SAÚDE PÚBLICA – ISOLAMENTO INDIVIDUAL E FECHAMENTO DO COMÉRCIO

Valentino Aparecido de Andrade

Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

A Constituição de 1988, ao tratar das diversas áreas de atuação do Poder Executivo, define, dentro de um modelo que é de nossa tradição e que atende a princípios nucleares de um Estado de Direito, de um regime democrático, e ainda  que são decorrentes de um sistema presidencialista de governo, aquelas  competências que são exclusivas da União Federal (artigo 22), bem assim aquelas que são compartilhadas entre a União Federal e os demais entes políticos (artigo 23), havendo aí o que se denomina de “competência comum”. Dentre as áreas de competência comum, está a saúde pública, conforme se verifica no artigo 23, inciso II, da CF/1988, cujo texto é o seguinte:

“Art. 23.  É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.

                                    A saúde pública, por sua vez, é objeto de regulação na seção II do capítulo II (que trata da seguridade social), formando o que a Constituição de 1988 denomina de “ordem social”.

                                    Nesse contexto,  poder-se-ia concluir que os estados-membros e os municípios, dado que podem legislar sobre saúde pública, concorrentemente com a União Federal, teriam o poder de decretar o isolamento social e o fechamento do comércio na área de seu território, como ora está a ocorrer em diversos estados-membros (como São Paulo, por exemplo), em virtude da pandemia pelo “Coronavírus”.

                                    A essa conclusão, contudo,  chegaria aquele que descurasse de um palmar cuidado que o intérprete de qualquer norma legal deve ter: o de não realizar  uma interpretação literal e isolada da norma, sem a cotejar com o conjunto de normas em que esteja inserida, e sobretudo, quando o açodado intérprete deixa de considerar  princípios (que, como se sabe, estão acima das regras) fundantes de determinado instituto jurídico.

                                    Como observa GERALDO ATALIBA, para que  passamos compreender bem quais são as competências exclusivas da União Federal, é necessário que consideremos antes aquelas que são exclusivas do Congresso Nacional, porque será no cotejo entre essas atribuições constitucionais que se extraem e se definem os atos que somente a União Federal pode praticar:

É do exame (…) das competências exclusivas do Congresso Nacional que vai emergir melhor – em contraste com a considerações dos preceitos que regulam as competências do presidente da república – o preciso perfil republicano das instituições por nós forjadas. Deste cunho decorre o caráter impulsionador e orientador do Congresso, mediante atividade legislativa e as funções de controle e fiscalização que – em nome dos titulares da república – exercem os representantes e mandatários do povo sobre o Poder Executivo”. [1]

                                     Dentre as atribuições políticas da União Federal, a serem exercidas privativamente pelo presidente da república, configurando uma competência de natureza política, está o ato que decreta o estado de defesa e do estado de sítio, além da intervenção federal, como se pode concluir do que prevê o artigo 49, inciso IV, que prevê a necessária autorização de parte do Congresso Nacional, a caracterizar, na precisa lição de GERALDO ATALIBA, que se trata de um ato de competência exclusiva da União Federal, tanto que a Constituição de 1988 expressamente o condiciona a uma autorização do Congresso Nacional, no que, aliás, está um princípio que busca assegurar e proteger um equilíbrio entre poderes na democracia.

                                    Assim, a Constituição de 1988 estabelece que, decretado o estado de defesa ou de sítio, apenas a União Federal, pelo Presidente da República, é que o pode decretar, e tão somente a União Federal é que detém a competência para decretar as medidas que devem ser adotadas para uma situação de excepcionalidade.

                                    O que nos permite concluir, sem grande dificuldade, que os estados-membros e os municípios podem, sim, “cuidar da saúde pública”, legislando concorrentemente com a União Federal, desde que a matéria sob regulação não esteja abarcada dentre aquelas que estão sob o poder de uma competência exclusiva da União Federal, caso em que a competência concorrente deve ceder passo à prevalecente competência exclusiva da União Federal, a qual compreende, importante observar, a de legislar sobre  “defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional”, como está expresso o artigo 22, inciso XXVIII, norma, aliás, que é consentânea com o sistema da Constituição de 1988, que dota a União Federal, e apenas ela, como o ente público que pode decretar o estado de defesa ou de sítio, e de adotar as medidas decorrentes ou necessárias à proteção da defesa civil, o que vem a abranger as medidas de isolamento social e do fechamento de comércio, quando essas medidas têm por fundamento jurídico-legal o combate a uma pandemia que atinja diversos estados-membros e municípios.

                                    É necessário sublinhar que a medida que decreta o estado de defesa e de sítio é de natureza política e pode, segundo uma interessante classificação que é dada por GIOVANNI SARTORI, em sua famosa obra “A Teoria da Democracia Revisitada”, ser caracterizada como uma “decisão coletivizada”, que é aquela que se aplica e é imposta a uma coletividade, independentemente de ser tomada por uma pessoa, por algumas, ou pela maioria. Como enfatiza SARTORI, o critério de definição desse tipo de decisão não é mais quem toma as decisões, mas seu alcance, dado que seja quem for que tome a decisão, ele decide por todos[2] – exatamente como se dá na medida que decreta o estado de defesa e ou de sítio, que é uma medida política de competência exclusiva da União Federal, considerando os momentosos efeitos que envolvem esse tipo de decisão política.

                                    Destarte, pode-se concluir que os estados-membros e os municípios não podem decretar medidas como as do isolamento e fechamento do comércio local, se o fundamento político-jurídico desse tipo de medidas for a ocorrência de uma patologia que esteja a afetar uma grande parte do território brasileiro, como sucede com o “Coronavírus”, havendo aí um problema de extensão territorial e de importância tal que, conforme o texto e o espírito da nossa Constituição de 1988, somente pode ser objeto de decisão da União Federal, a quem compete decidir segundo a sua discricionariedade, se decreta ou não o estado de defesa e de sítio, sempre sob a autorização do Congresso Nacional. De modo que, decidindo a União Federal  não decretar o estado de defesa e de sítio, não podem os estados-membros e os municípios adotar medidas que, somente em um regime de excepcionalidade (como é o de uma pandemia), poderiam ser decretadas pela União Federal.

[1] República e Constituição, p. 63, 2ª. edição, Malheiros editores.

[2] A Teoria da Democracia Revisitada, v. 1 – O debate contemporâneo, p. 287, editora Ática.