SALÁRIO É MESMO IMPENHORÁVEL?

SALÁRIO É MESMO IMPENHORÁVEL?
Valentino Aparecido de Andrade
Juiz de Direito/SP e Mestre em Direito

Atribui-se ao nazista, Joseph Goebbels a seguinte frase: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Não quero aqui ousar insinuar que se trate de uma mentira a afirmação de que, em nosso ordenamento jurídico, o salário e os vencimentos do servidor público são impenhoráveis. Há toda uma majoritária corrente jurisprudencial que afirma caracterizar-se essa impenhorabilidade, e se trata de uma posição formada há muito tempo. Emprego, pois, a famosa frase aqui apenas para dizer que há certas posições jurisprudenciais que ao longo do tempo vão se consolidando e que ninguém mais as discute, como se essas posições tenham se tornado quase que um direito natural, no sentido de não poderem mais ser discutidas ou analisadas.

É o que se dá com a tese de que o salário e os vencimentos do servidor público são sempre impenhoráveis. Basta, pois, que o exequente requeira a penhora sobre salário ou sobre os vencimentos do servidor, e incontinenti aquela tese surge para colocar uma pá de cal sobre o tema, sequer para que possa ser analisada a questão.

Quando temos o cuidado de analisar de mais perto os fundamentos jurídicos que alicerçam essas irrefragáveis teses jurídicas, percebemos que não é bem assim. Ou seja, há quase sempre espaço, e muito espaço para discutir certos temas, e para os analisar sob perspectivas diversas daquelas que estearam as “consolidadas” posições jurisprudenciais. Parece-me que isso deva ocorrer com a tese da impenhorabilidade de salário e vencimentos de servidor público.

Um dos ramos do Direito que mais tempo permaneceu refratário a uma aproximação com a Constituição é, sem dúvida, o Direito Civil, e há para isso uma explicação bastante simples. Com efeito, o direito civil trata das relações entre particulares, e esses particulares estão e devem estar em posição de equilíbrio, em uma posição que a lei prefixou-lhes, enquanto a Constituição regula as relações jurídicas entre o Estado e o particular, de maneira que não poderia a Constituição interferir nas relações privadas, sobretudo para tirar de um particular e conceder a outro um direito subjetivo que a lei concede, a não ser que a Constituição tenha, ela própria, vedado expressamente que exista esse direito. Assim, por exemplo, se o Código Civil permite a fiança, não pode o fiador dizer que a fiança viola o direito à propriedade, ou lhe pode afetar a dignidade, dado que a Constituição não veda que o Código Civil tenha previsto a fiança.

Mas andando o tempo descortinou-se na doutrina e na jurisprudência, sobretudo na de origem alemã, a percepção de que as normas constitucionais incidem e devem incidir também sobre as relações de natureza privada, embora isso ocorra de modo diferente do que se dá nas relações entre o Estado e o particular. Tudo mudou a partir dessa perspectiva.

Devemos sobretudo ao jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, à tese, hoje bastante prestigiada, de que também às relações jurídicas de direito privado aplicam-se as normas constitucionais de direitos fundamentais, o que conduziu a que no campo do direito privado possa ser aplicado o princípio constitucional da proporcionalidade, antes reservado às relações entre o Estado e o particular. CANARIS demonstrou que as normas de direito fundamental projetam efeitos como imperativos de interpretação sobre o conteúdo das normas de direito privado.

Ou seja, as normas constitucionais, seus princípios e regras, atuam como importante material hermenêutico quando se trata de analisar e de interpretar as relações jurídico-privadas, quando se deve analisar os direitos fundamentais que a Constituição de 1988 prevê e protege e assegura – e quer ver implementados, também no campo das relações jurídico-privadas.

