honorários estarem a ser fixados apenas neste momento.

É como voto, respeitosamente.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE

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