PRIVATIZAR O PRIVATIZADO

PRIVATIZAR O PRIVATIZADO
Valentino Aparecido de Andrade

Não se pode deixar de reconhecer o legítimo anseio do nosso empreendedorismo em estender ao máximo seu campo de atuação, alcançando a cada dia mais e mais atividades colocadas sob a administração particular, tirando do Estado o fardo de ser dono de coisas que não lhe caem bem, como os cartórios extrajudiciais por exemplo. “Privatizar” é o nome dado de há muito a uma moda que não passa.

Noticiam os jornais ter ocorrido no Rio de Janeiro na semana passada um fato que comprova como o nosso empreendedorismo vai bem. Incentivados pelo fenômeno da privatização, alguns “empreendores”, vendo que os cartórios extrajudiciais haviam sido passados à livre iniciativa e geravam lucros estratosféricos (há cartórios cuja renda rivaliza com a de instituições financeiras), resolveram, eles próprios, tomar a iniciativa de privatizar o que já era privatizado, criando um “cartório”. E, diga-se de passagem, a iniciativa estava indo bem durante os oito meses em que perdurou, até a chegada da polícia.

Com efeito, sob o slogan “Simplificando a sua vida”, criou-se na cidade do Rio de Janeiro um cartório que era simplesmente o resultado da ideia de alguns espertos cidadãos que, acompanhando a onda de privatização que assola o país, resolveram criar por conta própria e com risco alheio um tipo de cartório em que o cidadão interessado poderia obter, com grande simplicidade, atos como os de reconhecimento de firma, registros de contratos de contratos e de quaisquer outros documentos, e até com o selo público, este também privatizado. Ora, se os cartórios são todos privatizados no Brasil, e como a Constituição determina que se proteja a livre iniciativa, estimulando a concorrência, pensaram eles que não haveria mal em privatizar o que já era privatizado.

E além da simplificação, o “cartório” prometia a seus clientes preços mais em conta do que aqueles cobrados por outros cartórios, instalando um regime de saudável concorrência, que, contudo, não foi bem visto pela autoridade policial, que entendeu que somente se pode privatizar uma vez, e se o Estado privatizou os cartórios, ninguém mais os pode privatizar.

A notícia ainda dá conta de que, em poucos meses, o “cartório” faturou algo próximo a oito mil reais em serviços que foram prestados a seus clientes. A informação consta de um caderno que a polícia apreendeu, e foi com base nesse caderno que se pode confirmar que havia alguma coisa de errado, porque os cartórios verdadeiros usam computadores e programas para o registro das entradas, e não prosaicos cadernos.