Nenhum direito subjetivo é absoluto, ainda que aquele de matriz constitucional, o que significa dizer que, colidindo um face doutro, é necessário ponderar os interesses em conflito. E isso também sucede quando dois ou mais direitos de natureza privada estão em um conflito, como acontece quando o credor, para satisfação de seu crédito, quer ver penhorado salário ou vencimentos do servidor, e o executado alega a impenhorabilidade prevista no código de processo civil. De um lado dessa relação jurídico-material-processual está o direito subjetivo do executado à impenhorabilidade de seus vencimentos, conforme prevê o código de processo civil; doutro, doutro o direito do credor em ver satisfeito seu crédito, que, de resto, também está garantida pelo mesmo código de processo civil.

A impenhorabilidade prevista no artigo 833 do CPC/2015, ao retirar do credor a possibilidade de alcançar a constrição judicial sobre determinados bens, é de ser interpretada, portanto, dentro de uma lógica do razoável, que se impõe em face da ressalva que o inciso IV ao referido artigo 833 estabelece quanto a uma precisa finalidade, que é a de garantia ao sustento do devedor e de sua família.

Essa ressalva deve conduzir o intérprete a considerar as circunstâncias do caso em concreto, para distinguir cada situação, pois pode suceder que o montante recebido pelo executado seja em valores tão expressivos que a penhora, em atingido parte desse valor, não obstaculizará a mantença do sustento. A ressalva que o legislador cuidou acrescentar ao texto legal explicita, pois, que se deva considerar o montante recebido a título de vencimentos e de salários em proporção ao que se possa penhorar, se afetar substancialmente uma digna subsistência do executado e de sua família.

De resto, essa ressalva legal quadra, como ficou dito, com a lógica do razoável, na medida em que não é justo sacrificar o direito do credor, obstando-lhe a penhora, quando os vencimentos e salários do executado são tão significativos em uma dada realidade econômico-social, que, implementada a penhora, o valor que o executado ainda receberá será muito expressivo em face dessa mesma realidade.

Quando se interpreta a norma do artigo 833, inciso IV, do CPC/2015 no sentido de que garantir uma proteção absoluta sobre vencimentos e salários, no sentido, pois, de que não se deva ter penhora, independentemente do valor que é recebido pelo executado mensalmente, cria-se em desfavor do exequente uma interpretação que coloca em risco a satisfação de seu crédito, satisfação que é garantida pelo acesso à tutela jurisdicional, garantia prevista no inciso 5o., inciso XXXV, da CF/1988, em cujo conteúdo se deve considerar abarcada a tutela jurisdicional a ser concedida também em processo de execução.

Assim, quando se desconsideram as circunstâncias do caso em concreto, ou seja, o valor que é recebido a título de vencimentos e salários, não considerando esse valor para aferir se a quantia a ser objeto da penhora pode ou não afetar o sustento do executado, coloca-se a posição jurídica do credor sob uma insuficiência de proteção jurídica mínima, tanto em favor do credor, quanto do executado. As circunstâncias do caso em concreto supeditam os elementos que o juiz deve analisar quando esteja a ponderar os interesses em conflito.

De maneira que, como ensina CANARIS, deve o juiz, quando analisa os direitos em uma relação jurídico-privada, considerar os direitos fundamentais previstos na Constituição tratando-os como imperativos de tutela, no sentido de extrair de seu conteúdo material hermenêutico, necessário para que pondere os interesses privados quando em conflito, analisando as circunstâncias do caso em concreto para dizer qual direito deva prevalecer, examinando nesse contexto o aspecto de uma proteção jurídica mínima.

Suponha-se, por exemplo, que se trate o executado de alguém que recebe a título de salário ou de vencimentos cinquenta mil reais mensais. Afirmar-se que esse valor seja, sem mais, impenhorável, apenas porque há uma tese jurídica formada ao longo do tempo, sem dever considerar as circunstâncias que dizem respeito ao sustento do executado, à realidade econômica subjacente, ou seja, sem considerar as circunstâncias do caso em concreto, é indevidamente olvidar da aplicação dos imperativos de tutela que são os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, cujos efeitos projetam-se sobre as relações jurídico-privadas.